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Poder de polícia e inspeção veicular à luz do regime jurídico-tributário

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CAPÍTULO II: INSPEÇÃO VEICULAR

2.1 Inspeção Veicular no direito positivo. Traços gerais

Os Programas de Inspeção e Manutenção de Veículos em Uso organizados pelos Estados e Municípios – que devem ser guiados por critérios estabelecidos pela União – são instrumentos para redução de emissões de gases e partículas poluentes, bem como de ruído emitido pela frota alvo circulante de veículos automotores.

Há uma política pública nacional que cuida do tema, composta pelo Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar)[55], assim como pelo Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve)[56].

No que tange ao controle da emissão de gases e partículas, o Ministério do Meio Ambiente, através do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA[57], é responsável por ditar a pauta a respeito da matéria.

A matéria é, hoje[58], minudenciada pela Resolução CONAMA n. 418, de 25 de novembro de 2009[59], que dispõe sobre os critérios para elaboração de Planos de Controle de Poluição Veicular (PCPV) e para a implantação de programas de inspeção e manutenção de veículos em uso (I/M) pelos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente e determina novos limites de emissão e procedimentos para a avaliação do estado de manutenção de veículos em uso.

Diga-se, ainda, que os planos antecedem aos programas, nos temos do art. 10, parágrafo único da Resolução CONAMA n. 418[60]. Aqueles se constituem em instrumentos de gestão – tempo em que dados serão levantados para avaliação dos instrumentos mais adequados para o controle da poluição. A instituição, pelos entes municipais e estaduais, do programa de inspeção e manutenção é justamente um desses instrumentos a ser adotados, presentes a favorável equação custo-benefício.

O Código de Trânsito Brasileiro[61], nos termos do art. 104, dispõe que os veículos em circulação terão suas condições de segurança, de controle de emissão de gases poluentes e de ruído[62] avaliadas mediante inspeção, que será obrigatória, na forma e periodicidade estabelecidas pelo CONTRAN para os itens de segurança e pelo CONAMA para emissão de gases poluentes e ruído. Está previsto no § 5º desse artigo aplicação de medida administrativa de retenção aos veículos reprovados na inspeção de segurança e na de emissão de gases poluentes e ruído.

Já o art. 131[63] do mesmo Diploma prescreve, entre outras exigências para o licenciamento anual do veículo, a comprovação da aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído (§3º). No mesmo sentido, o art. 20 da Resolução CONAMA n. 418 dispõe que os veículos da frota alvo sujeitos à inspeção periódica não poderão obter o licenciamento anual sem terem sido inspecionados e aprovados quanto aos níveis de emissão, de acordo com os procedimentos e limites estabelecidos pelo CONAMA ou, quando couber, pelo órgão responsável.

Várias são, pois, as legislações estaduais[64] e municipais[65] existentes no ordenamento pátrio[66] que instituíram os programas de inspeção e manutenção de veículos em uso (I/M). Conquanto dotadas, no mais das vezes, de imperfeições e inconstitucionalidades, visam todas, de um modo geral, reduzir a poluição do ar e, desta feita, melhorar a qualidade de vida das pessoas.

2.2 A Inspeção Veicular como expressão do poder de polícia que deve ser remunerado por meio de taxa - art. 77 do CTN e art. 145, II, CF/88. Inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 9.270/09 do RN (e Decretos nos. 21.542/2010 e 16.511/02). Violação aos arts. 145, II, e 150, I, da CF/88. ADIN 4551

Já vimos a distinção entre taxas e tarifas[67]. Embora ambas sejam prestações pecuniárias voltadas a suprir de recursos os cofres estatais[68], não há confundi-las, pois peculiares e distintos são os seus regimes jurídicos. Aqui, nos deteremos, especificamente, em demonstrar que a exação cobrada em decorrência da realização da inspeção veicular deve ter, necessariamente, natureza tributária, notadamente a de taxa em decorrência da prestação do poder de polícia fiscalizatório, previsto nos arts. 77 do CTN[69] e 145, II, da CF/88[70].

Diga-se, ainda, que igualmente já nos posicionamos a respeito da impossibilidade de delegação do poder de polícia (exercido quando da realização da inspeção veicular) à empresa particular[71]. De fato, tratando-se do programa de inspeção veicular, o que se tem é a realização do próprio poder de polícia, e não, como pensam alguns[72], de atos materiais prévios ao exercício desse poder.

