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Incorporação imobiliária: um comparativo entre a Lei nº 4.591/64 e o Código de Defesa do Consumidor acerca das garantias conferidas aos adquirentes de unidade futura

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09/04/2012 às 08:15
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4 EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO NOS CONTRATOS DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

Alguns autores que se debruçam sobre o estudo da incorporação imobiliária, como Ghezzi (2007, p. 59), afirmam que muito antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Lei nº 4.591/64, que regulamenta as incorporações imobiliárias, já constituía um pequeno sistema normativo. Entretanto, para Nunes (2009, p. 56), esse tipo de sistema ainda era pouco utilizado na teoria jurídica brasileira, somente tornando-se propriamente empregado com o advento do CDC que, a seu ver, implantou um novo sistema legal dentro do ordenamento jurídico pátrio.

É notório que o CDC trouxe consideráveis mudanças nos contratos de incorporação imobiliária, mesmo existindo lei específica que trate sobre tais contratos, entende-se serem plenamente aplicáveis as regras existentes no CDC, pois, são complementares à lei específica.

Vale ressaltar que a doutrina e a jurisprudência já pacificaram seu juízo acerca do assunto. Nesse sentido, citamos o REsp. nº 299.445/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, a saber:

PROMESSA DE compra e venda. Empresa imobiliária. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Rege-se, pela Lei 4.591/64, no que teme de específico para a incorporação e construção de imóveis, e pelo CDC, o contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a companhia imobiliária e o promissário comprador. Recurso conhecido e provido.

Marques (2011, p. 366), por sua vez, ao tratar dos contratos de fornecimento de produtos e serviços, versa especificamente sobre, dentre outros, os contratos imobiliários. Desse estudo extrai-se que:

[...]fácil caracterizar o incorporador como fornecedor, vinculando por obrigação de dar (transferência definitiva) e de fazer (construir). A caracterização de promitente comprador como consumidor, dependerá da destinação do bem ou da aplicação de uma norma extensiva.

Passa-se agora à explanação dos conceitos jurídicos que levam a concluir, com base nas premissas acima mencionadas, a efetiva incidência do CDC nos contratos de promessa de compra e venda, objeto de incorporação imobiliária, conforme adiante se vislumbrará.

4.1 Definição

O enquadramento de uma relação jurídica no arquétipo do microssistema projetado para a defesa do consumidor sempre dependerá de um estudo de caso, ou seja, de uma análise do fato concreto. Por isso, faz-se necessário estabelecer, através de avaliações, quando consistem em relação de consumo, os casos dos contratos de incorporação imobiliária. (BRITO, 2002, p. 193).

Dispõe Brito (2002, p. 225) que, segundo o Código de Defesa do Consumidor, os elementos caracterizadores da relação jurídica de consumo são: consumidor, fornecedor e produto ou serviço, não havendo de se falar em relação de consumo na ausência de um de seus elementos. Ainda sobre o tema, no tocante à aplicação das normas a cada relação jurídica, Brito (2002, p. 227) afirma que:

Se se estiver diante de relação jurídica de consumo, as regras de direito ordinário, vale dizer, civil, comercial, legislação especial, ainda que de direito público, terão apenas aplicação subsidiária, desde que as normas sejam compatíveis com o microssistema instituído pelo CDC.

Perante os elementos cogentes, agora serão caracterizadas as relações de compra e venda de frações ideais de terrenos vinculadas a unidades imobiliárias, que ainda vão ser construídas ou que se encontram em construção, procurando adequar os elementos caracterizadores de uma aos da outra, para que fique patente a possibilidade da aplicação das normas de Código de Defesa do Consumidor nos contratos de incorporação imobiliária.

4.1.1 O enquadramento do incorporador como fornecedor

A figura do incorporador surgiu, na prática, antes mesmo do que a atividade incorporativa propriamente dita, conforme já afirmado no primeiro capítulo deste trabalho. Entretanto, ambos foram efetivamente definidos pela primeira vez pela Lei nº 4.591/64, em seu art.29, a saber:

Art. 29 - Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção. Compromisse ou efetive a venda das frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob o regime condominial, ou que meramente aceite propostas para a efetivação de tais transações, coordenando e levando a terno a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.

Mesmo o art. 3º da Lei nº 8.078/90 não tendo mencionado o incorporador no conceito de fornecedor, não é estranho enquadrá-lo em tal conceito, já que o rol mencionado neste artigo é meramente exemplificativo e não taxativo.

Nesse sentido, relata Brito (2002, p. 229): “como se trata de um conceito abrangente, a figura do incorporador está ali compreendida, sem embargo”.

Na realidade, deve ser considerado que o incorporador acaba exercendo um pouco de quase todas as atividades mencionadas no art. 3º da mencionada Lei, ao passo que cumula várias atividades para pôr em prática o projeto por si idealizado.

