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Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade

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23/01/2012 às 14:03
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Endowments no Brasil

Vimos que os endowments surgiram e evoluíram a partir da necessidade de preservar um patrimônio e gerar uma receita vitalícia para o sustento de uma organização, atividade ou causa. Preservando a dotação patrimonial de seus investidores e estabelecendo um fluxo permanente de recursos para o custeio de atividades operacionais, os endowments são capazes de assegurar às entidades educacionais e do terceiro setor maior autonomia financeira. Entidades sem Fundos Patrimoniais ficam mais vulneráveis a ciclos de abundância e carência de investimentos sociais, o que faz com que as doações, quando presentes, sirvam ao uso imediato, mas tenham pouca capacidade de gerar um crescimento sustentável. Em tempos de escassez, quando as doações rareiam, entidades que possuem um endowment bem estruturado têm mais chances de sobreviver e de fazê-lo com menos impacto sobre as suas atividades, até que um novo ciclo de fartura se inicie e se faça sentir no aumento do volume de recursos disponíveis para doação.

Criados para as mais diversas causas, os endowments permitiram a essas entidades edificar uma base financeira sólida, complementando as atividades sociais com recursos próprios. Dessa forma, os beneficiários tornaram-se menos dependentes de novas doações e patrocínios, e adquiriram a capacidade de planejar a longo prazo, crescer de maneira coordenada e estruturada, alcançando proporções que antes estavam fora de seu alcance.

Durante a trajetória rumo a esses objetivos, os endowments foram se aperfeiçoando para tornar-se uma sofisticada ferramenta de investimento, capaz de unir a boa rentabilidade à previsibilidade do orçamento operacional.

Mesmo com este superficial estudo, fica evidente que os endowments podem alavancar imensamente a capacidade que as organizações educacionais e sociais têm de gerar mudanças no mundo em que vivemos. A realidade em diversas organizações é que os esforços de captação de recursos comprometem o foco de dedicação à atividade-fim, devido à necessidade de lutar diariamente pelos recursos de uso imediato, retornando sempre ao ponto de partida ao final de cada projeto. Com um endowment, esses esforços passam a gerar, também, um efeito cumulativo, que aos poucos é capaz de liberar os agentes para que se dediquem às finalidades preponderantes da entidade.

O Brasil hoje tem maturidade – institucional, política, econômica e financeira – para impulsionar as primeiras iniciativas, seja em centros de excelência no ensino, seja em entidades de ponta no terceiro setor. É preciso enfrentar e derrubar as poucas dificuldades e preconceitos que ainda se apresentam, para que nossas instituições possam usufruir dos muitos benefícios oferecidos por essa estratégia de sustentabilidade.

Dificuldades

Ainda há diversas dificuldades a serem superadas pelas entidades que desejem manter um endowment no Brasil. Neste capítulo final do trabalho, discorreremos brevemente sobre quatro delas: (i) ausência de previsão legal ou de um instituto jurídico específico; (ii) inexistência de incentivos fiscais à instituição e aos doadores; (iii) a cultura de doação atrelada a projetos; e (iv) a incipiência de serviços especializados.

A falta do reconhecimento da figura dos endowments como um instituto jurídico específico e autônomo apresenta-se hoje como a primeira dificuldade para entidades que desejem adotar esse modelo no Brasil.

Historicamente, o funcionamento dos endowments e o papel de seus administradores (os trustees) surgiram a partir da evolução de uma figura pré-existente, o trust. Esta figura jurídica, típica do direito anglo-saxônico, inexiste em nosso ordenamento. Em muitos países, de acordo com Eduardo Salomão Neto, o trust consolidou-se como mecanismo jurídico adaptável a servir a múltiplas finalidades, todas elas tendo em comum a titularidade nominal de patrimônio por pessoa obrigada a administrá-lo em benefício de terceiro (1996, p.19).

De acordo com o mesmo autor, seria possível criar a figura jurídica do trust no Brasil, mas as funções do trust já se encontram supridas em nosso ordenamento por figuras como o fideicomisso, a constituição de renda e a fundação, sendo desnecessária a importação do instituto anglo-saxônico como figura jurídica autônoma (1996, p.173).

