O projeto de reforma do código Penal apresentado pelo ministério da Justiça ao Congresso revoga a Lei de Crimes Hediondos. Ë o entendimento dos Juizes de São Paulo que afirmam que o governo quer esvaziar as cadeias e resolver desta forma o problema da superlotação.
O que altera a eficácia da Lei dos Crimes Hediondos, segundo os magistrados, é a nova redação do artigo 12 da parte geral do Código Penal. Atualmente ele diz:
"As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso."
O código penal permite a mudança de formas no cumprimento de penas para todos os tipos de crime. Começando pelo regime fechado, o preso pode obter até o aberto. Mas a Lei de Crimes Hediondos veda que os condenados perigosos saiam da cadeia antes de cumprida integralmente a pena. Com a atual redação do artigo 12 vale a lei. Ao retirar do artigo a frase "se esta não dispuser de modo diverso" o governo faz com que a redação do Código Penal prevaleça sobre a Lei dos Crimes Hediondos, igualando todos os tipos de delitos em relação à forma de cumprimento das penas.
Assim, segundo o projeto do governo, condenados por crimes hediondos terão o direito de começar a cumprir pena já em regime semi-aberto, pelo qual o preso tem direito de sair da cadeia para trabalhar, freqüentar cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior e voltar à prisão apenas para dormir.
É de bom alvitre ressaltar, que a Constituição Federal garante a todos os condenados o direito à individualização da pena (art. inc. XLVI). Como disserta Luiz Luisi, " esta se opera em três planos, ou seja, no momento de sua cominação (individualização legislativa), de sua aplicação (individualização judiciária) e no de sua execução (individualização executória )". Por isso, continua o acatado mestre gaúcho, de acordo com o disposto no inciso XLVIII do mesmo art. 5o, a pena "deverá ser cumprida em estabelecimentos distintos tendo presente não só o delito, mas também, "a idade e o sexo do apenado".
Sobre o tema o eminente jurista Alberto Silva Franco, anota: "A questão da individualização da pena tem sido objeto de exame em três níveis diversos: constitucional, legal e judicial. Não há dúvida de que a individualização da pena assumiu, na Constituição Federal, a condição de direito fundamental do cidadão posicionado frente ao poder repressivo do Estado ". Isso quer significar, ainda na trilha de Alberto Silva Franco, que "não é possível, em face da ordem constitucional vigente, a cominação legal da pena sem a intervenção judicial para efeito de adaptá-la ao fato concreto e ao delinqüente. Em nenhuma dessas situações haveria um processo individualizador da pena: tudo já estaria preordenado, predisposto, o que entraria em atrito com o conceito de individualização, que quer dizer, do ponto de vista vernacular, "considerar individualmente", "um a um, em separado"(Morais, Dicionário de Morais, v. 5o, p. 931, Lisboa, Confluência, 1953).Este é o sentido e o objeto da norma constitucional".
Como sabiamente escreve o ministro Assis Toledo, "Se retirarmos do condenado a esperança de antecipar a liberdade pelo seu próprio mérito pela conduta disciplinada, pelo trabalho produtivo durante a execução da pena, estaremos seguramente acenando-lhe como única saída, a revolta, as rebeliões, a fuga, a corrupção".
Por isso, longe da ingenuidade (se não for desinformação ou maldade) dos que pregam penas duradouras e em regime exclusivamente fechado (hoje regra nos termos da Lei n. 8072/90), pode-se afirmar que, efetivamente, a progressão no regime de cumprimento de pena, além de se identificar com o princípio da humanidade das penas, é altamente meritória não apenas com vistas a uma tentativa de adequada realização de prevenção especial, mas, sobre tudo, de contenção do sistema prisional, vale dizer, de segurança pública.
Não há dúvida, e isto, além de parecer uma tendência em termos de orientação politico-criminal, é legítimo, que os crimes praticados de forma altamente reprovável, como num seqüestro seguido de extorsão que culmina com o evento morte, não possam ser os seus agentes tratados da mesma maneira que aquele que praticou um homicídio simples. Até mesmo em nome de uma adequada proporcionalidade, a distinção quanto ao tratamento é imperiosa.
Todavia, a boa política criminal não pode estar apoiada exclusivamente no medo ou na crueza da execução. Deve estar entrelaçada com medidas de caráter econômico e social que, atuantes a médio ou longo prazo, têm o condão de incidir sobre as causas da criminalidade. Ao lado disso, é fundamental uma contraposição oficial à dramatização da violência que não pode ficar aprisionada naquela que é decorrente da criminalidade. É preciso propagar a idéia de que a delinqüência é, queiramos ou não, gostemos ou não, um produto social e esta mesma sociedade deve estar envolvida na sua solução.
Quando se fala em solução, apenas para fazer um parêntese, não se pode perder de vista que a " luta contra o delito "para livrar a sociedade do crime" es un programa de una concepción de la história de la filosofia, que aspira lograr alguna vez una sociedad en la que no sean necesários ni el Estado ni el Derecho". Daí a procedência do pensamento de Miguel Reale Jr. No sentido de que "o preço da liberdade é o eterno delito. O crime só desaparecerá quando findar a liberdade". Repetindo Durkheim, "uma vez que não pode existir sociedade em que os indivíduos não divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também que, entre estas divergências, existam algumas que apresentem caráter criminoso. Pois o que lhes confere tal caráter não é sua importância intrínseca, mais a importância que a eles atribui a consciência comum".
Daí que "o crime é, pois, necessário; ele se liga às condições fundamentais de toda a vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade; pois estas condições da que é solidário são elas próprias indispensáveis à evolução normal da moral e do direito".
Portanto, a perspectiva correta de atuação é a de se conviver com taxas toleráveis de criminalidade.
A lei dos crimes Hediondos não teve a menor eficácia porque numa sociedade como a brasileira, marcadas por tantas e tão gritantes desigualdades, as normas não têm qualquer capacidade de exercer influência. Vivemos, numa verdadeira anomia. Esta está associada "com a incapacidade das sociedades em criar lealdade a seus valores básicos".
Penas altas e supressão do regime progressivo no cumprimento das penas privativas de liberdade, além de representar política criminal não-científica, reforça uma idéia de que a natureza da pena na lei objeto de estudo tem um sentido de vingança como dizia Durkheim.
Os penalistas não podem estar alheios às questões sociais e econômicas que geram a criminalidade em proporções elevadas. Isto não quer dizer que se deva adotar uma postura de leniência com a criminalidade sob pena de se assistir a constituição de um poder privado, como ocorre com os temíveis justiceiros da periferia. A curto prazo, com medidas despenalizadoras e descriminalizadoras, além do incremento de ações policiais bem conduzidas, podem-se obter resultados mais auspiciosos do que com o emprego de penas altas e supressão do sistema progressivo. Se, no entanto, aquelas forem necessárias, nunca este sistema pode ser abolido por inteiro.
O garantismo, como teoria e práxis, é hoje o que de melhor existe para a proteção do cidadão em face do poder punitivo e, também, como estratégia de defesa social ao reafirmar a importância da pena dentro dos marcos de uma retribuição proporcionada, mas sem abdicar dos ideais humanistas como o da ressocialização.
De todo o exposto, no meu limitado sentir, sendo aprovada a nova redação do art. 12 do Código Penal Brasileiro, tenho que indubitavelmente estará revogada, ou, em melhor técnica, derrogada, a "hedionda" Lei dos Crimes Hediondos.