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Direitos humanos e democracia brasileira: uma crítica

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27/02/2012 às 17:22
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5.  UMA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO

A quem interessa a análise do Estado a partir de compreensões abstratas de seu funcionamento?

Em Marx, antes do enfrentamento do direito como superestrutura, há um debruçar sobre a própria existência da fonte da qual emanam os comandos, as regulações.

O primeiro aspecto a ressaltar é que a crítica de Marx se dirige à política enquanto tal, à política  em geral, portanto, atinge desde as primeiras formas de Estado (tribal, antiga etc.) até o Estado  moderno, inclusive na sua forma mais desenvolvida, a democrática. A Ideologia Alemã é a obra onde encontramos de maneira mais explícita e desenvolvida a crítica da política enquanto tal. O ponto de partida fundamental de Marx é a afirmação de que o Estado não pode ser compreendido a partir de si mesmo, como um ser autônomo, mas apenas a partir de sua base real, ou seja, da sociedade civil, das relações sociais reais que formam a base da existência humana em cada período, portanto do modo de produção da vida, que tem como base a produção da vida material[22]

Nasce, portanto, o Estado, já das relações desiguais que irrompem no seu seio. A divisão do trabalho e a propriedade privada são as notas essências do método marxiano[23] de observação da realidade. Aqui, lança-se um enfoque paralelo: ora se o Estado em Marx (como preocupação primeira, antecedendo ao direito como tecnologia de dominação) – enquanto ficção – serve à legitimação da opressão, portanto, nascendo para um fim determinado (dissociado da visão humanística dos direitos humanos), também o é a democracia enquanto modelo de como o poder será exercido.

Se um olhar mais atento pode conduzir à idéia de que o Estado deve ser encarado a partir de suas bases reais (divisão do trabalho e propriedade privada), tal atenção pode conceber a democracia como um instrumento de legitimação da própria desigualdade, logo, a ordem jurídica que encerra haverá de satisfazer o ânimo de dominação que forja a classe dominante. As razões se encontram.

Nesse passo, a ideologia contida na acepção do termo Estado Democrático de Direito se presta à confirmação de que o ente fictício “só existe por causa da propriedade privada” [24], reforçando a sua natureza (democrática) de conter a massa – numa espécie de domesticação necessária – propícia à manutenção dos privilégios dos grupos que ocupam (ainda que conjunturalmente) o poder político (no caso brasileiro e em se tratando das elites política e econômica). Destaque-se:

Quando falamos da concepção de ideologia, numa concepção marxista, compreendemos que há dois momentos fundamentais que urge rapidamente esclarecermos pra fechar a delimitação conceitual. Assim, aludimos à divisão que é feita no seu pensamento – que serve como propósito didático, mas não poderia ser tomado absolutamente como um corte epistemológico – com o antes e pós 1845. (...) Daí, ideologia são as “soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente ou disfarçam, a existência e o caráter das contradições”[25]

Não desalinhada com o conteúdo já explicitado, a crítica marxista sobre o direito é uma espécie de longa manus da crítica ao Estado (antigo e moderno) e à política, vale dizer: ora, se o Estado e a política articulam-se no sentido de frear a “emancipação” da classe trabalhadora, é a partir do direito que tal intento será concretizado (daí a importância de um estudo aprofundado sobre as contribuições do realismo jurídico norte-americano).

Dominação pelo direito, já que o direito implica necessariamente o “fim do Estado”, a sua contenção orgânica (limites ao arbítrio), e a salvaguarda dos bens e interesses dos dominados (ideologia?).

Em Marx, a aproximação do direito (na teoria) e do que ocorre na práxis social tenderia a mitigar a ideologia dominante. Dá luta advém a consciência de classe. Nesse sentido, o legado marxiano (e marxista) encontra ainda hoje um espaço amplo à discussão das condições reais por que milhares de brasileiros são submetidos.


6. CONCLUSÃO

A crítica ao Estado e ao direito – enquanto palco e instrumento da esperança democrática – se faz necessária porque a prática exercida após a inauguração da democracia pós-88 não se coaduna com o ideal de promoção, resguardo e defesa dos direitos dos homens e mulheres que são diariamente vitimizados em decorrência das prática políticas realizadas pelas elites que detém o poder (e o aparelham nos três Poderes). Democracia, no Brasil, não implica necessariamente na melhoria das condições de vida (condições reais) de grande parte de seu povo.