A ausência do trust não é um entrave exclusivo do ordenamento jurídico brasileiro. Outros países com ordenamentos de origem romano-germânica, como o nosso, também se desenvolveram sem o trust e, na maioria dos casos, devido à ausência do instituto que os originou, sem uma figura jurídica específica para o funcionamento dos endowments.

A lacuna legislativa impõe um pesado ônus, cabendo à organização beneficiária ou aos instituidores do Fundo Patrimonial pesquisar, estudar o tema, os detalhes do funcionamento, e muitas vezes contratar consultores estrangeiros, tudo com o escopo de traçar suas premissas básicas de funcionamento. A falta de parâmetros legais cria para a entidade a necessidade de definir todas as regras em instrumentos particulares, como estatutos, regulamentos e contratos. O resultado disso é um custo proibitivo para muitas organizações, fazendo com que os endowments sejam uma estratégia restrita somente às instituições que já são de grande porte ou que possuem um patrocinador empenhado na constituição do Fundo Patrimonial.

Ademais, ainda que consigam superar o entrave jurídico inicial e constituir seus endowments de maneira satisfatória, suficientemente regrados para assegurar tranqüilidade aos doadores, nossas instituições educacionais e sociais precisam enfrentar mais obstáculos ao crescimento do Fundo Patrimonial. O terceiro setor em nosso país evoluiu visivelmente nas últimas duas décadas, tanto sob aspectos práticos e operacionais, quanto sob a ótica jurídica. Ainda assim, a legislação sobre o tema é esparsa, confusa, omissa e contraditória.

Nos Estados Unidos, há incentivos fiscais para as instituições que mantêm endowments com finalidades educacionais ou sociais, bem como para os doadores que contribuem financeiramente para o crescimento desses Fundos Patrimoniais. No Brasil, não existe qualquer incentivo a essa prática e, pouco tempo atrás, as organizações sociais que investiam temporariamente seu superávit financeiro poderiam até mesmo ser acusadas de desvio de finalidade.

As associações e fundações que conseguem manter endowments funcionando, buscam enquadrar-se em leis de incentivo retrógradas, pouco eficazes e, às vezes, inadequadas à realidade dessas instituições. A conquista de títulos ou autorizações que se convertam em incentivos fiscais aos doadores é um fator determinante da velocidade de crescimento do Fundo Patrimonial.

Além da ausência de previsão legal e da inexistência de incentivos fiscais, o terceiro entrave facilmente observado no Brasil é de ordem cultural. O cidadão brasileiro não está familiarizado com esse modelo de filantropia de longo prazo, e as organizações sociais sofrem o peso da desconfiança. Carregamos um histórico recorrente de mau uso das estruturas legais destinadas às atividades sociais e as entidades idôneas lutam contra um lastro de escândalos, não raro envolvendo malversação de recursos públicos, que prejudicam a credibilidade do terceiro setor. A essas instituições cabe o ônus de provar que desempenham seu papel social com seriedade, responsabilidade, transparência e retidão.

A carência de credibilidade nutre uma cultura de filantropia de curto prazo, voltada a projetos, fazendo com que os doadores brasileiros apresentem preferência por contribuir com planos específicos e concretos, circunscrito por um ciclo de despesas contido em poucos anos, previsto e planejado como condição prévia para a realização da doação, executado em pouco tempo e com conseqüente prestação de contas.

Os endowments, por sua natureza, requerem um voto de confiança mais amplo dos doadores, pois é preciso confiar que os recursos serão bem geridos na perpetuidade, serão cumulados com novas doações, ano após ano, e poderão gerar benefícios sociais a todas as próximas gerações. O doador pode acompanhar as prestações de contas todos os anos, mas nunca poderá conferir todos os dispêndios realizados com os recursos doados, pois se prolongam além de uma geração.

Essa confiança emerge naturalmente, entre o público de cada entidade, a partir da construção de um histórico de administração responsável e eficaz na gestão e na utilização dos recursos. Nesse ponto, nosso País está dando os primeiros passos, que podem ser determinantes na popularização dos Fundos Patrimoniais. É importante que as primeiras instituições a adotar publicamente o modelo o façam com responsabilidade e transparência, pois o desempenho desses primeiros endowments brasileiros tem o potencial de acelerar ou retardar significativamente o desenvolvimento dessa cultura no Brasil.