Segundo esse entendimento divergente[73], não configuraria transferência da competência do Poder Público no que toca à expedição de ato jurídico administrativo, isto é, a legislação estaria autorizando apenas a transferência ao particular da realização de tarefas secundárias ou operacionais consistentes na prestação da atividade técnico-material de inspeção de veículos, razão pela qual a empresa particular não poderia impor qualquer tipo de restrição aos administrados.

Ousamos, data venia, discordar dessa linha de argumentação. Vejamos.

Conforme já consignamos nesse trabalho, quando a empresa particular realiza a inspeção de veículo objeto da frota alvo do programa e constata que ele está emitindo poluentes (e/ou ruídos) acima dos níveis permitidos pela legislação, a empresa privada não emite o certificado que atesta a adequação do veículo automotor aos níveis de emissão de poluentes/ruídos permitidos pela lei e, em consequência, o veículo fica impedido de transitar regularmente[74].

Assim, o proprietário desse automóvel verá restringido, certamente, o seu direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88), que é um direito fundamental individual. Restringir o gozo e o uso de direito individual em prol do interesse da coletividade é, justamente, exercício do poder de polícia. Portanto, transversal e indevidamente a pessoa privada estaria desempenhando o poder de polícia.

Portanto, os dispositivos que permitem a delegação do poder de polícia (in casu, a realização da inspeção veicular) a particulares ferem o ordenamento jurídico-positivo[75]. Desta feita, os arts. 12, §2º, e 8º, parágrafo único, previstos na resolução CONAMA n. 418[76], são, a nosso ver, inválidos, assim como os dispositivos previstos nas legislações estaduais[77] ou municipais[78].

Pois bem. Passemos propriamente ao tema da contraprestação exigida em decorrência da realização da inspeção veicular.

Foi ajuizada pela PGR a ADI n. 4551[79] questionando-se, justamente, o regime jurídico da exação cobrada em virtude da realização da inspeção veicular – “preço público/tarifa” – constante na Lei n. 9.270/09[80] do Estado do Rio Grande do Norte. Para a PGR, o que se tem é o exercício de poder de polícia, atividade estatal a que a Constituição impõe específica modalidade tributária, em que a relação que se estabelece entre o cidadão e o Poder Público tem natureza legal, e não contratual, a que o particular se submete compulsoriamente. Não temos dúvidas do acerto desse entendimento[81]-[82].

Primeiramente, a inspeção veicular é desprovida de facultatividade, aliás, a exação paga em virtude dessa atividade é obrigatória. O administrado se vê compelido a submeter seu veículo à inspeção veicular, sob pena de restrição ao seu direito de trafegar regularmente, isto é, ou (i) o seu veículo é inspecionado e aprovado (sendo emitido o certificado), o que lhe permite o exercício das prerrogativas decorrentes do seu direito de propriedade[83], ou (ii) o seu veículo não é submetido à inspeção e, consequentemente, não poderá trafegar de modo regular[84]. Se não há facultatividade, não se pode remunerar essa atividade fiscalizatória através de tarifa/preço público. Só se pode exigir tarifa quando houver, portanto, voluntariedade.

O Programa de Inspeção Veicular no Estado do Rio Grande do Norte, tal como autorizado pela legislação nacional, exige, obrigatória e anualmente, a inspeção e certificação de todos os veículos da frota licenciada, que devem, necessariamente, estar adequados às exigências técnicas, para a finalidade maior de redução das emissões de poluentes. A inspeção veicular obrigatória a ser realizada na frota alvo de veículos é, assim, compulsória[85], que deve ensejar a cobrança de taxa[86] decorrente do exercício do poder de polícia, nos termos dos arts. 77 do CTN e 145, II, da CF/88. Há nas taxas, assim, compulsoriedade[87] e a submissão aos efeitos tributários sempre que ocorrer o fato gerador desse tributo.

