Artigo Destaque dos editores

Direito e música: aproximações para uma "razão sensível"

Exibindo página 2 de 3
19/02/2012 às 09:07
Leia nesta página:

5. DIREITO E JUSTIÇA

Direito e Justiça são dois lados da mesma moeda. O Direito deve buscar a Justiça. O Direito deve ser Justo[30]. Nesse particular, vale lembrar Eduardo Couture que, em seus Mandamentos do Advogado, no 4º mandamento, nominado como “luta”, pontificou: “teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça”.

Mas o que vem a ser Justiça?

E mais: como alcançá-la?

Para tentar responder a essas questões, que de há muito intrigam o ser humano, convém citar uma passagem de Cecília Meireles que, ao tentar descrever o que seria liberdade, sintetizou: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”. Pois bem, o mesmo se pode dizer da Justiça: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”[31].

Na mesma esteira, está observação do personagem Pip, na obra Great Expectations, de Charles Dickens: “não há nada que seja percebido e sentido tão precisamente quanto a injustiça”.[32]

Estas passagens demonstram que a concepção de Justiça, mais do que descrita, explicada ou definida deve ser sentida, apreendida, captada, aferida, aquilatada num “mix” que envolve lei e fatos; texto e contexto; pessoas, circunstâncias e contigências que interagem entre si e afluem para um entorno.

Justiça não é um conceito racional. Tanto que, por mais esforço e tinta que filósofos e filósofos do Direito, de Platão a Aristóteles; de São Tomás de Aquino a Kant, passando por Rousseau; de Radbruch a Perelman, Rawls, Bobbio ou Amartya Sen, pouco se afastou, “mutatis mutandis”, do “dar a cada um o que é seu”, que, por sua vez, já estava previsto no Digesto I, 1, 1; e no Institutas, I, 1, 3, dos Romanos[33].

Esta definição de Justiça, porém, é insuficiente e remete a outros questionamentos. Por exemplo: “o que deve ser dado” e “a quem deve ser dado”?

Isto apenas confirma que a Justiça dificilmente será alcançada pelo o feixe racional. Deve ser buscada além dos limites da razão, isto é, a partir de sentimentos. Raramente, será materializada – exceto por suposto acaso –, por meio de leituras autômatas de disposições legais, elaborados “pret-a-porter”, conforme previsão do distante e imaginário personagem conhecido como legislador, que, de modo geral, não anteviu – sequer imaginou – o imprevisível, o imponderável que é a vida humana; individual ou coletiva. É nesse diapasão, que Maria Francisca Carneiro, defende que “o Direito não seria – não é – uma atividade meramente racional, mas englobaria também aspetos tangentes à emoção e à sensibilidade”.[34]

Com efeito, operar o Direito – e com Justiça – pressupõe, dentre outras, uma postura de empatia para com o próximo. Colocar-se no lugar do outro, “sentir” seus dramas, seus sonhos, seus desejos; pôr-se em sua posição; vislumbrar suas expectativas, legítimas ou não; perceber suas dores, frustrações, anseios e medos; reais ou fictícios, e tentar, no caso concreto, valendo-se, de preferência, da régua de Lesbos, mencionoda por Aristóteles, no Capítulo 5, de sua Ética a Nicômaco[35], restabelecer o equilíbrio (“mesótes”) que tenha sido abalado ou rompido por razões específicias e/ou inusitadas no episódio em exame.

Aqui repousa a ideia de Justiça, seja ela distributiva, comutativa, restaurativa, retributiva, o que transcende a meras regras frias e/ou a partir de interpretações mecânicas. Antes, exige sentimentos próprios da “Aesthesis”, em que a Música, inegavelmente, se insere e auxilia.

Por evidente, não se pretende aqui desenvolver ou expor novo método ou teoria de raciocínio jurídico apto a proclamar uma novel teoria da Justiça. Nada mais equivocado. Defende-se, sim, a ideia de que o Direito não pode prescindir do conceito e mesmo da busca da Justiça por mais difícil e, talvez, utópico que isso possa parecer. Caso contrário, pode-se incorrer num niilismo jurídico pernicioso sem precedentes e com ele aceitar, por indiferença ou passividade, qualquer Direito, mesmo aquele próprio de regimes totalitários, relegando ao esquecimento todos os valores humanitários presentes nos Direitos Fundamentais, conquistados que foram a duras penas em Séculos de Civilização, o que seria inegável retrocesso[36].

Neste particular, Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida advertem: “O Direito, quando se afasta da justiça, revela-se, em grande parte, arbítrio, força opressora, puro ato de imposição, e, com isso, sem ser balança, oprime pela espada que deve proteger”.[37]

A dificuldade de se atingir e se concretizar um Direito Justo, mais do que uma meta ou um objetivo, será sempre um desafio do qual não pode se afastar seu intérprete/aplicador. A dificuldade deve ser vista mais como um elemento de motivação, e não como um fim inatingível. Dificuldade, aliás, não é sinônimo de impossibilidade, até porque, como a experiência demonstra, decisões judiciais justas são proferidas!

