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O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen

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03/03/2012 às 09:32
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2. A Jurisdição constitucional de Hans Kelsen

Expoente jurista da República de Weimar, Hans Kelsen também teorizou acerca da guarda constitucional, porém, em oposição à ideia esposada por Carl Schmitt na obra O guardião da Constituição.

Apesar de questionar diversas premissas da teoria da Guarda da Constituição schmittiana, Kelsen concordava quanto à pertinência de uma análise dos limites da jurisdição, enfatizando que, caso se almejasse restringir o poder dos tribunais, não se deveria “operar com chavões vagos como ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘justiça’, etc”, senão poderia ocorrer uma indesejável transferência de poder.[2]

Prosseguindo em seu estudo, Kelsen exteriorizava de forma mais clara que, nos casos mais importantes de violação constitucional, Parlamento e governo seriam partes litigantes, o que justificaria o reconhecimento do Judiciário como o poder neutro livre das tensões entre Parlamento e Governo.

Hans Kelsen mostrava-se contrário à visão schmittiana de ter-se na figura do Presidente do Reich, única e exclusivamente, o Guardião da Constituição que, segundo o autor austríaco, seria um dos guardiões, zelando pelo controle de constitucionalidade sobre os atos emanados do Executivo e às vezes do Legislativo.

A Constituição austríaca possuía duas jurisdições distintas: a jurisdição constitucional e a jurisdição administrativa. A primeira destinava-se ao controle de constitucionalidade dos atos jurídicos, enquanto a segunda limitava-se a aferir sua conformidade às leis. Assim sendo, a jurisdição constitucional era vista como uma jurisdição administrativa especial, pois controlava a constitucionalidade do ato administrativo, e não sua simples conformidade à lei.

Em síntese, o limite teórico-jurídico entre jurisdição constitucional e jurisdição administrativa resultava tão somente da diferença entre constitucionalidade direta e indireta. Todavia, existia um possibilidade mínima de controle a cargo da jurisdição administrativa, tendo em vista a necessidade da autoridade, ao aplicar a lei, verificar se aquilo que se apresentava como lei era de fato uma lei, isto é, se preenchia aos requisitos legais mínimos para sua configuração.

Em caso de um possível conflito entre lei federal e lei estadual, aplicava-se o princípio segundo o qual a lei posterior deveria prevalecer sobre a lei anterior. A Constituição não previa a prevalência da lei federal sobre a lei estadual.

Ademais, a Corte Constitucional podia examinar de ofício a constitucionalidade de uma norma, desde que ela fosse pressuposto para a resolução de determinado caso concreto sujeito a sua apreciação. Da mesma forma, as leis anteriores à vigência da Constituição, que foram recepcionadas por ela, eram consideradas igualmente objeto de controle de constitucionalidade.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei acarretava a sua anulação, ou seja, essa decisão operava apenas para o futuro, produzindo efeitos prospectivos, a partir de sua publicação. A referida anulação podia referir-se a toda a norma ou apenas a algumas de suas disposições, bem como a Corte Constitucional podia estabelecer um prazo, nunca inferior a seis meses, para a sua invalidação. Dessa forma, o Poder Legislativo podia, nesse intervalo, editar uma lei compatível com a Constituição.

Insta ressaltar que a decisão de anulação da lei inconstitucional poderia gozar de um certo efeito retroativo, na medida em que a Corte Constitucional, quando examinava e anulava de oficio uma norma que era considerada como pressuposto para a solução de uma lide, não teria mais como aplicar a lei anulada, não obstante o fato correspondente ao mérito da questão tenha ocorrido na vigência da norma.

O Tribunal Constitucional possuía, ainda, o poder de examinar decretos e anulá-los em caso de inconstitucionalidade. Nesse caso, o tribunal ordinário que considerasse que o decreto a ser aplicado no caso concreto era contrário à lei, deveria interromper o processo e submeter à Corte Constitucional o pedido fundamentado de anulação do decreto. Diante dessa situação, todos os tribunais restavam vinculados á decisão da Corte, que produzia efeitos prospectivos.

