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Da proibição francesa ao uso de vestes islâmicas em seu território: medida protetiva diante da ameaça terrorista ou um atentado à liberdade individual?

01/03/2012 às 15:10
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A França, historicamente conhecida por seus avanços no campo das liberdades individuais, demonstra um claro retrocesso no ato de proibir o uso da burca em público.

RESUMO: O presente artigo visa expor o conflito existente atualmente no continente europeu, principalmente na França, entre a população islâmica que faz uso de vestes típicas em locais públicos e a legislação local, que recentemente instituiu uma lei que proíbe o uso de alguns trajes muçulmanos, como a burca, por exemplo, em território francês.

Palavras-chave: burca, direitos humanos, proibição, liberdade.

ABSTRACT: The present study aims to expose the conflict that exists nowadays in Europe, specially in France, between the muslim population that uses typical clothes in public placs and the local legislation, that recently imposed a Law that prohibits the use of some religious muslim clothes, like the burqa, for example, in French territory.

Keywords: burqa, human rights, prohibition, freedom.


burca é uma veste feminina que cobre todo o corpo, até o rosto e os olhos. É usada pelas mulheres do Afeganistão e do Paquistão, em áreas próximas à fronteira com o Afeganistão.

O seu uso deve-se ao fato de muitos muçulmanos acreditarem que o livro sagrado islâmico, o Alcorão, e outras fontes de estudos, como Hadith e Sunnah, exigem a homens e mulheres que se vistam e comportem modestamente em público. No entanto, esta exigência tem sido interpretada de diversas maneiras pelos estudiosos islâmicos e comunidades muçulmanas; a burca não é especificamente mencionada no Corão e nem no Hadith. A comunidade religiosa Talibã, que comandou o Afeganistão nos anos 2000, impôs seu uso no país.

Para alguns estudiosos, o Hadith fala de cobrir completamente o corpo das mulheres, enquanto outros interpretam que é permissível deixar o rosto, mãos e ocasionalmente pés descobertos.

Está em vigor na França, desde 11 de abril de 2011, uma lei que proíbe o uso da busca e do niqab (espécie de véu que cobre todo o rosto) em espaços públicos. Os motivos alegados pelo legislador são muitos, mas os mais freqüentes são: a preservação da liberdade e do direito da mulher, a manutenção do Estado Laico, e, claro, a preocupação com a segurança nacional, uma vez que terroristas possam se fazer valer destas vestimentas como forma de dificultar seu reconhecimento após suposto ato criminoso, ou como forma de ocultar armamentos.

Durante uma reunião do Conselho de Ministros da França, o primeiro-ministro Sarkozy defendeu a proibição do uso da burca. Segundo ele, “a cidadania deve ser vivida com a face descoberta.” A lei, que veta o uso da vestimenta, prevê ainda uma multa de 150 euros em caso de descumprimento. Ainda de acordo com o primeiro ministro francês, o Estado está fazendo um favor às mulheres muçulmanas, que, em seu entendimento, são obrigadas a se vestir desta maneira. Sarkozy ignora completamente a possibilidade das mulheres muçulmanas residentes em território francês se vestirem com a burca ou com o nigab por opção, religiosa ou apenas pessoal.

Mais adiante, o Estado francês se manifestou sobre a possibilidade de as mulheres usarem a burca por pura liberalidade, o que, também, não seria motivo de alteração da referida lei:  “Mesmo que essa prática seja voluntária, ela não pode ser tolerada em qualquer lugar público, dado o dano que provoca nas regras que permitem a vida em comunidade. É preciso garantir a dignidade da pessoa e a igualdade entre os sexos”, afirmou o governo, em uma mensagem ao Parlamento.

A França, historicamente conhecida por seus avanços no campo das liberdades individuais, demonstra com este ato um claro retrocesso. Cabe ressaltar, no entanto, que leis neste sentido não são exclusividade do Estado francês. Há um movimento de crescente adesão de outros Estados ocidentais a legislações parecidas, o que, a meu ver, explicita a problemática do mundo ocidental em entender/respeitar os valores do mundo islâmico. Desde os atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, todo o mundo ocidental passou a olhar a religião islâmica com certo temor: se, a princípio, tínhamos apenas um total desconhecimento de seus valores, com o tempo a sociedade passou a acumular diversas visões equivocadas sobre esta parcela da população. A segurança nos aeroportos foi reforçada (o que levou à restrição de viajantes de países islâmicos, ainda que não expressamente), e até hoje fazemos, involuntariamente, a associação de atos terroristas a indivíduos vindos do mundo árabe.