Seguindo essa mesma orientação, estão as entusiáticas recomendações de Cesar Asfor Rocha, na obra Cartas a um jovem juiz:

A nenhum de nós é estranho o tormentoso problema da justiça, não faltando os que dizem que ela é algo tão subjetivo e rebelde à conceituação que é empreendidamento impossível defenir-lhe o exato conteúdo. Mesmo os que participam dessa desalentadora conclusão sabem detectar uma injustiça quando a encontram, e isso já é suficiente para afirmar que a justiça é um bem que se pode alcançar; basta persegui-lo com obstinação e denodo, o que me faz lembrar a reflexão de Calamandrei ao dizer ser preciso acreditar na justiça, que, como todas as divindades, só se revela àqueles que nela creem.[38]

Em arremate, a aproximação entre Direito e Música emerge como fator de complementação e diálogo – jamais de exclusão – entre razão e emoção, o que alarga e amplia os caminhos para se chegar a um Direito Justo.


6. RISCOS DE UMA SUBJETIVIDADE DEMASIADA?

No contraponto do que aqui se expõe, poder-se-ia argumentar que esta linha de pensamento contribui em demasia para a subjetividade, para “decisionismos”, para a manipulação de linguagem, para apelos emocionais descontexutalizados, para um relativismo quase absoluto que aceita qualquer solução jurídica, conforme as aspirações ou convicções pessoais de justiça e mesmo habilidade do detentor da palavra, condutor e direcionador do raciocínio jurídico então alinhavado.

A crítica não procede.

Não há dúvida que toda forma de subjetividade, de fato, traz em si visões de mundo diferentes, a partir das experiências do sujeito respectivo. Visões estas (valores) que, sem dúvida, irão repercutir na solução jurídica do caso. Contudo, negar a subjetividade é antinatural. Ela sempre vai existir. Sobre o tema, veja o que diz o neurocientista Miguel Nicolelis:

Circuitos neurais formados por milhões ou mesmo bilhões de neurônios produzem continuamente propriedades emergentes (...). Propriedades emergentes também são responsáveis por outras funções cerebrais, mas altamente complexas, como a percepção do mundo que nos cerca, a geração de expectativas sobre eventos futuros e nosso senso de existir como indivíduos únicos.

O sistema nervoso está sempre tomando a iniciativa e buscando informações tanto sobre o corpo que habita como o mundo que o circunda, compondo de maneira cuidadosa a máscara de realidade, opiniões, amores (...). Essa procura incessante e quase obsessiva por informações e conhecimento mantém o que gosto de chamar de “ponto de vista próprio do cérebro”.

(...)

Dessa forma, a visão cartesiana de que o cérebro humano interpreta ou decodifica passivamente sinais gerados no mundo exterior, sem nenhuma opinião prévia, prejulgamento ou expectativa vinculados a esse processo, não pode mais resistir à evidência experimental acumulada nas últimas décadas.[39]

A par disso, a subjetividade, inerente à condição (e mente) humana, longe está de ser um problema. Ao revés, é um dos caminhos a ser trilhado pelo operador do Direito em busca de um Direito Justo. O Direito, assim como a vida, não é estático. Deve, pois, acompanhar os passos da civilização, sejam estes para frente ou para trás. Logo, somente um intérprete; ou melhor: um sujeito (daí subjetividade) atento e, sobretudo, sensível ao cenário subjacente é que poderá materializar um Direito com efetividade e em sintonia com a vida e valores que o cercam.

Além do mais, todas as vezes que se tentou construir um Direito objetivo, certo e seguro; rígido e fechado, os resultados foram desastrosos. Ficou demonstrado que a ideia de completude do ordenamento jurídico e do juiz como a boca da lei, nos moldes da Escola da Exegese da França, são incompatíveis com a vida real. O Direito, assim como a vida, se constrói e se reconstrói dia a dia; num fenômeno autopoiético, bem ao estilo descrito por Niklas Lhumann[40].

Some-se a isso, que a subjetividade que existe no Direito não significa que todo o poder de dizer o Direito está restrito a apenas um indivíduo, hipótese em que, aí sim, haveria riscos de uma subjetividade exacerbada; de uma ditadura judicial ou daquele que seja dotado da melhor retórica. Mas o que se tem hoje é que a interpretação/aplicação do Direito se realiza mediante um processo dialético, de modo que ao se mencionar o vocábulo “juiz”, não se está a dizer “um” juiz ou “o” juiz, mas a se referir ao Poder Judiciário, que, por seu turno, é composto de vários juízes e que, num único processo, em regra, atuam em vários níveis e graus recursais, pulverizando o “juris dictio”. Isto, ao invés de restringir e concentrar o debate, amplia-o pois é da soma que resulta o todo.