O quarto obstáculo no qual algumas louváveis iniciativas de constituição de Fundos Patrimoniais esbarraram foi na dificuldade de operacionalizar o funcionamento do endowment. Adotar uma estratégia que, apesar de centenária em diversos países, ainda é completamente inovadora no Brasil, apresenta alguns entraves de aspecto prático.

A estruturação e o monitoramento das regras e estratégias exigem um grau de profissionalismo que está fora do alcance da maioria das instituições, por não poderem arcar com o custo de contratação de equipe própria qualificada para realizar ou conferir a escrituração e a controladoria dos Fundos Patrimoniais. A terceirização desses serviços encontra outros obstáculos, pois a ausência de legislação específica afasta desse ramo de atividade as grandes instituições financeiras, que poderiam oferecer serviços para facilitar a operacionalização dos Fundos Patrimoniais, assumindo uma parte do trabalho normalmente atribuído aos trustees.

Disso resulta a existência de uma demanda reprimida, um público não atendido, de entidades interessadas no desenvolvimento de seus endowments e sem acesso à orientação e serviços profissionais essenciais. Para atender esse público, as instituições financeiras precisariam estruturar departamentos próprios, investir na qualificação de profissionais, contratar o desenvolvimento de sistemas capazes de registrar detalhes das Políticas de Investimento e das Regras de Resgate, automatizando o monitoramento do cumprimento de regras.

Todo esse investimento é inviável num cenário de incerteza jurídica. Com exceção da possibilidade de eventualmente gerir fundos de investimento, grandes bancos permanecem fora do mercado de serviços destinados aos Fundos Patrimoniais, pois a participação nessas atividades envolveria assumir um risco de monitoramento do cumprimento de regras ("compliance") baseado em estratégias e diretrizes ainda não legisladas. Além disso, a insuficiência dos incentivos fiscais dificulta o crescimento dos Fundos Patrimoniais, fazendo com esse seja um mercado pequeno, pouco atrativo para a atuação de grandes instituições financeiras. A omissão legislativa atrasa a profissionalização dos endowments no Brasil.

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Possibilidade

Apesar dos desafios, a possibilidade existe. Muitas das instituições brasileiras amadureceram e têm capacidade de empreender nessa seara. O mercado financeiro, testado em sucessivas crises internacionais, vem se mostrando consistente e robusto. Os órgãos reguladores têm se empenhado em assegurar o cumprimento das leis e normativos aplicáveis a esse mercado. No campo jurídico, já existe a discussão voltada para uma revisão e consolidação do novo marco regulatório do terceiro setor. O momento é, por diversos aspectos, propício ao florescimento dos endowments no País.

A despeito da ausência de legislação específica, não há nenhum tipo de vedação à adoção das estratégias de investimento e resgate que podem caracterizar parte do patrimônio de uma fundação ou associação como um endowment.

A França, país de ordenamento jurídico muito semelhante ao nosso, também de origem romano-germânica, adotou em 2008 a Lei de Modernização da Economia, que reconheceu oficialmente, pela primeira vez no país, a figura dos endowments como um instituto jurídico autônomo. O artigo 140 da referida lei define os endowments como entidades jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que recebem e administram propriedade e direitos de todos os tipos, e que usam a capitalização de renda para a realização de uma obra ou uma missão de interesse geral ou redistribuem recursos para ajudar uma organização sem fins lucrativos na execução de seus trabalhos e missões de interesse geral.

Em solo brasileiro, já existem alguns casos de entidades que arcaram com os custos de estruturação e adotaram o modelo, inspirando-se em exemplos internacionais. Para citar dois, começamos com a tradicional Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), que há alguns anos repensou seus métodos de gestão patrimonial e adotou explicitamente a estratégia dos endowments.

Na FMCSV, a Política de Investimento é definida a partir da missão institucional e de processos de governança do Fundo Patrimonial, determinando a exposição a riscos, a alocação dos recursos, os critérios de avaliação dos gestores e outros padrões de funcionamento.

