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Exigência de altura mínima em concurso público

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DO PRINCÍPIO DA REALIDADE

Os atos públicos, sobretudo as leis, almejam, via de regra, impor à sociedade determinada conduta, a qual se credita esteja em melhor conformidade com a justiça.

Para isso, necessário se faz, dentre outras coisas, evitar a lei tomar por base uma sociedade utópica, bem como não se deixar distanciar da realidade a que se destina.

Nas duas hipóteses a lei tende a não ser respeitada, a não ter eficácia social.

A lei, como norma tendente à influenciar no convívio social, não pode se basear em premissa falsa, sob pena de impor uma falsa justiça à humanidade, o que não se pode admitir.

Faço minhas, com a devida vênia, as palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto15, segundo o qual "O entendimento do princípio da realidade parte de considerações bem simples: o direito volta-se à convivência real entre os homens e todos os atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros.

São os fatos que regularmente ocorrem ou podem ocorrer, na natureza física ou convivencial, e só excepcionalmente e por disposição expressa, a ordem jurídica acolhe ficções ou presunções.

Em outros termos, a vivência do direito não comporta fantasias; o irreal tanto não pode ser a fundamentação de um ato administrativo quanto não pode ser o seu objetivo.

O direito público, ramo voltado à disciplina da satisfação dos interesses públicos, tem, na inveracidade e na impossibilidade, rigorosos limites à discricionariedade(...)

(...) O sistema legal-administrativo não pode ser um repositório de determinações utópicas, irrealizáveis e inatingíveis, mas um instrumento sério de modelagem da realidade dentro do possível.

O perigo da violação do princípio da realidade é, ainda por cima, a desmoralização da ordem jurídica pela banalização da ineficiência e a vulgarização do descumprimento, além de pesado tributo do ridículo.

A aplicação discricionária do direito não pode, em conseqüência, considerar existente, suficiente ou possível o que não o é".

Não obstante à clareza do conteúdo e do alcance do princípio da realidade, alguns ‘representantes do povo’, quiçá por ignorância, teimam em não se preocupar com o conteúdo das normas que elaboram.

A comprovação de que a Lei nº 1.223, de 10.11.87, do Estado do Rio de Janeiro encontra-se eivada por infringir o princípio da realidade se encontra no seguinte aresto.

Proc. nº 1997.001.00805

Apelação Cível nº 805/1997 – Reg. 05/09/1997 – fls. 26218/26225 – Unânime

Des. NILSON DE CASTRO DIÃO

Mandado de segurança. Interessados em participar do concurso de ingresso nos quadros da Polícia Militar, mas que não possuem a altura mínima de 1,68m. Impetrantes que já prestam serviços à PMRJ, mediante convênio com o Exército Brasileiro. Se os impetrantes são soldados do Exército Brasileiro que, mediante convênio com o Estado, foram cedidos para prestarem serviços na PMRJ, não se compreende que não possam participar do concurso para que fiquem, definitivamente, nas suas fileiras, por não possuírem a altura mínima regulamentar. A Jurisprudência vem abrandando a rigidez da interpretação da norma, com o princípio da razoabilidade da exigência de alguns desses requisitos, tendo em vista a natureza da função pública, pois a deficiência física pode ser de molde a impedir o perfeito exercício dessa função, mas não é o caso em tela, pois que os impetrantes já exercem a função militar. Apelo Desprovido (IRP)(o grifo não é do original)

Observe-se, pois, que dita lei baseia-se em premissa falsa, qual seja, que pessoas com estatura inferior à 1,68m não têm aptidão e/ou condições físicas suficiente para bem exercer a função policial, infringindo assim o princípio da realidade.

Lógico que, tal como as partes envolvidas no litígio acima, outras pessoas com a mesma estatura têm condições de bem exercer a função de policial, porém estão tendo o seu direito a competir a uma vaga de policial cerceado pelo poder público, como base em lei nitidamente incompatível com os princípio constitucionais.

