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A evolução do princípio da igualdade e sua aplicação sob a ótica material na Constituição Federal

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24/01/2012 às 09:12
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A Constituição de 1988 consolidou o novo conteúdo semântico do princípio da igualdade juntamente com a nova concepção do papel do Estado Brasileiro, que assume a postura ativa, implementando políticas e programas que promovem a igualização na fruição de direitos.

Introdução

O presente estudo tem por objetivo demonstrar a evolução do princípio da igualdade, firmando-se inicialmente em seu aspecto formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei, para posteriormente avançar em busca da igualdade material, determinando o tratamento legislativo desigual de segmentos considerados vulneráveis pela sociedade atual, entre eles, as crianças e os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiência, as pessoas de baixa renda, os trabalhadores, os consumidores, etc.


1. Evolução histórica

Antes de adentrarmos ao estudo do princípio da igualdade, faremos uma breve abordagem histórica deste princípio com o intuito de demonstrar a evolução do seu sentido diante das transformações ocorridas na sociedade.

O princípio da igualdade pertence ao rol dos direitos humanos, e, portanto, evoluiu conjuntamente com eles.

De acordo com o ensinamento de José Afonso da Silva, os direitos humanos têm por inspiração filosófica: a) o pensamento cristão primitivo como fonte remota (o homem é uma criatura formada à imagem de Deus e por isso possui dignidade inerente à sua condição); b) a doutrina do direito natural dos séculos XVII e XVIII, que se baseava na natureza racional do homem e defendia a existência de direitos inerentes à pessoa humana, bem como afirmava que o poder político emanava do homem e não da divindade, em contraposição ao regime absolutista; e c) o pensamento iluminista, que exaltava as liberdades e os valores individuais.

Com o desenvolvimento industrial, outros direitos passaram a pertencer ao rol dos diretos humanos. Esses direitos tinham como fonte de inspiração: a) o manifesto comunista e as doutrinas marxistas, que defendiam a liberdade e a igualdade não mais no sentido formal, mas no sentido material dentro do contexto do regime socialista; b) a doutrina social da Igreja, a partir do Papa Leão XIII, que buscava uma ordem mais justa ainda no sistema capitalista, evoluindo, posteriormente para uma Igreja dos pobres, passando a defender os postulados marxistas; e c) o intervencionismo estatal, que exigia a prestação positiva do Estado, atuando no meio econômico e social, com o intuito de proteger as classes menos favorecidas [01].

No período axial [02], que abrange os séculos VIII a II a.C., afirmou-se a fé monoteísta, nasceu a filosofia, substituindo o saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão, bem como surgiu em Atenas a democracia. Ao mesmo tempo em que era eliminado todo o poder político superior ao do povo, questionavam-se os mitos religiosos tradicionais. O homem passa a ser o principal objeto de análise e reflexão. O cristianismo promove a compreensão mútua entre os povos, com fundamento na exigência do amor universal.

Nesse período, foram enunciados grandes princípios que são aplicados até os dias atuais. O homem passa a ser considerado em sua igualdade essencial como ser dotado de liberdade e razão, confirmando-se a existência de direitos universais inerentes ao ser humano.

Ressalte-se que o entendimento de que todos os homens têm direito a ser igualmente respeitados, em razão da igualdade essencial entre todos os seres humanos, nasceu juntamente com a lei escrita, considerada regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada. Os judeus defendiam o caráter sagrado da lei escrita, que era adotada como manifestação da própria divindade. Para os atenienses, a lei escrita representava o grande antídoto contra o arbítrio governamental.

Jesus Cristo concretiza a ideia de igualdade universal dos filhos de Deus ao afirmar que as pessoas foram criadas à imagem e semelhança de Deus. Este é considerado o marco histórico inicial do princípio da igualdade. No entanto, essa igualdade só valia efetivamente no plano sobrenatural, já que o cristianismo admitiu ainda por muitos séculos a escravidão, a desigualdade entre homens e mulheres e entre os povos.