Com efeito, o incorporador que idealiza o projeto, busca meios para a execução da construção, transforma o imóvel de modo a deixá-lo pronto para comercialização e moradia, responsabilizando-se pela entrega das unidades ao promitente comprador, e, principalmente, põe à venda, ou seja, lança o seu produto no mercado de consumo com fins de angariar lucros.

O incorporador poderá ser considerado fornecedor, independentemente se pessoa física ou jurídica, pois ambos os artigos supramencionados fazem menção a esse aspecto, desde que a atividade incorporativa fique configurada, ou seja, que tal exercício se constitua de maneira organizada e com fins lucrativos (CHALHUB, 1984, p. 39).

4.1.2 O consumidor

A Lei nº 8.078/90, em seu art. 2º, define consumidor como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Na interpretação do referido artigo, surge da doutrina uma bipartição de correntes, que são: os finalistas e os maximalistas.

Para os precursores do consumerismo, os intitulados finalistas, consumidor seria aquele que retira o bem do mercado para uso próprio, seja ele pessoa física ou jurídica, não utilizando o bem em uma cadeia de produção.

Nessa esteira, Marques (2011, p. 254) pronuncia-se que para ser consumidor “é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final”.

Os adeptos desta corrente defendem que somente podem ser beneficiados com o microssistema do Código de Defesa do Consumidor, aqueles que realmente necessitam de uma tutela especial, e não de qualquer relação comercial, haja vista que estas já têm as suas garantias asseguradas no Direito Comercial.

Tal argumento é ratificado pela própria Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXII, quando identifica os consumidores como grupo a ser especialmente tutelado através de ação do Estado. Ou seja, garante àqueles que realmente necessitam uma proteção diferenciada.

Já para os maximalistas, destinatário final é aquele que retira o produto do mercado para seu consumo, independentemente se auferirá lucro ou não sobre o produto ou serviço. Para tal corrente, o art. 2º do CDC dever ser interpretado da maneira mais ampla possível, de modo a viabilizar uma maior aplicação da lei consumerista nas diversas relações comerciais.

Contudo, pode-se afirmar que não há aplicabilidade do CDC, quando um determinado comprador ou contratante de serviço adquire o produto ou serviço com fins comerciais e com intenção de lucro sobre a aquisição, justamente por predominar na doutrina e na jurisprudência a aplicação da Teoria Finalista, sendo a esta que este trabalho irá se filiar.

4.1.2.1 A equiparação do adquirente de unidade autônoma como consumidor

Relembrando o que já foi discutido anteriormente, investidores atraídos pelo mercado promissor da construção civil e pela grande demanda que se instalava naquele momento no Brasil, pela metade do século XX, começaram a lançar inúmeros empreendimentos de maneira desordenada, sem que houvesse legislação específica para regulamentar tal negócio, a qual veio apenas depois das conseqüências desastrosas, haja vista que não foram poucos os investidores que lançaram empreendimentos e não deram continuidade, levando milhares de famílias ao prejuízo (FRANCO; GONDO,1984, p. 6).

Com veracidade, a Lei nº 4.591/64 veio regulamentar as relações jurídicas existentes entre o adquirente de unidade futura e o incorporador nos contratos de incorporação imobiliária, especialmente para conceder-lhe uma maior garantia, apesar de existirem na própria Lei, algumas falhas apontadas pela doutrina, que se acentuaram com a desigualdade econômica do dia-a-dia. Segundo Ruggiero (apud BRITO, 2002, p. 196), “a LCI foi sendo minada e, com o CDC, algumas dessas minas foram desarmadas.”

Como já se introduziu acima, nem sempre o adquirente de unidade futura será caracterizado como consumidor, contudo, para Brito (2002, p. 231), “não é necessário indagar, portanto, quem é o consumidor na relação jurídica incorporativa, uma vez que está clara a inserção, no conceito legal, do adquirente de unidade condominial autônoma”.

Dessa forma, aquele que adquire o imóvel, ainda em construção, com o intuito de revendê-lo, não pode ser considerado consumidor. Pois de acordo com a corrente que aqui foi adotada, consumidor é o adquirente de unidade futura que compra a fração ideal para consumo próprio.

Outro fator que também deve ser observado é a vulnerabilidade dos adquirentes de unidade futura, colocada no art. 4º, da Lei nº 8.078/90, para que se possa ter certeza da necessidade da aplicação da tutela especial. De acordo com os ensinamentos de Lucca (apud BRITO, 2002, p. 232), “são três as maiores vulnerabilidades do consumidor: publicidade enganosa, as cláusulas contratuais abusivas e os preços abusivos”.

Segundo Brito (2002, p. 246), o preço abusivo é ponto difícil de vislumbrar no comércio imobiliário, haja vista a grande oferta existente no mercado. Já as outras, como a publicidade enganosa e cláusulas contratuais abusivas, não são difíceis de ressaltar. Cotidianamente, maior é a utilização da mídia nos lançamentos de empreendimentos imobiliários, de forma a encantar aqueles que aspiram à aquisição da casa própria. Motivados pelo sonho, pessoas vulneráveis aceitam todas as cláusulas postas no contrato, sendo muitas vezes, desconhecedoras das cláusulas extremamente abusivas.

