Muitas boates utilizam artifícios criminosos para cobrar os clientes de seus estabelecimentos. O mais comum é simplesmente impedir a saída do devedor. Mas há atitudes mais drásticas. Muitas boates, quando informadas da impossibilidade de pagamento, levam os inadimplentes para um cômodo reservado no próprio local. Lá, dão coronhadas e choques elétricos para forçar o cumprimento da obrigação. Caso não consigam receber o dinheiro dessa forma, pegam documentos ou até mesmo bens como garantia da dívida. Em Belo Horizonte, um cliente foi obrigado a empenhar as próprias roupas, deixando o estabelecimento apenas de cueca1.
Muitos aceitam de bom grado esses procedimentos adotados por famosas boates no Brasil. Alguns questionam apenas as coronhadas e os choques elétricos, mas consideram legal e justo ficarem presos na boate até a liberação do gerente ou deixarem um bem ou documento de identidade como garantia da dívida.
Nada mais equivocado. Todos esses procedimentos são ilegais e criminosos. O crime está previsto no art. 345 do Código Penal: exercício arbitrário das próprias razões. Esse crime protege a Administração da Justiça, impedindo que particulares utilizem, em suas controvérsias, ad arma veniant2. Como afirmou Carnelutti, “o direito nasce para que a guerra morra”3. Não importa se o direito é legítimo ou não, pois a conduta é criminosa por retirar do Estado o poder de dizer o Direito4. Dessa forma, ainda que a boate tenha o direito de receber o dinheiro pelas bebidas e serviços prestados, não pode fazer justiça com as próprias mãos para satisfazer sua pretensão. Poder-se-ia falar em contrato de penhor, excluindo a conduta criminosa, quando o cliente deixasse algum bem para pagar a dívida posteriormente. No entanto, faltaria, nesse caso, o consenso, o acordo entre as partes, requisito básico de qualquer contrato.
O que deve fazer a boate para receber o dinheiro de quem, na boca do caixa, afirma não ter condições de honrar a dívida? É preciso distinguir duas categorias de clientes: os mal-intencionados, que já saem de casa sem um tostão furado, entram em boates de luxo e pedem bebida, e os cidadãos de boa-fé, que saem de casa com o dinheiro contado e não contam com o “amigo da onça”, que aceita dividir a conta, mas, no final, ou sai de fininho ou simplesmente diz que esqueceu a carteira em casa. Para os primeiros, deve-se chamar a polícia, pois cometem o crime previsto no art. 176. do Código Penal. Comete esse crime quem “tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento”. Segundo Celso Delmanto5, o vocábulo "refeição" inclui bebidas, e "restaurante" abrange qualquer estabelecimento, como bares, lanchonetes, pensões etc. Há ainda a necessidade do dolo, ou seja, a intenção de dar o calote já no primeiro gole, para que o crime se configure.
Dessa forma, para que o cliente cometa o crime, ele deve estar consciente de que não tem condições de pagar a dívida, mas, mesmo assim, entra no estabelecimento e consome. Aquele que desconhece essa situação age de boa-fé e não comete o crime (pois falta o dolo na conduta). Esses clientes ou até mesmo aqueles que, mesmo tendo dinheiro, se recusam a pagar a dívida (nesse caso, também não há crime, pois falta o elemento objetivo do crime) devem ser liberados pela boate, que deverá, a partir dos dados desses clientes, recorrer ao Judiciário para pleitear o recebimento da dívida. Nesses casos, portanto, não há crime. Não cabe à polícia sequer comparecer ao local. No entanto, há, na conduta desses consumidores, em caso de não pagamento injustificável, uma ilegalidade, um ilícito civil, que se resolve com indenização.
O problema é que as boates não costumam liberar os clientes que não cometem crimes, apenas ilícitos civis, mesmo sendo obrigadas a fazê-lo. Provavelmente, você levará algumas coronhadas e choques elétricos caso tente explicar direito penal aos seguranças. Será taxado de "playboy", termo que não agrada os "dinossauros" que costumam fazer a segurança desses locais.
O que fazer então? Se tiver um celular com câmera, faça o possível para gravar a entrega dos bens exigidos como garantia da dívida. Procure dizer ao segurança que está fazendo isso para se resguardar, para provar que entregou efetivamente os bens ao estabelecimento. Deixe claro no vídeo que está fazendo aquilo sem consentir. Pode perguntar, por exemplo, em alto e bom som: “Preciso mesmo entregar a chave do meu carro?”. Caso não possa gravar a ação, procure duas testemunhas de confiança para observar a entrega dos bens. Saia da boate e ligue para a polícia. Só entre novamente no estabelecimento com um policial ao lado!
Não se esqueça de que muitos policiais desconhecem o crime em questão. É provável que, em alguns casos, os policiais, erroneamente, forcem você a aceitar a situação. Não seja fraco. Explique que vai pagar a conta no dia seguinte, mas que não é obrigado a deixar garantia e que faz questão de requerer ao delegado a instauração de um inquérito policial. É provável que você e algum representante da boate sejam levados à delegacia. Vale lembrar que, se não houver violência no crime de exercício arbitrário das próprias razões, o inquérito policial só pode ser feito mediante requerimento da vítima (art. 345 do CP c/c art. 5º, parágrafo 5º, do CPP). Dessa forma, é provável que o dono da boate, para evitar repercussão sobre o fato e também para não ser preso pelo crime do art. 345 do CP, aceite fazer um acordo, perdoando até mesmo a dívida legítima que você tenha com o estabelecimento. Seria um prêmio justo por perder uma noite e uma manhã numa delegacia.
Notas
1 Disponível em: <https://odia.terra.com.br/portal/brasil/html/2011/4/homem_fica_so_de_cueca_por_nao_ter_dinheiro_para_pagar_conta_em_boate_160664.html>, acesso em: 03/01/2012.
2 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, v.9, p. 492.
3 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder Cultura Jurídica, 2001, p. 23.
4 Nesse sentido Magalhães Noronha, para quem: “[...] A pretensão, por sua vez, se assenta em um direito que o agente tem ou julga ter, isto é, pensa de boa-fé possuí-lo, o que deve ser apreciado não apenas apenas quanto ao direito em si, mas de acordo com as circunstâncias e as condições da pessoa. Consequentemente, a pretensão pode ser ilegítima, o que a lei deixa bem claro: ‘embora legítima’ – desde que a pessoa razoavelmente assim não a julgue”. Para mais cf.: NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, 19 ed. São Paulo:Saraiva, 1998, v. 3, p. 380.
5 DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto, DELMANTO JUNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal comentado, 5ª ed. São Paulo, Renovar, 2000, p. 359.