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Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar

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08/02/2012 às 10:20
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9.AÇÃO ORDINÁRIA DE DESERDAÇÃO: ASPECTOS PROCESSUAIS

A deserdação exige previsão em testamento, com expressa declaração de causa [73]. Portanto, incumbe ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, provar a veracidade da causa [74], consoante o disposto no artigo 1.965 do Código Civil, verbis:

"Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador."

O parágrafo único do referido artigo ainda prevê:

"O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento." [75](g.n.)

Trata-se evidentemente de prazo decadencial, dentro do qual deverá ser ajuizada a competente ação ordinária de deserdação [76] no juízo do inventário, mas não nos mesmos autos. Apresentado o testamento, efetuado o registro, o juiz determina o arquivamento e seu cumprimento (Código de Processo Civil, artigo 1.126). A ação de deserdação deve ser instruída com a certidão do testamento. A ausência do testamento autoriza a extinção do processo (Código de Processo Civil, artigo 267, VI). A ação tem eficácia declaratória e produz efeito retroativo a partir da abertura da sucessão. [77] (g.o.)

Dispõem de legitimidade ativa para a demanda os demais herdeiros e quem irá se beneficiar com a exclusão do deserdado. Não se pode excluir a possibilidade de a ação ser proposta pelo inventariante, bem como pelo cônjuge ou companheiro sobreviventes. Também o onerado (Código Civil, artigo 1.934, parágrafo único), o testamenteiro e o Ministério Público podem propô-la, pois ambos têm o dever de zelar pelo cumprimento do testamento, onde se encontra a manifestação de vontade do testador de deserdar um herdeiro. [78]

Note-se que as causas de deserdação previstas nos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil, aplicam-se apenas aos herdeiros necessários, eis que, tendo eles direito à legítima, é preciso que haja motivo suficientemente grave para que sejam excluídos da herança. Isso não significa, porém, que os demais herdeiros não possam ser deserdados. Para que estes herdeiros (companheiros e colaterais) sejam excluídos do direito à herança, não é preciso invocar nenhuma causa; basta que o testador disponha do seu patrimônio, sem os contemplar (Código Civil, artigo 1.850). [79]

Outrossim, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim [80] ressaltam que "essas causas constituem numerus clausus, por isso que não admitem interpretação extensiva, para abrangência de outros atos de ingratidão ou de ofensa à pessoa do autor da herança. Assim, com relação ao abandono do descendente ou do ascendente, não basta que haja esfriamento de relações ou mesmo atos de hostilidade entre esses parentes". (g.n.)

Sucede que, a nosso ver, caso esse "esfriamento de relações" seja de tal magnitude que revele, indubitavelmente, absoluta falta de vínculo afetivo entre ascendentes e descendentes, por período considerável de tempo, abertas estariam as portas da deserdação por quebra de afetividade [81], não por aplicação literal da lei (Código Civil, artigos 1.962 e 1.963), mas sim por aplicação dos princípios, adotando-se a interpretação conforme a Constituição. Veja, finalmente, que sequer haveria qualquer necessidade de alteração da lei, com o fito de implementar a deserdação por falta de afetividade, pois a própria interpretação sistemática do ordenamento jurídico autoriza tal procedimento, desde que declarada a causa pelo testador na cédula testamentária, conforme previsto no artigo 1.964 do Código Civil.


10.CONCLUSÕES

Ao final deste ensaio apresentamos uma breve síntese de nossas conclusões, porém não sem antes esclarecer que jamais foi nossa intenção questionar se os róis dos artigos 1.962 e 1.963, ambos do Código Civil Brasileiro, são ou não taxativos. Parece-nos fora de dúvida que as hipóteses compreendidas nos referidos artigos de lei são positivamente numerus clausus, consoante entendimento unânime da doutrina. Logo, se algum mérito houver no presente estudo é justamente o de tentar demonstrar que ao lado das regras existem também os princípios, espécies do gênero normas jurídicas, sem que o intérprete tenha que se valer de um ou de outro de maneira subsidiária e sem que haja necessariamente uma hierarquia entre eles. Abaixo, então, seguem as nossas derradeiras considerações de forma articulada, sem a preocupação de repetir, na mesma ordem, as principais ideias expostas ao longo do texto:

a) É uma ilusão pensar que o Direito possa estar totalmente contido nas leis (rectius: regras). Esta, definitivamente, é uma falsa percepção, que não condiz com uma análise sistemática do ordenamento jurídico;

b) O juiz, ao julgar o caso concreto, deve sempre buscar a solução mais justa, equânime, mesmo quando a encontre fora das regras. Isso não implica, necessariamente, num desprestígio às leis, pois o próprio sistema o autoriza a assim proceder;

