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Análise das ações afirmativas à luz do princípio da igualdade

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25/02/2012 às 09:46
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5. Conclusão

Afirmamos ainda categoricamente que houve uma evolução do princípio isonômico. Partimos de um Estado Liberal em que vigorava a neutralidade e uma obtusa igualdade formal. Chegamos, enfim, ao Estado Social capaz de sopesar as desigualdades e implantar medidas afirmativas.

Dessa forma, ficou evidente que as ações afirmativas são uma evolução do princípio da igualdade.

A respeito do surgimento dessas medidas afirmativas, entendemos que o desenvolvimento dos programas positivos começou nos Estados Unidos. Entretanto, não foi com o intento de se promover o princípio da igualdade que eles puseram em prática tais programas. Pelo contrário, os programas positivos foram implementados com o objetivo de evitar uma segunda guerra civil nesse país e não em razão da grande preocupação deles com a raça negra. Afinal, como vimos, foi o próprio governo americano quem criou o sistema Jim Crown de segregação.

Percebemos também que as medidas se iniciaram como políticas neutras de combate à discriminação institucionalizada, a chamada “política cega à cor”, só depois evoluindo para um sentido ativo e inclusivo.

Vimos que as ações afirmativas, também denominadas discriminações positivas na terminologia do direito europeu, são instrumentos de promoção da igualdade material ou substancial direcionados para as minorias sociais. Termo este que se vincula a idéia de vulnerabilidade e que independe de amplitude quantitativa.  

Compreendemos ainda que as ações afirmativas são políticas de caráter temporário para a maior parte da doutrina. Havendo, porém, quem defenda que estas são definitivas. Por fim, vimos que elas podem ser praticadas por entidades privadas ou pelo governo, nos diferentes poderes e nos diversos níveis.

Em relação à natureza dessas ações, concluímos que a teoria da Justiça Compensatória e a da Justiça Distributiva podem ser conjugadas, pois nada obsta que as ações afirmativas encontrem justificativas tanto nas injustiças cometidas no passado, quanto na necessidade de distribuir benefícios, riquezas, direitos, vantagens e posições que foram monopolizadas por certos grupos em razão da discriminação.

Quanto aos objetivos dessas medidas, entendemos que as ações afirmativas buscam primeiramente a consecução do princípio da igualdade material, garantindo oportunidades aos indivíduos ou grupos excluídos socialmente. Além desse objetivo principal, tais ações buscam também mudança na mentalidade dos homens, posto que preconceitos e discriminações estão arraigados culturalmente nos modos de pensar tradicionais.

 Desejam ainda: uma maior convivência com a diversidade; eliminar o racismo institucional e as barreiras artificiais e invisíveis; reparar danos causados a grupos no passado e no presente; concretizar os princípios da diversidade e do pluralismo; criar personalidades emblemáticas; e fortalecer a consciência de que pertencemos todos a uma comunidade política comum.

Percebemos também, ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, que no sistema constitucional e infraconstitucional já são adotadas algumas medidas afirmativas. Ademais, ficou claro que as cotas não são a única modalidade de política positiva. Existem diversas outras medidas, como bolsas de estudos, reforço escolar, programas especiais de treinamento, linhas especiais de crédito, estímulos fiscais diversos e assim por diante.

Oportunamente, diferenciamos racismo, preconceito e discriminação. Nesse tópico, ficou claro que o racismo é a doutrina que sustenta a superioridade de um grupo em relação a outro. Preconceito, por sua vez, é uma idéia preconcebida, isto é, formada antecipadamente, sem maiores ponderações ou conhecimento dos fatos. Diz respeito a sentimentos e opiniões intolerantes. Com efeito, trata-se de algo abstrato, de índole subjetiva, que pode inclusive nunca se manifestar. Já a discriminação estabelece diferenças, separa, segrega. Esta é, portanto, uma desigualdade de tratamento.

Vimos ainda que a discriminação pode ser legítima ou ilegítima. Na ilegítima, os critérios usados são irrazoáveis. Essa discriminação segrega grupos ou pessoas, em razão de sua cor, orientação sexual, idade, compleição física, etc. Já na legítima, os critérios diferenciadores entre as pessoas são justificáveis.

Constatamos ainda que as discriminações decorrentes da natureza da atividade ou do negócio (business necessity) e as ações afirmativas são espécies de discriminações legítimas.

Analisamos os argumentos contrários às ações afirmativas. Observamos que as principais críticas à ação afirmativa são as de que ela menospreza o princípio universal da igualdade; não leva em conta o sistema de mérito individual; reforça a discriminação e o preconceito racial e; a dificuldade de identificar quem é negro e quem é branco no Brasil.

Mostramos o quanto cada um desses argumentos é frágil, razão pela qual as ações afirmativas se estabelecem firmemente como instrumento hábil de combate a discriminação ilegítima.

Ao analisar as ações afirmativas à luz do princípio constitucional da igualdade, concluímos que nem todo programa positivo é invariavelmente amparado por esse princípio. Sendo assim, constatamos que é imprescindível que cada medida específica seja diagnosticada no caso concreto.

Assim, em resposta a problematização oferecida na introdução do presente do trabalho, sobre até que ponto o desvio da igualdade formal é admissível para se atender a propósitos de igualdade de fato, entendemos que a resposta não pode ser dada a partir de uma análise em abstrato.

Cada caso de desequiparação deve ser analisado frente às dimensões do princípio da igualdade qual direito fundamental. Nessa análise, devemos apurar: se há fundamento razoável e proporcional para atribuir um tratamento diferenciado; se há conformidade ou adequação dos meios ao objetivo visado; se não há um meio de ação menos gravoso, capaz de produzir resultado similar; se elas são estreitamente desenhadas para o problema social a visam combater; se os resultados obtidos pela política afirmativa são proporcionais à intervenção efetuada; se há uma correlação lógica entre o fator de desigualação e o tratamento jurídico diferenciado; e, por fim, se essa correlação está de acordo com os interesses absorvidos no sistema constitucional.


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Poliana Pereira Garcia

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GARCIA, Poliana Pereira. Análise das ações afirmativas à luz do princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3160, 25 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21152. Acesso em: 19 abr. 2024.

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