Coube à filosofia grega aprofundar a ideia de natureza comum a todos os homens. Boécio, no século VI, definiu a pessoa não como uma exterioridade, mas pela própria substância do homem. Foi a partir desse conceito que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade de todo o ser humano, apesar das diferenças externas de ordem biológica ou cultural. Essa igualdade de essência das pessoas forma o núcleo do conceito universal dos direitos humanos.

Importante destacar que Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.) já defendia a igualdade de forma proporcional, partindo do pressuposto de que se as pessoas não são iguais não devem receber coisas iguais. Para o filósofo, a idéia de igualdade estava relacionada com a idéia de justiça ao conceder algo a cada um de acordo com seus méritos e de exigir de cada um aquilo que sua capacidade e possibilidade permitirem:

"A justiça é uma espécie de meio-termo, porém não no mesmo sentido que as outras virtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo e um outro, seja entre dois outros, não de maneira a dar mais do que convém a si mesmo e menos ao próximo (e inversamente no relativo ao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo com a proporção; e da mesma forma quando se trata de distribuir entre duas outras pessoa" [03].

Constata-se, portanto, que Aristóteles deu início à formação do conceito de igualdade material, que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da desigualdade.

Apesar dos diversos documentos que foram elaborados reconhecendo a igualdade entre os homens, é possível afirmar que a real evolução do princípio da igualdade ocorreu a partir do constitucionalismo moderno, adotado no final do século XVIII pela maioria dos Estados, que firmaram declarações de direitos fundamentais do homem, limitando o poder estatal, inspirados na crença da existência de direitos naturais e imprescritíveis inerentes aos seres humanos.

A primeira declaração de direitos desse período é a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 12 de junho de 1776, que em seu parágrafo 1º reconhece a igualdade entre todos os seres humanos:

"Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança".

Posteriormente, em 04 de julho de 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de autoria de Thomas Jefferson, documento que teve maior repercussão e que representou o ato inaugural da democracia moderna, pois combinava a legitimidade da soberania popular com o respeito aos direitos humanos, defendia a igualdade entre os homens no seguinte trecho:

"Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

É para assegurar esses direitos que os governos são instituídos entre os homens, sendo seus justos poderes derivados do consentimento dos governados".

Essa ideia foi reforçada posteriormente na Revolução Francesa, como se verifica do art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que estabeleceu que "os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Cabe grifar o caráter universal das ideias revolucionárias francesas, que em pouco tempo foram difundidas para outros continentes. Além disso, a igualdade representou o ponto central do movimento revolucionário. Com fundamento neste ideal foram extintas as servidões feudais, proclamou-se a emancipação dos judeus e a abolição de todos os privilégios religiosos e ainda proibiu-se o tráfico de escravos nas colônias.

No entanto, essa garantia da igualdade de todos perante a lei revelou-se inútil para os trabalhadores das empresas capitalistas, que não recebiam tratamento digno, bem como estavam cada vez mais pobres, o que fez com que eles se organizassem para que fossem garantidos seus direitos. Os direitos trabalhistas e sociais vieram a ser reconhecidos como direitos fundamentais inicialmente na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919. Além disso, em 1919 foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a partir daí a proteção do trabalhador assalariado passou a ser objeto de regulação convencional entre diferentes Estados.

Neste momento histórico, ocorre uma nova evolução na organização do Estado, na qual os direitos políticos, econômicos e sociais passam também a ter eficácia positiva no sentido de obrigar o Estado a intervir na atividade privada para proteger determinado grupo de indivíduos, considerados vulneráveis. O papel do Estado, que anteriormente era de mero expectador da sociedade, se transforma para que o Estado se torne protagonista com o objetivo de realizar a justiça social.

Portanto, a partir daí, o princípio da igualdade passa a ser aplicado sob sua ótica material, cabendo aos legisladores a função de editar normas que possibilitassem a redução das desigualdades sociais, econômicas e culturais, promovendo a intervenção do Estado em prol da equiparação dos indivíduos perante as diferentes condições de vida.