Para a maioria das muçulmanas, usar a burca ou o niqab é um ato de demonstração de profundo respeito por sua religião, um ato de vontade, que vai além da submissão às ordens impostas pelos maridos, como sugere o texto legal. Apesar da lei francesa ter entrado em vigor há tempos, durante meses não houve nenhuma penalidade aplicada. Um caso que ganhou notoriedade foi o das muçulmanas Hind e Najet, que se recusaram a fornecer seus nomes completos e mantiveram seus rostos cobertos durante todo o procedimento legal. Ambas são acusadas de violarem a lei conhecida como “burqa ban”. Hind, ao tentar adentrar a Corte da cidade de Meaux, foi impedida por policiais locais, uma vez que não havia retirado a vestimenta religiosa. Ainda, declarou que manteria seu véu por todo o tempo, que seu uso seria inegociável. Najet, por sua vez, ficou em casa, já sabendo que seria proibida de adentrar a Corte com suas indumentárias. Como a polícia local tem proibição expressa de retirar tudo que cubra o rosto de terceiros, Hind foi simplesmente orientada a voltar para sua residência. O legislador francês, quando confrontado com o caso concreto, se viu em um problema de ordem prática: a audiência teve de ser desfeita, e os promotores do caso ainda estudam o que podem fazer para que a lei possa, efetivamente, ser posta em prática. Ambas as acusadas acusam a lei francesa de ser “inconstitucional” e o caso será levado à Corte Européia de Direitos Humanos.

O argumento de que a proibição visa, também, aumentar a segurança nacional parece pouco crível. Desde quanto terroristas, islâmicos ou não, precisaram se esconder em véus para bombardear escolas, mercados, demais lugares públicos? Fosse este o real objetivo da lei, deveria abranger diversos outros acessórios que possam mascarar a identidade do indivíduo, como os capacetes, vestidos muito longos, e uma série de pormenores, que tornariam a lei objeto de crítica de toda a população francesa. Sarkozy não pretende, obviamente, retirar liberdades de toda sua população: parece estar disposto apenas a restringir os direitos de minorias, que não teriam peso político de lhe causar problemas maiores. Ainda, conta com o apoio de mais de 80% da população francesa.

A questão imigratória é um tema que traz problemas a muitos países europeus. Os muçulmanos, por sua vez, são reconhecidos por sua dificuldade de adaptação com a cultura local, quando imigram, o que gera um choque de culturas que, obviamente, não agrada em nada os nativos. De qualquer forma, discutir a questão imigratória, se ao final tem sido benéfico para os países receber representantes de diversas etnias ou não, não é o objeto deste trabalho.

Mas e se a proibição ocorresse no Brasil, seria constitucional? A CF de 1988, em seu artigo 5º traz em seu inciso VI que a liberdade de crença é inviolável:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Assim sendo, não seria preciso um grande aprofundamento na legislação para, logo de início, atentarmos para a inconstitucionalidade da referida lei francesa. Ainda que não possamos interpretar os princípios constitucionais isoladamente, devendo sempre ponderarmos com os demais princípios e bens jurídicos tutelados, não vejo como tal lei poderia ser considerada constitucional. A menos que o legislador conseguisse demonstrar com mais clareza o efetivo risco que o uso de tais vestimentas possa trazer à coletividade, o que não se demonstrou no caso concreto, não vejo outra possibilidade de aceitação de tal ordenamento.

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No entanto, o Estado brasileiro já foi questionado diversas vezes por não respeitar a liberdade religiosa de seus cidadãos. É comum, no próprio Poder Judiciário, avistarmos a exibição de símbolos religiosos, como crucifixos, nas salas de audiência, tribunal do júri, etc. Ainda que seja de uma ordem um pouco diferente do caso francês, em que o Estado não proíbe o cidadão de usar o acessório religioso que bem entender, no caso brasileiro o que vemos é um desrespeito ao princípio de um Estado laico. Desta forma, há a ofensa àqueles cidadãos que não compartilham do mesmo ideal religioso que o Estado expõe. Inegável, portanto, que há uma ofensa à liberdade de crença de determinados indivíduos.