Repita-se: Se outras pessoas que não possuem a altura mínima estabelecida pela Lei Estadual nº 1.223/87 exercem, com probidade e eficiência, a função policial evidencia-se que este requisito fere o princípio da realidade, da acessibilidade, bem como o da razoabilidade, como já demonstrado.


DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade – também denominado da vedação do excesso – é um importante mecanismo para se averiguar os atos emanados pelo Poder Público. Por ele verifica-se se o poder público excedeu os limites da lei (sentido amplo), por ter utilizado meio mais gravoso para o cidadão.

Utilizando-se ainda as escorreitas lições do eminente Procurador do Estado do Rio de Janeiro16 verifica-se que toda e qualquer medida deve ser adequada e exigível, verbis:

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão de 1971, pronunciou-se em igual sentido:

"O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado quando, com o seu auxílio, se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental.

Verifica-se na decisão do Tribunal alemão a presença de um outro requisito qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou necessidade (Erforderlichkeit) da medida. Conhecido, também, como "princípio da menor ingerência possível", consiste ele no imperativo de que os meios utilizados para o atingimento dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É a chamada proibição do excesso. Uma lei será inconstitucional, por infringência ao princípio da proporcionalidade, "se se puder constatar, inequivocamente, a existência de outras medidas menos lesivas". ( grifo não é do original)

Não se pode deixar de registrar as lições do insigne Constitucionalista Português José Joaquim Gomes Canotilho17, in verbis:

O princípio da exigibilidade, também conhecido como "princípio da necessidade" ou da "menor ingerência possível", coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. Dada a natural relatividade do princípio, a doutrina tenta acrescentar outros elementos conducentes a uma maior operacionalidade prática: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais "poupado" possível quanto à limitação dos direitos fundamentais; (o grifo é do original)

Salta aos olhos, in casu, a ausência de exigibilidade da medida em apreço (exigibilidade de determinada estatura mínima), eis que outras medidas menos gravosas (tais como: prova de esforço físico, de corrida, de salto em altura, salto em distância e etc.) poderiam ser tomadas, a fim de se evitar exclusão sumária de candidatos inteiramente aptos ao satisfatório exercício da função policial.


DO PRECONCEITO

O preconceito é em diversas vezes rechaçado pela Constituição Cidadã e, por isso, constitui elemento identificador de ilegalidade.

Já no Preâmbulo se encontra tal repulsa, ipsis litteris:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Logo após, no inciso IV do rol dos princípios metafictícios, se repele novamente o preconceito:

Art. 3º. Constituem objetos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Duas coisas hão de serem ditas a respeito dos dispositivos acima: uma que não são os únicos na Lei Maior que rechaçam o preconceito; outra que os elementos de discrímen são meramente exemplificativos, pois é máxima do direito que onde houver a mesma razão haverá inexoravelmente a mesma proposição.

Dito isto, deve-se analisar o verdadeiro significado da palavra preconceito:

Conceito18; (Lat. Conceptu), s.m. Tudo o que o espírito concebe e entende; entendimento, idéia, opinião, concepção; síntese; a mente; o juízo; o entendimento; máxima; dito silencioso, moralidade; parte da charada que indica o significado da decifração.

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Preconceito18; s.m. Conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério; preocupação; superstição.

Então, verifica-se que o que o ordenamento jurídico pátrio afasta é a formação de um juízo – conceito – sumário, isto é, um juízo sem conhecimento pleno e exauriente.

Era justamente isso que faziam, ou melhor, poderiam fazer os juízes antes da inserção da cláusula do devido processo legal nos ordenamentos jurídicos medievais, cláusula esta que veio coibir tais atitudes e exigir do judiciário emitir seu juízo de valor quando, e somente quando, tiver o conhecimento pleno e exauriente da questão trazida à análise.

Claro está, pelo exposto supra, que a lei então em análise está a merecer correção, pois fruto de uma valoração sumária, isto é, valoração preconceituosa.


CONCLUSÕES

O instituto Concurso Público é, infelizmente, pouco estudado pelos juristas pátrios, sobretudo pelos advogados, face à pequena quantidade de vezes que o tema é debatido na prática forense.

