Dentre as diversas questões que cercam os contratos de locação, esta é uma das que maiores dúvidas suscita.
No passado, em apertadíssima recordação, a antiga norma disciplinadora das locações (Decreto nº. 24.150 de 1934), conhecida como “lei de luvas” proibia a cobrança de quaisquer “benefícios especiais ou extraordinários e nomeadamente luvas”, conforme seu artigo 29, pois se entendia que as “luvas” (quantia paga pelo locatário ao locador, independentemente do aluguel, para obter o contrato) configurariam locupletamento do proprietário em detrimento do inquilino.
A vedação à cobrança persistiu ao longo de décadas no direito positivo e, por exemplo, a Lei nº. 1.521/51 considerava contravenção penal a cobrança de “luvas” e, a Lei nº. 6.649/79 trazia previsão (Art. 45-I) equivalente à do Decreto nº. 24.150/34, estipulando punição (prisão ou multa) para a hipótese de exigência, por ocasião da locação ou da sublocação, de quantia distinta do aluguel e dos encargos permitidos (isto é, as luvas).
Atualmente a matéria encontra-se prevista no Art. 45[1] da Lei nº. 8.245/91, que se restringe a proibir cobranças quando da renovação do contrato, não quando de seu início.
Este é o entendimento expresso no “enunciado nº. 9” ("A lei 8245/91 não proíbe a cobrança de luvas no contrato inicial da locação comercial"), aprovado à unanimidade, ainda na primeira reunião de estudos sobre a lei de locações, promovida pelo Centro de Estudos e Debates do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nos idos de 1.992. Convém lembrar que esse era o tribunal ao qual competia julgar as ações locatícias em São Paulo.
Com o passar dos anos, a interpretação jurisprudencial não se alterou, como se nota: “Conquanto inexista óbice à cobrança de luvas no início do contrato de locação, o art. 45 da Lei 8.245/91 veda expressamente a cobrança de "luvas" - obrigações pecuniárias - quando da renovação do contrato.” (TJSP – Apelação nº. 91029078.2009.8.26.0000, relator Desembargador Clóvis Castelo, 35ª Câmara, julgamento: 28/02/2011, quase vinte anos depois do “enunciado” antes mencionado).
Deve ser lembrado que não acarretará obrigação de pagar, a eventual estipulação de luvas na renovação contratual feita disfarçadamente e, uma vez provada tal prática, de nada adiantará a criatividade na nomenclatura, ninguém será enganado e por certo o Judiciário prestigiará o dispositivo legal.
Nessa linha, assim como a criatividade vocabular é vazia, também é inócua a representação destas imposições pecuniárias por títulos que supostamente gozariam de autonomia cambial: o 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, há anos, já declarava que “... a cobrança de luvas é considerada contravenção penal. Se as promissórias que fundamentam o processo de execução têm aí sua origem, claro está que não são exigíveis. Tratando-se de contravenção, os títulos que dela emanam não são apenas ineficazes, mas nulos de pleno direito, e assim têm de ser declarados” (Apelação nº. 371489, 8ª Câmara, relator Juiz Rodrigues de Carvalho).
Finalmente, em tema de “luvas” consistiria hipocrisia esquecer a evidência de que seu ajuste e sua cobrança ainda são, muitas vezes, ocultos, seja pela tradição de fuga à anacrônica (e por isso alterada) proibição prevista no decreto de 1.934, seja por simples sonegação fiscal. É curial que inexistindo prova, inexistirá discussão e muito menos ação judicial. Bem por isso, a reduzida quantidade jurisprudencial, que poderia orientar os intérpretes.
Em conclusão prática, é permitida a cobrança de “luvas” no início da locação e proibida na renovação do contrato; situações específicas não cogitadas quando elaborada a lei de locações, merecerão análises e novas construções jurisprudenciais, as quais por sua vez, certamente acarretarão o aperfeiçoamento legislativo, mas essa espera não haveria de nortear imediatas decisões empresariais.
Notas
[1] Este o teor do dispositivo mencionado, da Lei nº. 8.245/91: “art. 45: São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto”.