De volta à problemática européia, ao analisarmos o caso em face da legislação local, notamos que o banimento do uso de símbolos religiosos viola a Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada por diversos países europeus em meados de 2010, junto à Corte Européia de Direitos Humanos. Esta convenção traz, em seu artigo 9º, a garantia à liberdade de religião, como destacamos no trecho a seguir:

Artigo 9°

Liberdade de pensamento, de consciência e de religião

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.

Em fevereiro de 2010 a Corte Européia de Direito Humanos emitiu sua decisão sobre um caso que envolveu 127 indivíduos de nacionalidade turca. O caso, descrito como “Ahmet Arslan and Others v. Turkey (no. 41135/98)”, se refere a este grupo de 127 turcos que, em 1996, se reuniu em uma mesquita na cidade de Ankara, Turquia, usando trajes religosos característicos de seu grupo, como calças “harem”, túnica, entre outros objetos. Devido a uma brecha na legislação anti terrorismo, o grupo foi levado à Corte local em 1997, e seus indivíduos condenados por usarem adereços na cabeça e trajes religiosas em local público que não fosse estritamente de cerimônia religiosa. Da decisão, apelaram sem sucesso. Ainda, tiveram um pedido posterior negado pelo Ministério da Justiça de seu país.

Levado à Corte Européia de Direitos Humanos, o caso foi revisto, tendo como base o artigo 9 da convenção, mencionado pouco acima. A Corte considerou que os indivíduos haviam sido apenados não por falta de respeito ou ameaça à segurança do Estado, mas por sua maneira de se vestir em locais de acesso ao público, como ruas e praças, por exemplo. Contrariando o tratado da própria Corte, esta ordenou que o Estado Turco pagasse 10 euros a cada um dos litigantes por dano pecuniário, acrescido de mais 2 mil euros a título de custas e demais despesas.

Tendo em vista este caso concreto, chegamos à conclusão que, para que a lei francesa não seja derrubada desta mesma forma, o legislador teria de demonstrar efetiva ameaça à segurança nacional, causada pelo uso das vestes islâmicas no território francês, o que até então não o fez.


REFERENCIAS

BROWN, Andrew. Behind the burqa ban's reasoning. Disponível em <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/andrewbrown/2011/apr/12/france-burqa-ban-reasoning?INTCMP=SRCH> (acesso em 20/02/2012)

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007.

Corte Européia de Direitos Humanos, Judgement 41135/98, disponível em <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=863356&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649> (acesso realizado em 22/02/2012)

Corte Européia de Direitos Humanos,  Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Disponível em <http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/POR_CONV.pdf> (acesso em 20/02/2012)

FOUREST, Caroline. Burqa : la France prend-elle un risque ? Disponível em <http://www.lemonde.fr/a-la-une/article/2010/05/05/burqa-la-france-prend-elle-un-risque_1347074_3208.html> (acesso em 20/02/2012)

RANDALL, Colin. Is France dithering over burqa ban? Disponível em <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/may/05/france-burqa-ban-rachid-nekkaz?INTCMP=SRCH> (acesso em 18/02/2012)

ROSENBERG, Josua. Would the burqa ban stand up at the European court? Disponível em <http://www.guardian.co.uk/law/2011/apr/13/law-burqa-ban-european-court> (acesso em 20/02/2012)

RIBEIRO, Antonio. Burca, use com moderação. Disponível em <http://veja.abril.com.br/blog/de-paris/franca/burca-use-com-moderacao/> (acesso em 20/02/2012)

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Sobre o autor
Matheus Lini Segura

Advogado, especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGURA, Matheus Lini. Da proibição francesa ao uso de vestes islâmicas em seu território: medida protetiva diante da ameaça terrorista ou um atentado à liberdade individual?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3165, 1 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21192. Acesso em: 20 abr. 2024.

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