Um Conselho de Curadores, assessorado por um Comitê de Investimento, é responsável por decidir o direcionamento dos ativos e escolher os gestores no mercado. A Fundação tem uma equipe que acompanha, executa e faz propostas para as operações financeiras e a gestão dos recursos.

A estratégia de investimento encontra limites estabelecidos em decorrência da missão da fundação ("gerar e disseminar conhecimento para o desenvolvimento integral da criança"). Como suas finalidades institucionais são amplamente ligadas à promoção da saúde infantil, a FMCSV não investe em ações de empresas de bebidas alcoólicas, tabaco e armamento.

Por fim, a Regra de Resgate da FMCSV limita o Resgate Livre a 5% ao ano, que são retirados do Fundo Patrimonial e transferidos para o fundo operacional da fundação, destinado a cobrir as despesas administrativas e os programas sociais.

O segundo caso é o Endowment da Escola Politécnica da USP, lançado em 2010 para mobilizar, gerenciar e repassar recursos para uma das mais tradicionais escolas de engenharia do País. Por meio da construção de um Fundo Patrimonial, a comunidade politécnica está trazendo para uma instituição pública de ensino uma forma de financiamento complementar à arrecadação tributária, para aumentar a destinação de recursos ao ensino, pesquisa e extensão.

Trata-se de uma conquista estrutural para contornar alguns dos obstáculos envolvidos na realização de doações à Universidade Pública. Aspectos burocráticos, assim como a dificuldade de acompanhar o uso dos recursos, fazem com que diversos bem-sucedidos empresários brasileiros, tendo cursado a graduação na Universidade Pública e investido em uma pós-graduação no exterior, hoje realizem doações somente às instituições estrangeiras onde estudaram.

No Endowment da Escola Politécnica da USP, um Conselho Deliberativo será responsável por determinar as diretrizes de investimento e selecionar os gestores no mercado. As diretrizes serão revisadas anualmente, registrando as expectativas de cenário macroeconômico, limites de alocação, de concentração e requisitos de liquidez.

Já a Regra de Resgates prevê a liberação de 0,5% ao mês, do Principal para a Parcela Livre, calculado com base no patrimônio líquido do Fundo Patrimonial. O sistema inclui, ainda, uma regra de suavização da volatilidade com utilização da média móvel do patrimônio líquido dos últimos três anos, atribuindo pesos diferenciados a cada ano.

Essas duas iniciativas são sinais do amadurecimento das atividades filantrópicas no nosso terceiro setor, em busca de um crescimento estruturado e sustentável para instituições cujo trabalho tem grande relevância social.

Os esforços ainda são incipientes, mas representam o primeiro passo. A cultura de filantropia educacional ou social sustentável ainda tem uma longa jornada até tornar-se lugar comum no Brasil, mas o País já dá sinais de que está pronto para ela. Para se tornar uma realidade amplamente difundida, os endowments precisarão principalmente de estímulos do Poder Público.

Definidas as características essenciais mínimas para que um patrimônio seja reconhecido como Fundo Patrimonial, restará livre o caminho para que União, Estados, Municípios e Distrito Federal estruturem suas próprias políticas de renúncia fiscal e incentivo, estimulando o surgimento e o desenvolvimento de iniciativas nesses moldes.

Esperamos, com o presente estudo, ter oferecido uma pequena contribuição ao debate, na esperança de catalisar a consolidação de uma nova cultura, de uma nova ferramenta que, temos certeza, terá importante participação no desenvolvimento social, cultural e educacional do nosso Brasil.

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Sobre o autor
Felipe Linetzky Sotto-Maior

Advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, especialista em Finanças Corporativas e Investment Banking pela Fundação Instituto de Administração – FIA. Fundou a Endowments do Brasil (EDB), empresa dedicada à estruturação de fundos patrimoniais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOTTO-MAIOR, Felipe Linetzky. Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3127, 23 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20918. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado na <a href="http://www.scribd.com/doc/78341873/Endowments-no-Brasil-a-importacao-de-uma-estrategia-de-sustentabilidade">Revista de Direito do Terceiro Setor - RDTS nº 10, de jul-dez/2011</a>.

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