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Cobrança coativa em casas noturnas: exercício arbitrário das próprias razões.

Como sair da boate sem pagar e sem apanhar?

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Muitas boates utilizam artifícios criminosos para cobrar os clientes de seus estabelecimentos. O mais comum é simplesmente impedirem a saída do devedor. Mas há atitudes mais drásticas.

Muitas boates utilizam artifícios criminosos para cobrar os clientes de seus estabelecimentos. O mais comum é simplesmente impedirem a saída do devedor. Mas há atitudes mais drásticas. Muitas boates, quando informadas da impossibilidade de pagamento, levam os inadimplentes para um cômodo reservado no próprio local. Lá dão coronhadas e choques elétricos para forçar o cumprimento da obrigação. Caso não consigam receber o dinheiro desse modo, pegam documentos ou até mesmo bem em garantia da dívida.  Em Belo Horizonte, um cliente foi obrigado a empenhar as próprias roupas, deixando o estabelecimento apenas de cueca[i]. 

Muitos aceitam de bom modo esses procedimentos adotados por famosas boates no Brasil. Alguns questionam apenas as coronhadas e os choques elétricos, mas consideram legal e justo ficarem presos na boate, até a liberação do gerente, ou deixar um bem ou documento de identidade em garantia da dívida.

Nada mais equivocado. Todos esses procedimentos são ilegais e criminosos. O crime está previsto no art. 345 do Código Penal, exercício arbitrário das próprias razões. Esse crime protege a Administração da Justiça, impedindo que os particulares utilizem, nas suas controvérsias, ad arma veniant[ii]. Como afirmou Carnelutti, “ o direito nasce para que a guerra morra”[iii].  Não importa se o direito é legítimo ou não, pois a conduta é criminosa por retirar do Estado o poder de dizer o Direito[iv]. Desse modo, ainda que a boate tenha o direito de receber o dinheiro pelas bebidas e serviços prestados, não pode fazer justiça com as próprias mãos para satisfazer sua pretensão. Poder-se-ia falar em contrato de penhor, excluindo a conduta criminosa, quando o cliente deixasse algum bem para pagar a dívida posteriormente. No entanto, faltaria nesse caso o consenso, o acordo entre as partes, requisito básico de qualquer contrato.

O que deve fazer a boate para receber o dinheiro de quem, na boca do caixa, afirma não ter condições de honrar a dívida? É preciso distinguir duas categorias de clientes. Os mal intencionados, que já saem de casa sem um tostão furado, entram em boate de rico e pedem bebida e os cidadãos de boa fé, que saem de casa com o dinheiro contado, e que não contam com o “amigo da onça”, que aceita dividir a conta, mas no final ou sai de fininho ou simplesmente diz que esqueceu a carteira em casa. Para os primeiros, deve-se chamar a polícia, pois cometem o crime previsto no art. 176 do CP. Comete esse crime quem “tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. Segundo Celso Delmanto[v], o vocábulo refeição inclui bebidas e por restaurante entende-se qualquer estabelecimento, como bares, lanchonetes, pensões, etc. Há ainda a necessidade do dolo, a intenção de dar o calote já no primeiro gole, para o cometimento do crime.

Desse modo, o cliente, para que cometa o crime, deve estar consciente de que não tem condições de pagar a dívida, mas mesmo assim entra no estabelecimento e consome. Aquele que desconhece essa situação está de boa fé e não comete o crime (falta dolo na conduta). Esses clientes ou até mesmo os que se recusam, mesmo com dinheiro, a pagar a dívida ( nesse caso também não há crime, falta elemento objetivo do crime) devem ser liberados pela boate, que deverá, a partir dos dados desses clientes, ir ao Judiciário pleitear o recebimento da dívida. Nesses casos, portanto, não haverá crime. Não cabe à polícia sequer comparecer ao local. Há, no entanto, na conduta desses consumidores, em caso de não pagamento injustificável, ilegalidade, um ilícito civil, que se resolve com indenização.

O problema é que as boates não costumam liberar os clientes que não cometem crimes, apenas ilícito civil, mesmo sendo obrigadas a tanto. Provavelmente você levará umas coronhadas, choques elétricos, caso queira explicar direito penal aos seguranças. Será taxado de playboy, criatura que não agrada os dinossauros que costumam fazer a segurança nesses locais.

O que fazer então? Se tiver um celular com câmera, faça o possível para gravar a entrega dos bens exigidos para assegurar a dívida. Procure falar para o segurança que está fazendo isso para se resguardar, para provar que entregou efetivamente os bens para o estabelecimento. Procure deixar claro no vídeo que está fazendo aquilo sem consentir. Pode perguntar, por exemplo, em alto e bom som: preciso mesmo entregar a chave do meu carro? Caso não possa gravar a ação, procure duas testemunhas que inspirem confiança para observar a entrega dos bens. Saia da boate, ligue para a polícia. Só entre na boate novamente com um policial ao lado!

Não se esqueça de que muitos policiais desconhecem o crime em questão. É provável que em alguns casos os policiais erradamente forcem você a aceitar a situação. Não seja fraco. Explique que vai pagar a conta no dia seguinte, mas que não é obrigado a deixar garantia e que faz questão de requerer ao delegado a instauração de inquérito policial. É provável que você e algum representante da boate sejam levados à delegacia. Vale lembrar que, se não houver violência no crime de exercício arbitrário das próprias razões, o inquérito policial só pode ser feito com o requerimento do ofendido (art. 345 do CP c/c art. 5, parágrafo 5, do CPP). Desse modo, é provável que o dono da boate, para evitar repercussão sobre o fato e também para não ser preso pelo crime do art. 345 do CP, aceite fazer acordo, perdoando até mesmo a dívida legítima que você tenha com o estabelecimento. Seria um prêmio justo por perder uma noite e uma manhã numa delegacia.   

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Notas

[i]Disponível em: <http://odia.terra.com.br/portal/brasil/html/2011/4/homem_fica_so_de_cueca_por_nao_ter_dinheiro_para_pagar_conta_em_boate_160664.html>, acesso em: 03/01/2012.

[ii] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, v.9, p. 492.

[iii] CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder Cultura Jurídica, 2001, p. 23.

[iv] Nesse sentido Magalhães Noronha, para quem: “[...] A pretensão, por sua vez, se assenta em um direito que o agente tem ou julga ter, isto é, pensa de boa-fé possuí-lo, o que deve ser apreciado não apenas apenas quanto ao direito em si, mas de acordo com as circunstâncias e as condições da pessoa. Consequentemente, a pretensão pode ser ilegítima, o que a lei deixa bem claro: ‘embora legítima’ – desde que a pessoa razoavelmente assim não a julgue”. Para mais cf.: NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, 19 ed. São Paulo:Saraiva, 1998, v. 3, p. 380.

[v] DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto, DELMANTO JUNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal comentado, 5ª ed. São Paulo, Renovar, 2000, p. 359.

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Sobre o autor
João Paulo Rodrigues de Castro

Defensor Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, João Paulo Rodrigues. Cobrança coativa em casas noturnas: exercício arbitrário das próprias razões.: Como sair da boate sem pagar e sem apanhar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3188, 24 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21352. Acesso em: 19 mar. 2024.

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