c) A afetividade é princípio geral do Direito das Famílias, com clara repercussão no campo sucessório. Tendo havido uma grave e duradoura quebra de afeto entre herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), isso autoriza o autor da herança, em tese, a deserdá-los, por testamento, uma vez indicada a causa. E nem poderia ser diferente, pois a ausência de afetividade descaracteriza a entidade familiar e, consequentemente, as recíprocas obrigações civis, não bastando apenas a existência de laços de sangue;

d) Pode-se afirmar que existe uma família onde houver afetividade como elo de união e realização pessoal entre os seus diversos integrantes;

e) Há que se ter em mente que mesmo tendo sido assegurado o direito de herança, por meio da Constituição Federal e da lei civil, isso não quer dizer, necessariamente, que herdeiros não possam ser deserdados, por falta de afetividade e de boa-fé familiar, mesmo que estas hipóteses não estejam expressamente previstas nos róis taxativos dos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil;

f) Para que se efetive a deserdação será preciso testamento válido com expressa declaração do fato que a determina. Logo, imprescindível será que o disponente especifique a causa legal ou principiológica que o levou a deserdar herdeiro necessário;

g) A nosso ver, o rompimento definitivo da afetividade, por si só, autoriza a deserdação, por mera aplicação sistemática dos princípios, sem que haja sequer necessidade de se proceder a qualquer inclusão ou alteração do texto da lei;

h) O sistema jurídico atual é aberto e móvel, repleto de cláusulas gerais, conceitos legais indeterminados, conceitos legais determinados pela função, além dos princípios gerais do direito, em constante interação. Para acudir às novas demandas, decorrentes da maior complexidade da vida moderna, foram identificadas, desenvolvidas ou aprofundadas categorias específicas, voltadas sobretudo para a interpretação constitucional, que incluem, dentre outros, a normatividade dos princípios;

i) Entre regras e princípios constitucionais não há hierarquia jurídica, como decorrência do princípio instrumental da unidade da Constituição. Logo, não há empecilho algum para que se opere a deserdação de herdeiros necessários, por quebra de afetividade, mesmo não sendo hipótese prevista no Código Civil, pois os princípios têm conteúdo normativo. O intérprete deve buscar a justiça, ainda quando não a encontre na lei;

j) A boa-fé constante do Código Civil de 2002 não é apenas a boa-fé contratual e dos negócios jurídicos, mas também a boa-fé familiar, eis que um pai não poderá agir de má-fé em relação aos seus filhos, nem vice-versa. Ferir-se-ia, fundamentalmente, a eticidade, que é um dos três princípios norteadores do Código Reale, ao lado da socialidade e da operabilidade;

k) No caso concreto, exposto na introdução deste ensaio, temos por absolutamente reprovável o fato de a filha (autora da ação de investigação de paternidade) ter se aproximado de seu pai, após décadas de voluntário afastamento, tão só para assegurar o seu naco da herança, sem qualquer envolvimento e compromisso afetivos. Para se dizer o mínimo, isso configuraria um abuso de direito;

l) É preciso abandonar a ideia de que "filho é filho e ponto final", pois à luz da eficácia irradiante dos direitos fundamentais oriunda da Constituição Federal, "filho é filho desde que haja um mínimo de afetividade em relação a seus genitores". Do contrário, será um estranho – não um filho – e estranhos não devem obrigatoriamente herdar;

m) A deserdação é uma pena civil, sendo os seus requisitos indispensáveis: a) a validade do testamento; b) a existência de herdeiros necessários; c) a existência de cláusula de deserdação; e d) a prova da existência da causa arguida pelo testador, por meio de ação ordinária;

n) Finalmente, entendemos que, uma vez existindo absoluta falta de vínculo afetivo entre herdeiros necessários, por período considerável de tempo, autorizada estaria a deserdação por quebra de afetividade, não por aplicação literal da lei (Código Civil, artigos 1.962 e 1.963), mas sim por aplicação dos princípios, adotando-se a interpretação conforme a Constituição. Nesse sentido, não haveria necessidade de alteração da lei, com o objetivo de implementar a deserdação por falta de afetividade, pois a própria interpretação sistemática do ordenamento jurídico autoriza tal procedimento, uma vez declarada a causa pelo testador na cédula testamentária (Código Civil, artigo 1.964).


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A deserdação ante a ausência de afetividade na relação parental <http://jus.com.br/artigos/19722>

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Sobre o autor
Tarlei Lemos Pereira

Especialista em Direito de Família e das Sucessões e Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP; Membro fundador da Academia de Pesquisas e Estudos Jurídicos – APEJUR; Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS PEREIRA, Tarlei. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21035. Acesso em: 25 abr. 2024.

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