Ocorre que a Corte Constitucional também podia anular de ofício um decreto em caso de ilegalidade, quando ele fosse pressuposto para a solução de determinado caso concreto. Essa decisão produzia efeitos pro futuro, atingindo sempre o caso pendente de solução que havia motivado o exame. Portanto, não era possível o estabelecimento de prazo para a cessação da vigência de um decreto ilegal.

Como a Constituição regulava a elaboração das leis, a legislação seria, sob esse aspecto, aplicação do direito. Com relação ao decreto e outros atos normativos secundários, a lei seria criação do direito e o decreto seria aplicação do direito com respeito à lei e criação do direito com respeito à sentença e ao ato administrativo que o aplicariam. Por outro lado, enquanto a Constituição, a lei e o decreto seriam normas jurídicas gerais, a sentença e o ato administrativo constituiriam normas jurídicas individuais, de efeitos concretos.

A noção de Constituição, apesar das inúmeras transformações por que passou, teria conservado um núcleo essencial e permanente: ela seria sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se pretenderia apreender.

A Constituição poderia ser compreendida em um sentido amplo ou restrito. A Constituição em sentido estrito conteria tão somente normas sobre os órgãos e o procedimento da legislação. O sentido amplo, por sua vez, pressuporia não apenas a existência de normas sobre a organização do Estado, mas também normas que trariam direitos fundamentais ou liberdades individuais. Por isso costumava-se distinguir entre inconstitucionalidade formal e inconstitucionalidade material, uma vez que a primeira se trataria de uma violação apenas formal da Constituição, ou seja, de normas de procedimento e organização do Estado; enquanto a inconstitucionalidade material implicaria na violação de normas de conteúdo constitucional.

Por outro lado, distinguia-se entre inconstitucionalidade imediata, porquanto se trataria de normas imediatamente subordinadas à Constituição, e inconstitucionalidade mediata, no caso de atos subordinados à Constituição apenas de forma indireta. Isso porque quando a Constituição estabelecia o princípio da legalidade, essa legalidade estaria ligada à constitucionalidade, de forma indireta. Porém, nem sempre seria fácil distinguir entre inconstitucionalidade direta e indireta.

Outra espécie de norma diretamente subordinada à Constituição seria o tratado internacional, à semelhança das leis. No entanto, como Kelsen era um internacionalista, ele ponderava que, se considerássemos a superioridade do direito internacional sobre a ordem jurídica interna, o tratado internacional não seria equiparado à lei, mas apareceria como pertencente a uma ordem jurídica superior aos Estados contratantes, posicionando-se acima da lei e da própria Constituição. O tratado internacional apenas poderia ser revogado por outro tratado. Sob esse prisma do primado do direito internacional, as normas de direito internacional poderiam ser consideradas como parâmetros de controle de constitucionalidade.

Uma das principais garantias gerais que a técnica jurídica moderna teria desenvolvido quanto à regularidade dos atos estatais em geral seria a independência do órgão jurisdicional, enquanto garantia preventiva, de modo a evitar que ele pudesse ser juridicamente obrigado, no exercício das suas funções, por alguma norma individual de outro órgão. Ele estaria vinculado apenas às normas gerais, essencialmente às leis e aos regulamentos.

Outra garantia que mereceria destaque era a anulabilidade ou nulidade do ato irregular. Os atos das autoridades públicas, ao contrário dos atos dos particulares, gozariam de uma certa presunção de validez e obrigatoriedade até que o ato superveniente de outra autoridade os fizesse desaparecer.

A principal objeção à existência de uma jurisdição constitucional, isto é, um tribunal constitucional encarregado da anulação dos atos inconstitucionais, seria a ofensa à soberania do Parlamento. Todavia, não haveria de se falar da soberania de um órgão estatal particular, pois a soberania pertenceria à ordem estatal como um todo.

Em segundo plano, a objeção referente à separação dos poderes tampouco mereceria prosperar, uma vez que a anulação de atos inconstitucional pelo tribunal constitucional não representaria uma função verdadeiramente jurisdicional, mas legislativa, ao criar uma norma geral com sinal negativo, declarando-a inconstitucional para todos os efeitos.