 Inexiste, igualmente, autonomia da vontade. Não há liberdade de contratar, inerente ao regime privado das tarifas. A relação havida entre administrado e Poder Público, in casu, é de cunho legal (e não contratual), a qual o cidadão se submete compulsoriamente. A contraprestação cabível nesse caso da realização da inspeção veicular deve ser norteada pelo regime de direito público, pois tem inegável natureza tributária. E, como se sabe, o dever de pagar tributo é obrigação ex lege.

 E mais: a relação deve ser contrabalanceada. Explicamos. Se por um lado o Estado impõe uma prestação pecuniária em decorrência da realização do poder de polícia, o administrado tem o direito de invocar, a seu favor, as limitações a esse poder de tributar estatal, para que se façam presentes todas as prerrogativas albergadas pela Carta Política.

A taxa, diferentemente da tarifa, só pode ser exigida por pessoas jurídicas de direito público[88], de modo que deve ser paga a Administração Pública, e não a empresa particular. Daí porque pensamos que a Lei Estadual n. 9.270/09, além de ser inconstitucional no que toca ao tipo de contraprestação prevista (tarifa/preço público), o é, ainda, pelo fato de empresa particular não poder receber taxa. Noutros termos: o poder judiciário deve reconhecer a inconstitucionalidade[89] dos enunciados prescritivos que contêm a expressão “tarifa ou preço público” [90], assim como declarar que a taxa deve ser recolhida pelo Estado, vez que só à pessoa jurídica de direito público é dado o poder de exigir essa espécie tributária.

Por tais motivos é que temos para nós que a Lei n. 9.270/09[91] do Estado do Rio Grande do Norte viola nitidamente os arts. 145, II, e 150, I, da Carta Política de 1988, quando fixa a remuneração da atividade de inspeção e manutenção veicular por meio de preço público ou tarifa, quando, em verdade, se trata de inegável exercício do poder de polícia, que é fato gerador da taxa (de polícia).


CONCLUSÃO

Os Programas de Inspeção e Manutenção de Veículos em Uso organizados pelos Estados e Municípios brasileiros – inseridos numa política pública de âmbito nacional composta pelo Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar) e pelo Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) – são instrumentos para redução de emissões de gases e partículas poluentes, bem como de ruído emitido pela frota alvo circulante de veículos automotores.

O Código de Trânsito Brasileiro traz, em seus arts. 24, 25, 104 e 131, alguns contornos gerais acerca do controle da emissão de poluentes e ruídos dos veículos.

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O Ministério do Meio Ambiente, por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), é o órgão responsável por regulamentar o controle da emissão desses gases e partículas, vale dizer, incumbe-lhe determinar a pauta a respeito da matéria.

Hoje, a matéria é minudenciada basicamente pela Resolução CONAMA n. 418, de 25 de novembro de 2009, que dispõe sobre os critérios para elaboração de Planos de Controle de Poluição Veicular (PCPV) e para a implantação de programas de inspeção e manutenção de veículos em uso (I/M) pelos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente e determina novos limites de emissão e procedimentos para a avaliação do estado de manutenção de veículos em uso.

 Conforme demonstramos, a inspeção veicular é atividade que, inegavelmente, realiza o poder de polícia. As legislações estaduais ou municipais têm, indevidamente, delegado o exercício desse poder fiscalizatório a empresas particulares (vencedoras de certames licitatórios).

O poder de polícia – enquanto plexo de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público, liberdades e individuais – não é passível de delegação a empresas privadas que não integram o Estado. Noutros termos, é indelegável o exercício desse poder a pessoas da iniciativa privada que não possuem quaisquer vínculos oficiais com a administração pública.

Por maior que seja a parceria existente, jamais serão dotadas da potestade, do ius imperii – imprescindível ao desempenho da atividade de polícia.

Assim, percebe-se que o Estado, delegando o exercício do poder de polícia a particular, o faz de modo indevido, o que afronta, quando menos, os princípios basilares do direito público, exempli gratia, supremacia e indisponibilidade do interesse público.

Tal situação se passa, por exemplo, na Lei n. 9.270/09 do Estado do Rio Grande do Norte (e seu Decreto n. 21.542/09). A indevida previsão legal de delegação do poder de polícia a pessoa privada está expressa no art. 1º, §§ 1º e 3º desse diploma normativo[92].