2. Igualdade formal x Igualdade material

Sabemos que, apesar de serem iguais em dignidade, os homens são desiguais no que se refere a questões biológicas, sociais, culturais, etc, o que implica na necessidade, por vezes, da efetivação do princípio da igualdade não só no sentido formal, mas também sob o ângulo material, como se demonstrará a seguir.

A igualdade formal é a igualdade perante a lei. Diante da lei, todos somos iguais sem distinção. Dessa forma, impõe-se o tratamento uniforme de todas as pessoas perante a lei.

A igualdade formal prevaleceu no Estado Liberal, que possuía as seguintes características: a) garantia dos direitos individuais (direitos políticos e liberdades individuais); b) ausência de previsão de direitos sociais nos textos constitucionais; c) não intervenção do Estado no domínio econômico; d) positivação do princípio da legalidade, da separação de poderes e da liberdade contratual.

No Estado Liberal, portanto, vigiam os direitos humanos de primeira geração, também chamados de direitos de liberdade, que impõem uma prestação negativa ao Estado, que se restringe a proteger a esfera de autonomia do indivíduo.

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Contudo, o Estado Liberal, de cunho individualista, acaba por provocar forte acumulação de capitais e concentração de riquezas. Essa situação tem por consequência a supressão da livre iniciativa e da livre concorrência e o aumento das desigualdades entre os cidadãos. Constatou-se, nesta época, que o liberalismo gerava a opressão das classes menos favorecidas, por isso deveria ser substituído pelo intervencionismo estatal.

A pobreza na Europa após a 1ª. Guerra Mundial e a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 propiciam o surgimento de um novo ciclo social-democrático, na medida em que a neutralidade estatal mostrava-se fomentadora de profundas desigualdades e impotente para a resolução de problemas de ordem social e econômica. Surge, assim, o Estado Assistencialista ou Estado Social, que tem como característica o dirigismo econômico, ou seja, o Estado passa a ter um papel ativo, intervindo na atividade particular e conduzindo os negócios da economia.

Importante registrar que no Estado Social o princípio da igualdade ganha novo contorno incorporando a igualdade material, que legitima o tratamento diferenciado dos grupos socialmente vulneráveis, direcionado neste momento para os trabalhadores e para os mais pobres.

Nesse período, destaca-se a Constituição Mexicana de 1917, que foi a primeira carta política que sistematizou o conjunto de direitos sociais do homem (trabalhistas e previdenciários), estabelecendo, ainda, critérios de participação estatal na ordem econômica e social, e a Constituição de Weimar de 1919, que serviram de base para a nossa Constituição de 1934. Esses documentos passam a garantir também os direitos humanos de segunda geração, ou seja, os direitos sociais:

"A segunda geração de direitos humanos representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um vigoroso papel ativo, além do mero fiscal das regras jurídicas. Esse papel ativo, embora necessário para proteger os direitos de primeira geração era visto anteriormente com desconfiança, por ser considerado uma ameaça aos direitos do indivíduo. Contudo, sob a influência das doutrinas socialistas, constatou-se que a inserção formal de liberdade e igualdade em declarações de direitos não garantiam a sua efetiva concretização, o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado para realizar aquilo que CELSO LAFER denominou ‘direito de participar do bem-estar social’.

Cabe salientar que, tal qual os direitos da primeira geração (ou dimensão), os direitos sociais são também titularizados pelo indivíduo contra o Estado. Nesse momento são reconhecidos os chamados direitos sociais, como o direito à saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros, que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento e são denominados direitos de igualdade por garantirem, justamente às camadas mais miseráveis da sociedade, a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos" [04].

No nosso ordenamento jurídico, desde a Constituição do Império de 1824, o princípio da igualdade sempre foi previsto como a "igualdade perante a lei", reforçando o sentido da igualdade formal. No entanto, José Afonso da Silva defende que a interpretação do princípio da igualdade deve sempre ser feita de maneira ampla, para que seja atendida também a igualdade material:

"Mas, como já vimos, o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica em que os 'iguais' podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como 'essenciais' ou 'relevantes', certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por consequência, as pessoas que apresentam os aspectos 'essenciais' previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas 'situações idênticas', ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos" [05].