Reafirmando a necessidade de uma jurisdição constitucional, Kelsen considerava que esta adquiriria maior importância no Estado federativo, devido a sua forma de organização descentralizada, em que algumas matérias seriam tratadas pela União, e outras estariam sob a competência dos Estados-membros. Dessa forma, tanto uma lei estadual poderia usurpar a competência da União, como uma lei federal poderia avançar os limites dos Estados-membros. Ambos os casos deveriam ser analisados pelo tribunal constitucional.

As regras de direito, segundo Kelsen, seriam normas gerais, enquanto os atos jurídicos seriam especiais. Não obstante essa diferença, ambos possuiriam um traço comum o qual nos permitiria agrupá-los numa mesma hierarquia: seu caráter de normas. Nesse sentido, o autor se contrapunha a Duguit, que não admitia a reunião das regras e dos atos jurídicos em uma mesma categoria, portanto, a seu ver, não haveria de se falar em hierarquia entre eles.

Kelsen argumentava que a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais ordinários poderia acarretar a incerteza e insegurança do Direito, ao dar margem a sentenças contraditórias a serem proferidas pelos diversos tribunais. Assim sendo, a jurisdição constitucional serviria principalmente para a centralização do contencioso e, em segundo plano, para o alcance geral do julgado, não se limitando somente ao caso concreto submetido ao exame.

Kelsen voltava-se contra a supremacia e onipotência parlamentar, em especial contra a liberdade quase ilimitada de legislar atribuída constitucionalmente ao Parlamento. Defendia a mudança na visão que se tinha do parlamento, de forma a lhe atribuir o papel de autoridade que exerceria suas funções sobre o império de uma lei constitucional que seria, de fato, o ato de vontade primitivo, fundamental e limitador do verdadeiro soberano.

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A Constituição representaria as forças políticas de determinado povo, isto é, a situação de equilíbrio relativo na qual os grupos em luta pelo poder permaneceriam até nova ordem. Caso houvesse necessidade de alteração da Constituição, isso significaria que esse equilíbrio de forças estaria abalado, buscando uma nova organização no plano constitucional. E nessa tentativa de alteração da Carta Política, dever-se-ia considerar não apenas a representação do grupo político detentor do poder no parlamento e sua influência sobre os poderes executivo e judiciário, mas também a amplitude e a natureza das camadas sociais que seriam dominadas pela ideologia desse grupo político. Com efeito, essa ideologia constituiria a força e o instrumento de sua organização.

O controle de constitucionalidade não deveria ser confiado a um dos órgãos cujos atos deveriam ser analisados em face de sua compatibilidade com a Constituição, ou seja, o legislativo e o executivo. Isso porque ninguém poderia ser juiz em causa própria.

O autor criticava a tentativa de Schmitt de atribuir a guarda da Constituição, em uma república democrática, ao Chefe de Estado, sob a denominação de poder neutro, elaborada por Constant, por entender que essa concepção acabaria por transformar o Presidente do Reich em senhor soberano do Estado, não obstante a recusa de Schmitt em encarar a situação como uma possível ditadura do executivo, o qual afirmava que o temor de uma violação constitucional dirigir-se-ia tão somente contra o legislador.

Um dos argumentos rechaçados por Kelsen refere-se ao pressuposto adotado por diversos doutrinadores de que entre a função jurisdicional e a função política existiria uma contradição essencial, sendo que a declaração de inconstitucionalidade consistiria em ato político, e não jurídico. Ocorre que, como afirmava o autor, o exercício do poder não se restringiria ao processo legislativo, mas teria início com os órgãos executivos e com o próprio judiciário, uma vez que toda sentença seria composta por um elemento decisório, um elemento de exercício do poder, ainda que em menor grau. O caráter político da jurisdição variaria de acordo com o poder discricionário que a legislação lhe cedesse. Ao decidir um caso concreto, o juiz estaria autorizado a criar direito, não se restringindo a função jurisdicional à mera aplicação do direito. Dessa forma, a lei conferiria à jurisdição o mesmo caráter político que possui a legislação.