Alguns argumentam que se trata, nesse caso, de mera delegação de atos materiais preparatórios ao efetivo poder de polícia, sustentando que a própria lei prevê que não há efetiva delegação desse poder, tal como previsto no art. 1º, §4º, da Lei n. 9.270/09 do Estado do RN[93]. Em verdade, não é a denominação que exprime a substância de um ato jurídico, assim como não é a forma que define a essência do conteúdo. Dizia Geraldo Ataliba, não sem razão, que “os institutos jurídicos são aquilo que sua essência jurídica revela” [94].

Quando a empresa particular constata que o veículo está emitindo poluentes (e/ou ruídos) acima dos níveis permitidos pela legislação, ela não emite o certificado e, consequentemente, o veículo não poderá transitar regularmente (sujeitar-se-á a sanções, v.g., retenção, multas e impossibilidade de renovar a licença do veículo) [95].

O administrado verá, pois, restringido, de algum modo, o seu direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88), que é um direito fundamental individual. Restringir o gozo e o uso de direito individual em prol do interesse da coletividade é, certamente, exercício do poder de polícia. Portanto, transversal e indevidamente a pessoa privada estaria desempenhando o poder de polícia. Daí porque não se pode delegar o poder de polícia, no caso a atividade fiscalizatória realizada na inspeção veicular, à pessoa da iniciativa privada.

Quanto à contraprestação cobrada em virtude desse exercício do poder de polícia, não resta dúvidas de que se trata de taxa, nos termos dos arts. 145, II, da CF/88, e 77 do CTN.

O poder de polícia é atividade estatal a qual a Constituição Federal impõe específica modalidade tributária (taxa), sendo a relação estabelecida entre o cidadão e o Poder Público de cunho legal, e não contratual, a que o particular se submete compulsoriamente.

Na inspeção veicular não há facultatividade. A exação paga em virtude dessa atividade é obrigatória. O administrado se ver compelido a submeter seu veículo à inspeção veicular, sob pena de restrição ao seu direito de trafegar regularmente. Se não há facultatividade, não se pode remunerar essa atividade fiscalizatória através de tarifa/preço público. Só se pode exigir tarifa quando houver, portanto, voluntariedade.

Inexiste, igualmente, autonomia da vontade. Não há liberdade de contratar, inerente ao regime privado das tarifas. Portanto, a contraprestação cabível nesse caso da realização da inspeção veicular deve ser norteada pelo regime de direito público, pois tem inegável natureza tributária. O dever de pagar tributo, sabe-se, é obrigação ex lege.

 Se por um lado o Estado impõe uma prestação pecuniária em decorrência da realização do poder de polícia, o administrado tem o direito de invocar, a seu favor, as limitações a esse poder de tributar estatal, para que se façam presentes todas as prerrogativas albergadas pela Carta Política.

A taxa, diferentemente da tarifa, só pode ser exigida, regra geral, por pessoas jurídicas de direito público, de modo que deve ser paga a Administração Pública, e não a empresa particular. Daí porque pensamos que a Lei Estadual n. 9.270/09, além de ser inconstitucional no que toca ao tipo de contraprestação prevista (tarifa/preço público), o é, ainda, pelo fato de empresa particular não poder ser remunerada por taxa.

Por outros torneios, o poder judiciário deve reconhecer a inconstitucionalidade dos enunciados prescritivos que contêm a expressão “tarifa ou preço público” (os arts. 1º, §1º, 2º e 5º, da Lei n. 9.270/09 do Estado do Rio Grande do Norte), assim como declarar que a exação (que entendemos ser taxa) deve ser recolhida pelo Estado, vez que só à pessoa jurídica de direito público é dado o poder de exigir essa espécie tributária.

Temos para nós, enfim, que a Lei n. 9.270/09[96] do Estado do Rio Grande do Norte viola nitidamente os arts. 145, II, e 150, I, da Carta Política de 1988, quando fixa a remuneração da atividade de inspeção e manutenção veicular por meio de preço público ou tarifa, quando, em verdade, se trata de inegável exercício do poder de polícia, que é fato gerador da taxa (de polícia).

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Sobre o autor
João Eduardo de Carvalho Costa

Advogado em Natal (RN). Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, João Eduardo Carvalho. Poder de polícia e inspeção veicular à luz do regime jurídico-tributário . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3190, 26 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21369. Acesso em: 23 abr. 2024.

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