Por fim, a democracia brasileira, baseada que é no poder econômico e político dos grupos que protagonizam a cena política, utilizando-se de toda uma estrutura constitucional e infraconstitucional a serviço da satisfação de seus próprios interesses, logo, em detrimento do “bem comum”, ou do reconhecimento e da afirmação dos direitos humanos e fundamentais, tão somente é a comprovação da categoria “superestrutura ideológica”.


REFERÊNCIAS

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Acesso em: 11 Nov. 2011


Notas

[1] Utilizamos aqui a noção heracliteana do termo.

[2] Em entrevista ao Canal Orientando Direito, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=k-taucNrX-8

[3] Considerada a ideologia em Marx, extraída de MARX, Karl; ENGELS, Friderich. A ideologia alemã: Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Centauro, 2005.

[4]  Expressão parafraseada de Wiliam James ao tratar do pragmatismo “um novo nome para os velhos modos de pensar”, em: JAMES, Willian. Pragmatismo. In: Escritos coligidos. Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril cultural, 1974.

[5] Qual a razão de ser dos direitos humanos num ambiente em que as necessidades do homem são plenamente satisfeitas?

[6] FEITOSA, Enoque. Direitos Humanos: entre promessa formal e as demandas por sua concretização (um ensaio de interpretação marxista). IN, SILVA, Arthur Stamford (org.) O Judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011, p. 80.

[7] MARX, Karl.  A Questão Judaica. São Paulo: Centauro, 2005, p.78.

[8] VIANA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. 2. ed.rev. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955, p.606.

[9]MONDAINI, Marco. Direitos Humanos e Marxismo. Disponível em: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1414

[10] HOLLANDA, Cristina Buarque de. Teoria das Elites. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.14.

[11] Id.Ibid,p.15.

[12] SARTORI, Giovani. Teoría de la democracia: el debate contemporâneo. Madrid: Alianza, 1988.

[13] HOLLANDA, Cristina Buarque de. Teoria das Elites. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.34.

[14] SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p.336.

[15] Vale ressaltar que temos um histórico de quatro Constituições outorgadas.

[16] Retirado da apostila “Refletindo sobre democracia e os direitos humanos, a partir de Bobbio”, material aplicado na disciplina Democracia e Direitos Humanos, no mestrado em direitos humanos da Universidade Federal da Paraíba.

[17] HOLLANDA, Cristina Buarque de. Teoria das Elites. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 41.

[18] Art.61, § 2º CF/88: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

[19] CARBONARI, Paulo César. Democracia e Direitos Humanos – Reflexões para uma agenda substantiva e abusada. IN: TOSI, Giuseppe e BITTAR, Eduardo C. B. (orgs.). Democracia e Educação em Direitos Humanos numa época de insegurança. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Brasília, 2008, p. 24.

[20] HAYEK, Friederich A. Los Fundamentos de la libertad. 7.ed. Madrid: Unión Editorial S.A, 2006, p.172.

[21] RABENHORST, Eduardo Ramalho. Necessidades básicas e direitos humanos, In: BITTAR, Eduardo C.B.; TOSI, Giuseppe (orgs). Democracia e Educação em Direitos Humanos numa época de insegurança, Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2008, p. 57.

[22] SOUSA, Tomás Bastian. Política e Direitos Humanos em Marx: da Questão Judaica à Ideologia Alemã, 1998. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade de São Paulo, 2008, p. 184.

[23] Será possível tal denominação?

[24] KARL, Marx. A Ideologia Alemã, volumes I e II, Lisboa, Presença/Martins Fontes, 1980.

[25] FREITAS, Lorena de Melo. Além da Toga – Uma pesquisa empírica sobre ideologia e direito.  Recife: Bagaço, 2009, p.36.

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Sobre o autor
David de Oliveira Monteiro

Advogado e consultor jurídico, mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito NEPGED do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba UFPB; integrante do grupo de pesquisa Realismo Jurídico e direitos humanos da Universidade Federal da Paraíba, especialista em direito público pela Escola Superior de Magistratura do Estado da Paraíba - ESMA PB, bolsista CNJ Acadêmico Capes - em projeto que estuda a Justiça de Proximidade no Brasil; membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Paraíba PB e é professor universitário - vínculo celetista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, David Oliveira. Direitos humanos e democracia brasileira: uma crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3162, 27 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21166. Acesso em: 4 mai. 2024.

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