Rizzatto Nunes corrobora o entendimento de que o respeito ao princípio da igualdade deve atender tanto à igualdade formal como à igualdade material:

"É preciso que coloquemos, então, o que todos sabem: o respeito ao princípio da igualdade impõe dois comandos. O primeiro, de que a lei não pode fazer distinções entre as pessoas que ela considera iguais – deve tratar todos do mesmo modo; o segundo, o de que a lei pode- ou melhor, deve – fazer distinções para buscar igualar a desigualdade real existente no meio social, o que ela faz, por exemplo, isentando certas pessoas de pagar tributos; protegendo os idosos e os menores de idade; criando regras de proteção ao consumidor por ser ele vulnerável diante do fornecedor etc.

É nada mais que a antiga fórmula: tratar os iguais com igualdade e os desiguais desigualmente" [06].

Claudia Lima Marques defende que tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais é mais que o princípio da igualdade, é equidade, ou seja, uma solução justa para o caso concreto. Para a citada autora, deve haver uma visão diferenciada da igualdade na sociedade atual para que seja possível a efetivação dos direitos humanos:

"Sendo assim, constata-se que tanto a modernidade, quanto a pós-modernidade são baseadas no discurso dos direitos, a primeira no discurso dos direitos adquiridos, na segurança e ordem (institucional), e a segunda nos direitos qualificados por sua origem, no discurso dos direitos humanos e fundamentais, como resultados de um objetivo de política legislativa de agora tratar desigualmente aqueles sujeitos da sociedade considerados vulneráveis ou mais fracos (crianças, idosos, deficientes, trabalhadores, consumidores, por exemplo). Como ensina o grande Michel Villey, não há nada mais diferenciador, mais individual, mais básico, distintivo e equitativo do que o reconhecimento dos direitos do homem, dos direitos fundamentais: de uma maneira geral é o direito de cada um à sua diferença! (...).

Constata-se também que o direito à igualdade é um dos primados do direito moderno, mas não em sua maioria direitos ‘negativos’ de igualdade (‘Abwehrrechte’-direitos de defesa, direitos a uma conduta negativa – ‘Rechte auf negative Handlungen’). Pós-moderno é o direito a ser (e continuar) diferente, como afirma Erik Jayme, o ‘droit à la difference’, é o direito à igualdade material (e tópico) reconstruída por ações positivas (‘Rechte auf positive Handlugen’) do Estado em prol do indivíduo identificado com determinado grupo" [07].

Nunca é demais lembrar que o princípio da igualdade deve operar tanto no sentido de se tornar uma vedação ao legislador na edição de leis que possam criar privilégios entre pessoas que se encontram em situação idêntica como deve ser considerado uma regra de interpretação para o operador do direito, que deverá aplicar a lei e os atos normativos de forma igualitária, ou seja, sem distinções, se estiver diante de pessoas em situações iguais. Além disso, esse princípio exerce uma função limitadora perante os particulares, que não poderão praticar condutas discriminatórias, sob pena de responsabilidade civil e penal, nos termos da legislação vigente.

É importante ressaltar que o que este princípio veda, na verdade, são as discriminações arbitrárias, os favoritismos e as perseguições, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, atende ao conceito de justiça. Somente será lesado o princípio da igualdade se o elemento discriminador não estiver de acordo com os interesses protegidos pela Constituição Federal.

De acordo com André Ramos Tavares, "é preciso, portanto, encontrar um critério capaz de legitimamente apartar essas duas categorias genéricas e abstratas de pessoas. É necessário saber quais são os elementos ou as situações de igualdade ou desigualdade que autorizam, ou não, o tratamento igual ou desigual. Ou, o que dá no mesmo, é preciso concretizar esse princípio (que como qualquer outro é abstrato). A partir de critérios objetivos precisos, sob pena de torná-lo um escudo de impunidade para a prática de arbitrariedades" [08].