4.1.3 O objeto da relação jurídica incorporativa e a relação de consumo

O § 1º, do art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor explana que “produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. Portanto, resta claro que a aquisição de fração ideal de terreno está inclusa dentro do que seria o produto objeto da relação de consumo, uma vez que a unidade imobiliária em regime condominial pode não estar pronta, mas o que se adquire naquele momento, com a incorporação imobiliária, é a fração ideal de um terreno.

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Vale ressaltar que este bem, ou seja, a unidade imobiliária que ainda vai ser construída, vinculada à fração ideal de um terreno, deve ser colocada no mercado de consumo por um fornecedor e o referido produto deve ser adquirido por um destinatário final.

4.2 O contrato de incorporação imobiliária perante as normas de proteção ao consumidor

Conforme os ensinamentos de Chalhub (2010, p. 289), o Código de Defesa do Consumidor e a Lei nº 4.591/64 se apóiam na mesma viga de sustentação, ambos os sistemas trazem como princípios a proteção do menos favorecido, a boa fé e a função social do contrato.

A Lei de Condomínio e Incorporações traz peculiaridades fundamentais à proteção do adquirente de unidade futura, estabelecendo de maneira mais específica os direitos e deveres do incorporador e do adquirente, de modo a tornar a relação jurídica mais igualitária.

Quando publicada, a LCI procurava justamente abrigar o adquirente diante de incorporadores com experiência de mercado, mas que, muitas vezes, não detinham a menor condição de levar adiante o empreendimento divulgado, gerando vários prejuízos para o adquirente. Tal era a situação, que a atividade incorporativa sofreu uma diminuição de crédito perante a sociedade, comprometendo, inclusive, o aumento desse importante setor comercial, principalmente nos grandes aglomerados urbanos, onde se encontrava um maior exercício da comercialização de imóveis ainda em construção.

Já o Código de Defesa do Consumidor é um sistema mais abrangente, que visa proteger todas aquelas relações que se enquadrem na regra consumerista. A partir da publicação da Lei nº 8.078/90, instituiu-se um microssistema de amparo ao hipossuficiente, ou seja, àquele que necessita da tutela especial do Estado, firmando os alicerces de um novo sistema contratual e instituindo organismos que minimizam as disparidades do sistema contratual, ao máximo, e as desigualdades que, freqüentemente, se constatam em qualquer relação contratual de consumo (MARQUES, 2011, p. 26-27).

Contudo, já foi anteriormente comprovado, e aqui se reforça a equiparação dos contratos de incorporação imobiliária à Lei nº 8.078/90, adequando-se, assim, o geral ao específico. Sobre o tema, muito acertado é o posicionamento de Chalhub (2010, p. 290): “O CDC veio a equiparar, de forma indireta, o contrato de incorporação de consumo, ao classificar o imóvel como produto e incluir a construção e a comercialização de produtos entre as atividades que caracterizam a figura do fornecedor”.

A aplicação do Código de Defesa do Consumidor não é feita de forma direta, tendo em vista que este não trata de contratos em espécie. Nesse sentido, os preceitos de Azevedo (apud CHALHUB, 2010, p. 292) indicam que: “A demora na atualização do Código Civil fez com que o Código de Defesa do Consumidor, de certa forma, viesse preencher a vasta lacuna que, no campo de direito privado brasileiro, a doutrina e a jurisprudência percebiam há muito tempo”.

Mesmo a Lei nº 4.591/64 trazendo dispositivos que presumam a exigência dos princípios de boa-fé e de equidade contratual, tal norma é dotada de princípios próprios e, nesse aspecto, rege-se pelas regras gerais dos contratos postas na lei civil. Entende Chalhub (2010, p. 294) que o Código Civil de 1916, Lei nº 3.071/16, não possuía expressamente os princípios da boa-fé objetiva e igualdade contratual. Com o CDC, entretanto, tais princípios foram efetivamente incorporados ao ordenamento civil, ocorrendo, automaticamente, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de incorporação, já que a estes se aplicam os princípios civis da teoria geral dos contratos. 

Segundo o referido autor (2010, p. 296), em conseqüência da equiparação acima demonstrada, do fornecedor ao incorporador e do consumidor ao adquirente de imóvel em construção, aplica-se o CDC nas relações jurídicas estabelecidas nas incorporações imobiliárias para suprir lacunas na legislação comum ou na especial.

No próximo capítulo, serão vistas algumas das lacunas que podem ser reivindicadas à aplicação do Código de Defesa do Consumidor como forma de resguardar a correta aplicação da Lei nº 4.591/64, bem como coibir práticas abusivas.

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Sobre a autora
Jaqueline de Miranda Santiago

Graduanda em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Jaqueline Miranda. Incorporação imobiliária: um comparativo entre a Lei nº 4.591/64 e o Código de Defesa do Consumidor acerca das garantias conferidas aos adquirentes de unidade futura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3204, 9 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21445. Acesso em: 19 abr. 2024.

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