Com isso, o que se verifica é uma série de arbitrariedades cometidas pelas autoridades públicas sempre em detrimento do cidadão-candidato, que a tudo é submetido e se submete a fim de alcançar o seu objetivo maior, de ocupar um cargo público.

Nesse diapasão, o princípio da vinculação ao edital toma proporções exacerbadas, a ponto de a tudo lhe ter como fundamento.

Assim, os agentes públicos, dentre outras coisas, exigem requisitos sem qualquer correlação com a função a ser exercida, eliminam candidatos, sob o argumento de ter se identificado na prova, muito embora nas fases orais dos mesmos concursos a identificação do candidato seja notória, haja vista a não utilização de vidros especiais que não permitem ao examinador identifica-los; não se fundamenta a correção das provas e nem eventuais decisões de recurso administrativo e etc.

Tudo isso é fruto de uma cultura jurídica que não se atem aos direitos do candidato, mormente porque os estudiosos no tema são, em geral, defensores dos entes públicos e os advogados particulares (profissionais liberais) quando assumem causa deste tipo não estão, em geral, suficientemente aptos a atuar na área pública, haja vista a procura ser voltada quase que exclusivamente à área privada.

O art. 1º da Lei nº 1.223/87, objeto deste estudo - bem como as demais leis de mesma proposição - não merece aplicação, por manifesta inconstitucionalidade superveniente, porquanto infringem diversos princípios constitucionais materiais.

Melhor seria que os legisladores estaduais revogassem expressamente (revogados já estão) tais dispositivos, pois só assim se evitaria mais uma desnecessária contenda jurídica e ajudaria a diminuir o número de processos em trâmite no Poder Judiciário.


BIBLIOGRAFIA

1. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, in Legitimidade e Discricionariedade, 2ª ed., págs. 2/3;

2. Direito Constitucional e Teoria da Constituição – J. J. Gomes Canotilho, Ed. Almeida, tiragem 2000, pág. 283;

3.Direito, Justiça social e Neoliberalismo, Paulo Furtado de Azevedo, pág. 72/3;

4. Legalismo, Dalmo de Abreu Dallari, Rev. Consulex, p.20/1, nº32;

5.Direito Constitucional e Teoria da Constituição – J. J. Gomes Canotilho, Ed. Almeida, tiragem 2000, pág. 1169;

6. Instituições de Direito Civil, Caio Mário da Silva Pereira, vol. I, 18ª ed., Ed. Forense, pág. 85;

7.Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., pág. 624;

8.Hely Lopes Meirelles, in Curso de Direito Administrativo Brasileiro, 21ª ed., Ed. Malheiros, pág. 378;

9.Luis Roberto Barroso, in Interpretação e Aplicação da Constituição, Ed. Saraiva, 1996, pág. 219;

10.Fundamentos de Direito público, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993; apud Raquel Discacciati Bello, ‘O princípio da Igualdade no Concurso Público’, Rev. de Informação Legislativa, nº 131, pág 314;

11.Figueiredo, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994, pág. 41;

12.Fundamentos de Direito público, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993; apud Raquel Discacciati Bello, ‘O princípio da Igualdade no Concurso Público’, Rev. de Informação Legislativa, nº 131, pág 314;

13. Interpretação e Aplicação da Constituição, Ed. Saraiva, 1996, pág. 200;

14.Interpretação e Aplicação da Constituição, Ed. Saraiva, 1996, pág 204;

15.Diogo de Figueiredo Moreira Neto, in Legitimidade e Discricionariedade, 2ª ed., pág. 37;

16.Luis Roberto Barroso, in Interpretação e Aplicação da Constituição, Ed. Saraiva, 1996, pág. 208;

17.José Joaquim Gomes Canotilho15, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, tiragem 2000 Ex, Ed. Almedina, pág. 262;

18. in Dicionário da Língua Portuguesa, Fernando J. da Silva.

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Sobre o autor
Jorge Batista Fernandes Júnior

advogado no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES JÚNIOR, Jorge Batista. Exigência de altura mínima em concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2148. Acesso em: 19 abr. 2024.

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