Celso Antônio Bandeira de Mello aborda em sua obra "O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade" a preocupação em definir critérios autorizadores do tratamento jurídico diverso dispensado pela lei a certas situações ou pessoas, que não acarretem a violação ao princípio da igualdade.

Segundo o doutrinador acima citado, três fatores devem ser verificados simultaneamente para se afirmar que um discrímen legal é compatível com o princípio da isonomia: a) o elemento tomado como fator de desigualação; b) a correlação lógica abstrata existente entre o fator diferencial escolhido e a desigualdade de tratamento dispensada pela lei; c) a consonância desta correlação lógica com os valores prestigiados no sistema constitucional [09].

Conclui o autor seu estudo afirmando que "(...) não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia. Também não é suficiente o poder-se argüir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário" [10].

Cabe mencionar, ainda, no tocante à igualdade material, a existência de medidas de discriminação positiva denominadas também de ações afirmativas, que visam corrigir as desvantagens que sofrem os grupos socialmente vulneráveis através da instituição de políticas compensatórias que estimulam a igualdade de tratamento e de oportunidades, corrigindo injustiças do passado.

A Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, que foi ratificada pelo Brasil e, por isso, se insere no âmbito interno por força do parágrafo 2º, do art. 5º da CF/88, traz a definição das ações afirmativas no item 4 de seu art. 1º ao dispor que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos".

Cabe destacar que a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher também dispõe a respeito da definição das ações afirmativas que, neste caso, visam acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher.

De acordo com o ensinamento de Kildare Gonçalves Carvalho, "as ações afirmativas envolvem um conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas públicas que têm por escopo favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição na sociedade em razão, na maioria das vezes, da prática de discriminações negativas, presentes ou passadas. São medidas que objetivam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que sejam eles neutralizados, concretizando-se mediante providências efetivas em favor daquelas categorias que se encontram em situação desvantajosa. E para a aplicação de tais medidas, as ações afirmativas se acham normalmente associadas à fixação de quotas, ou seja, estabelecimento de um número preciso de lugares ou reserva de algum espaço em favor dos membros do grupo beneficiado. Fala-se, por isso mesmo, entre outras, em quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso a cargos e empregos públicos, educação superior, reserva de vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino" [11].

Nossa Constituição possui alguns dispositivos que prevêem ações afirmativas. Entre eles estão o inciso XX, do art. 7º, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher [12] e o inciso VIII, do art. 37, que dispõe que "a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão".

A jurisprudência tem se firmado no sentido da implementação das ações afirmativas, como vemos do trecho do recente acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do Ministro Herman Benjamin, abaixo transcrito:

"ENSINO SUPERIOR - CONVÊNIO QUE ESTABELECE RESERVA DE VAGAS PARA ASSENTADOS DO GRUPO DOS "SEM-TERRA" EM PROCESSO SELETIVO DE UNIVERSIDADE - ADMISSIBILIDADE - CRIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA SUPERAÇÃO DE DESIGUALDADES SOCIAIS QUE ALBERGA MEDIDA - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS CONDIÇÕES DE ENSINO PARA NIVELAR DISCREPÂNCIAS SOCIAIS - AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA, ADEMAIS, QUE DEVE SER RESPEITADA QUANDO PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 3.º, I, E 53 DA LEI 9.394/1998.

(...)

7. Da universidade se espera não só que ofereça a educação escolar convencional, mas também que contribua para o avanço científico-tecnológico do país e seja partícipe do esforço nacional de eliminação ou mitigação, até por políticas afirmativas, das desigualdades que, infelizmente, ainda separam e contrapõem brasileiros.

8. Entre os princípios que vinculam a educação escolar básica e superior no Brasil está a "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola" (art. 3.º, I, da Lei 9.394/1996). A não ser que se pretenda conferir caráter apenas retórico ao princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, deve-se a esta assegurar a possibilidade de buscar formas criativas de propiciar a natureza igualitária do ensino.

9. Políticas afirmativas, quando endereçadas a combater genuínas situações fáticas incompatíveis com os fundamentos e princípios do Estado Social, ou a estes dar consistência e eficácia, em nada lembram privilégios, nem com eles se confundem. Em vez de funcionarem por exclusão de sujeitos de direitos, estampam nos seus objetivos e métodos a marca da valorização da inclusão, sobretudo daqueles aos quais se negam os benefícios mais elementares do patrimônio material e intelectual da nação. Frequentemente, para privilegiar basta a manutenção do status quo, sob o argumento de autoridade do estrito respeito ao princípio da igualdade.

10. Sob o nome e invocação do mencionado princípio, praticam-se ou justificam-se algumas das piores discriminações, ao transformá-lo em biombo retórico e elegante para enevoar ou disfarçar comportamentos e práticas que negam aos sujeitos vulneráveis direitos básicos outorgados a todos pela Constituição e pelas leis. Em verdade, dessa fonte não jorra o princípio da igualdade, mas uma certa contra igualdade, que nada tem de nobre, pois referenda, pela omissão que prega e espera de administradores e juízes, a perpetuação de vantagens pessoais, originadas de atributos individuais, hereditários ou de casta, associados à riqueza, conhecimento, origem, raça, religião, estado, profissão ou filiação partidária.

(...)" [13].

Cabe transcrever, ainda, o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

"UNIVERSIDADE PÚBLICA. RESERVA DE VAGAS. AÇÕES AFIRMATIVAS. COTAS RACIAIS. CORREÇÃO DE DESIGUALDADES A PARTIR DE MEDIDAS FORMALMENTE DESIGUAIS.- Ações afirmativas são medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.- A possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos arts. 3º e 5º, ambos da Constituição Federal/88 e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.- A forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade e, no presente caso, as normas objetivas de acesso às vagas destinadas a tal política pública fazem parte da autonomia específica trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Portanto, somente em casos extremos a sua autonomia poderá ser mitigada pelo Poder Judiciário, o que não se verifica nos presentes autos.- Precedente: STJ, REsp nº 1132476-PR, Segunda Turma, Ministro HUMBERTO MARTINS, unânime, DJ 21/10/2009.- Pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as diferenças e as particularidades humanas em todos os seus aspectos. A tolerância em tema de igualdade, nesse sentido, impõe a igual consideração do outro em suas peculiaridades e idiossincrasias. Numa sociedade marcada pelo pluralismo, a igualdade só pode ser igualdade com igual respeito às diferenças. Enfim, no Estado democrático, a conjugação dos valores da igualdade e da fraternidade expressa uma normatividade constitucional no sentido de reconhecimento e proteção das minorias. (Ministro GILMAR MENDES, decisão monocrática de 31.07.2009, ADPF nº 186 MC/DF, DJU de 07.08.2009)" [14].

Importante registrar que o Supremo Tribunal Federal no RE 597.285-2/RS reconheceu a existência de repercussão geral na questão da constitucionalidade do "sistema de cotas" para o ingresso na universidade, diante de sua relevância social e jurídica, constituindo atualmente o Tema 203: "Sistema de reserva de vagas, como forma de ação afirmativa de inclusão social, estabelecido por universidade", pendente de julgamento [15].

Acreditamos que a Corte Superior irá se manifestar no sentido da constitucionalidade dessa medida, pois, como vimos, as ações afirmativas buscam concretizar o princípio da igualdade a partir de sua ótica material, ou seja, da efetiva igualdade de oportunidades para todos, possuindo caráter reparatório para parcela da população excluída socialmente, atendendo, por fim, aos objetivos traçados no art. 3º da Constituição Federal, dentre eles, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a redução das desigualdades sociais e regionais.

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Sobre a autora
Anna Luiza Buchalla Martinez

Procuradora da Fazenda Nacional. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES. Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Anna Luiza Buchalla. A evolução do princípio da igualdade e sua aplicação sob a ótica material na Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3128, 24 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20924. Acesso em: 2 nov. 2024.

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