Ainda nesta esteira, não se pode esquecer que existem inúmeros critérios, princípios e institutos jurídicos, edificados ao longo da História do Direito, que permitem coibir raciocínios jurídicos teratológicos, supostamente decorrentes de uma subjetividade inaceitável. Podem ser lembrados a necessidade de se observar o devido processo legal em sua concepção substancial; que, por si só, traz implícito o contraditório e a ampla defesa; a oportunidade de revisões das decisões judiciais, via recursos; os delineamentos que materializam a teoria das provas. Há, outrossim, os métodos e princípios de hermenêutica jurídica que permitem checar o caminho trilhado pelo operador ao construir seu discurso jurídico, tudo com vistas a impedir erros e falhas. Erros e falhas, a propósito, que, queiram ou não, sempre existirão, por ser tratar de obra executada por humanos (“errare humanum est”), o que, também, não pode ser desconsiderado, sob pena de negar a realidade da vida.

Neste cariz, o que se pode dizer é que a relação entre Direito e Música não ignora a subjetividade e os sentimentos, as emoções e os valores que a acompanham. Ao contrário, amplifica-os e, por conseguinte, enriquece o debate, não de maneira autoritária, cega, abstrata ou formal, mas aberta ao ser humano; à vida. Estabelece pontes que permitem unir razão e emoção, o que, em outros estudos, vem sendo chamado de “razão sensível”[41]. E é neste cenário que Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida sustentam: “quando razão e sensibilidade se encontram, o Direito opera (a)Justiça”[42].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A associação entre Direito e Música permite ao estudioso e ao operador do Direito um papel mais ativo, flexível, perspicaz e atento à dinâmica que caracteriza e torneia as relações intersubjetivas. Alerta-o que atrás da “dureza” da lei e da “frieza” dos autos existem pessoas, movidas por sentimentos, os quais não podem ser desprezados pelo operador jurídico, e que assim o fazendo estará contribuindo para um Direito melhor interpretado/aplicado; um Direito Justo.

Esta aproximação, cumpre destacar, não nega ou exclui as balizas que fundamentam o Direito em suas premissas racionais. Muito ao contrário, complementam-no e auxiliam-no numa busca convergente entre Direito e Justiça.

 


 

7. CONCLUSÃO

Do desenvolvimento do tema, foram extraídas as seguintes conclusões:

1.              Estudos transdisciplinares têm sido uma nova maneira de se estudar o Direito, ampliando o espectro do investigador. Atualmente, há registros de pesquisas envolvendo Direito e Cinema, Direito e Literatura, Direito e Matemática e, inclusive, Direito e Música. Esta perspectiva contribui para uma visão mais humanística e sensível de captar a realidade da vida e da natureza humana, sem negar ou rejeitar a técnica jurídica, o que, acredita-se, contribui para uma melhor interpretação/aplicação do Direito.

2.              Já existem pesquisas cotejando Direito e Música. Embora estas ainda estejam em fase inicial, já se pode perceber que a Música, como expressão artística que é, permite ao estudioso e operador do Direito acessar campos que os limites da razão não adentra. Amplia-se, pois, o instrumental do estudo do Direito.

3.              Dentre os vários pontos em comum entre Direito e Música está a interpretação. Tanto a Música, como o Direito tomam por base referenciais. Na Música esse referencial é a partitura; no Direito, de modo geral, a lei. Sucede que, por mais objetivo que sejam esses sinais (signos) tidos como referenciais, sempre será necessária a intervenção humana; o intérprete. É este que fará a ponte entre esses sinais e a realidade, visando a harmonia, tanto no Direito, como na Música.

4.              A relação entre Direito e Música permite a aproximação entre Direito e Estética. Enquanto o Direito busca a Justiça, a Estética se foca no Belo. Ambos têm como pressuposto a sensibilidade de seus agentes para expressar o que não se revela pela mera técnica. A técnica é instrumento empregado por seus agentes para se chegar ao Belo ou ao Justo. Mas só a técnica não basta para atingir seu fim, salvo situações excepcionais, decorrentes mais do acaso do que de outros fatores.

5.              A definição clássica e secular de Justiça (“dar a cada um que é seu”) evidencia sinais de limitação no plano racional. Afinal, o que deve ser dado e a quem? Isto confirma que um Direito Justo exige mais do que regras pré-moldadas para a dinâmica, complexa e, por vezes, imponderável da realidade da vida e dos relacionamentos intersubjetivos. Exige sensibilidade para ver o que, ordinariamente, não está à vista.

6.             A abertura que a relação entre Direito e Música propicia ao reconhecer o fator sensibilidade presente em ambos, não implica em riscos de uma subjetividade demasiada e, com isso, colocar em risco a segurança jurídica. Primeiro, porque a subjetividade é inerente à condição humana. Segundo, porque existem critérios e institutos jurídicos a coibir disparates jurídicos, eventualmente decorrentes de uma subjetividade que se revele inadmissível em casos concretos. Terceiro e, por último, a relação entre Direito e Música, ao reconhecer o fator emoção na contribuição de um Direito Justo, não exclui os instrumentos da razão jurídica. Ao contrário, implica na ampliação de horizontes, complementares e dialógicos na materialização de um Direito Justo.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
José Ricardo Alvarez Vianna

Juiz de Direito no Paraná. Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Mestre pela UEL. Professor da Escola da Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, José Ricardo Alvarez. Direito e música: aproximações para uma "razão sensível". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3154, 19 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21120. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos