O disposto no inciso III do § 13 do artigo 50 da nova redação do Estatuto da Criança e do Adolescente inserida pela Lei n.º Lei n.º 12.010/2009 inaugurou uma discussão em torno das adoções intuito personae.
Segundo o referido dispositivo o cadastramento para fins de adoção passou a ser obrigatório. O candidato domiciliado no Brasil e não cadastrado somente pode ter deferida adoção em três hipóteses:
I – Em adoção unilateral; II – Formulada por parentes com os quais a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade; III – Por quem detenha a tutela ou guarda de criança maior de três anos desde que existam laços de afinidade e não seja constatada má-fé ou qualquer das situações previstas nos artigos 237 ou 238 do ECA.
Pois bem. Entendo que o referido dispositivo traz sérias cristalizações ao princípio da proteção integral e viola, frontalmente, o poder familiar daquele (a) que pretende entregar o filho (a) para adoção.
Em primeiro plano, não se pode admitir uma norma de natureza estritamente cogente no âmbito do micro-sistema do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O artigo 1.º do ECA, chave alquímica de toda sua interpretação, conjugado como o artigo 3.º estabelece que crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral e sendo-lhes assegurado pela lei ou outros meios todas as oportunidades e facilidades que lhes assegurem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.
Não resta dúvida que o cadastro de adotantes deve existir e num primeiro momento sua ordem ser obedecida integralmente.
Entretanto, empalhar o direito à adoção em mero procedimento administrativo – cadastro de pretendentes – é violar a amplitude da proteção integral e limitar a incidência do melhor interesse da criança ou adolescente.
Além disso, o artigo 6.º do ECA determina que na sua aplicação deverão ser levados em conta os fins sociais da lei e as exigências do bem comum. Isso, por si só, seria suficiente e necessário para soterrar a cogência absurda e a ostensividade polimórfica do dispositivo em análise.
Por outro lado, a aplicação indiscriminada da atual alteração causaria nefasta insegurança jurídica no âmbito das adoções intuito personae. Explico: caso levada ao pé da letra, a referida interpretação seria grande a quantidade de pessoas que não recorreriam à Justiça para regularizar a posse irregular de crianças e adolescentes.
Muitas pessoas prefeririam aguardar o lapso de três anos previsto na nova lei para adentra com o pedido de adoção, com manifesta situação de irregularidade que se protrairia no espaço e no tempo.
Sobretudo no norte e nordeste do país existe ainda a cultura da adoção intuito personae. Karl Binding afirmou que por trás da norma legal existe a norma cultural imperativa, que deve ser levada em conta na aplicação da lei. Ao Judiciário compete apenas acompanhar a regularidade desse tipo de adoção e não intervir arbitrariamente no poder familiar dos pais biológicos ainda não destituído antes da adoção.
Neste ponto, outra realidade abusiva exsurge da nova legislação. Estando a mãe biológica no pleno exercício do poder familiar, não pode o Estado, sob o apanágio de uma proteção ostensiva, impedir que a mesma escolha para quem deva entregar seu filho para adoção.
Como antes afirmado, a lista de cadastro de adotantes deve ser seguida, num primeiro momento, em razão da segurança jurídica. Entretanto, obedecer cegamente à mencionada conduz à violação do direito das mães num último alento de amor em relação ao filho que não pode criar: a escolha de quem o fará com responsabilidade e carinho.
Enfatizo: ao Judiciário compete apenas observar a regularidade da adoção intuito personae, e não intervir abusivamente no poder familiar ou sobrepor uma mera formalidade – o cadastro de pretendentes – ao melhor interesse da criança e adolescente.
É oportuno lembrar ainda que a Constituição Federal determina que o Poder Público somente estabelecerá casos e condições de adoção na hipótese de pretendentes estrangeiros (artigo 227, VII, § 5.º), não havendo previsão para elaboração de parâmetros ostensivo em se tratando de postulantes nacionais.
Bastante elucidativa foi a decisão da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão, no AI 2131.8.10.0002, rel. Desª Anildes Chaves, entendeu:
"Com a devida vênia, inobstante o dispositivo supra legal mencionado estabeleça como regra a existência de um registro de pessoas interessadas na adoção, assegurando, assim, a observância da ordem cronológica de tal cadastro, tal preceito, à toda evidência, deve ser mitigada em prol do princípio maior que rege a matéria, qual seja, o interesse do menor".
No mesmo caminho o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA entende pela relatividade do cadastro de pretendentes em face do superior interesse da criança e do adolescente, nos termos do AG 428544, Rel. Min. Castro Filho em 01/02/2002 e MC 015097, rel. MIn. Massami Uyeda, de 03/02/2009.
No campo doutrinário, ISHIDA aduz com clareza:
"Acreditamos, todavia que o rol não é taxativo, mas sim exemplificativo. Existirão outras hipóteses que excepcionalmente o juiz poderá deferir o pedido de adoção, como na hipótese de adoção intuito personae, considerando o interesse maior da criança ou do adolescente" (Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência – Atlas, SP,, 2010, 11.ª edição, pág. 107, sem grifos).
Cada caso deverá ser analisado dentro da sua singularidade, de acordo com os princípios da proteção integral e o melhor interesse da criança e do adolescente.
É o que impõe a natureza principiológica do Estatuto da Criança e do Adolescente.