A diferença entre um tribunal constitucional e um tribunal ordinário, civil, criminal ou administrativo seria o fato de que, apesar de ambos serem aplicadores e criadores do direito, o segundo produziria apenas normas individuais, enquanto o primeiro, ao declarar a incompatibilidade de uma norma com a Constituição, eliminaria uma norma geral, atuando, pois, como um legislador negativo.

Kelsen também não aceitava o argumento de que o Presidente do Reich possuiria melhores condições para ser o guardião da Constituição, visto que, a seu ver, ele não gozaria da independência necessária à consecução desse fim, tampouco estaria revestido da neutralidade imprescindível para o desempenho desse papel. Por outro lado, o tribunal constitucional seria a melhor solução para esse dilema, uma vez que o juiz, além de gozar de independência funcional, seria impelido à neutralidade já por sua ética profissional.


CONCLUSÃO

Tão instigante quanto complexa, no âmbito do Direito Constitucional, é a questão da legitimidade democrática do sistema de controle de constitucionalidade das leis, chamado de jurisdição constitucional. Afinal, como pode um corpo reduzido de magistrados declarar inválidas as leis editadas pelos representantes do povo, sem ferir o princípio democrático?

A questão do controle de constitucionalidade pressupõe o estudo de quem seria o verdadeiro guardião da Constituição, isto é, aquele responsável pela análise de sua eventual violação pela edição de leis e atos normativos. Com base no caráter contramajoritário da jurisdição constitucional, Carl Schmitt defendia que o controle judicial abstrato das leis pelas Supremas Cortes guardaria grave tensão com a democracia, eis que atribuído a um reduzido número de indivíduos. Percebe-se que Schmitt procurava opor o político ao jurisdicional, como o exercício do poder em face o exercício do direito.

Por outro lado, Hans Kelsen defendia a existência de um Tribunal Constitucional que assumiria a função de guardião da Constituição. Para o autor, o legislador autorizaria o juiz a utilizar uma espécie de poder legiferante, permitindo que os magistrados criassem o direito dentro de limites. Dessa forma, o judiciário exerceria uma função política, diferenciando-se do legislativo apenas quantitativamente, não qualitativamente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DI LORENZO, Wambert. O pensamento político de Carl Schmitt: uma breve introdução. Instituto Jacques Maritain do Rio Grande do Sul. Disponível em www.maritain.com.br.

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2. ed., São Paulo: Editora da Unesp,.

SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.


Notas

[1] KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 246.

[2] ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2. ed., São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

[3] DI LORENZO, Wambert. O pensamento político de Carl Schmitt: uma breve introdução. Instituto Jacques Maritain do Rio Grande do Sul. Disponível em www.maritain.com.br.

[4] Idem, Ibid.

[5] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. xi.

[6] DI LORENZO, Wambert. Op. cit.

[7] Nesse sentido, esclarece Bercovici: “O papel de Carl Schmitt na crise final da República ainda é controverso. Há três correntes interpretativas: uns afirmam que Schmitt sempre foi nazista; outros, que ele era contrário à Constituição e queria o sistema presidencial autoritário, mas não tinha aderido, ainda, ao nazismo e, finalmente, há aqueles que, seguindo a interpretação do próprio Schmitt, afirmam que ele propôs o regime presidencial para tentar salvar a República”. Na opinião de Bercovici: “Schmitt teve um papel ativo na crise final de Weimar, influenciando na escolha de saídas autoritárias para a crise, ao apoiar os gabinetes presidenciais para instrumentalizar suas ideias na direção da ditadura presidencial e da dissolução da Constituição” (BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 141).

[8] BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: LIMA, Martonio Mont’ Alverne Barreto et. al. Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 75.

[9] Idem, Ibid, p. 77.

[10] BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 79.

[11] Idem, ibid, p. 81.

[12] KELSEN, Hans. Op. cit., p. 262-263.

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Sobre a autora
Camilla Japiassu Dores

Advogada da União em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORES, Camilla Japiassu. O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3167, 3 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21201. Acesso em: 20 abr. 2024.

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