INTRODUÇÃO
Vive-se em um Estado Democrático de Direito, quando, harmoniosamente e sem hierarquia, impera a legalidade – Estado de Direito – e a legitimidade – Estado Democrático.
"A definição de Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição) pressupõe o reconhecimento de duas distintas ordens de referência ética: a ético-política e a ético-jurídica.
À ordem ético-política corresponde o conceito de legitimidade e à ordem ético-jurídica o conceito de legalidade, (...)
Ambas as ordens, porém, nada mais representam que disposições estáveis do poder na sociedade: uma ordem legitimada pela estabilidade do poder em torno de valores consensualmente aceitos e uma ordem legalizada pela estabilização do poder positivado em normas coativamente impostas"1.
Deve-se ter em mente que, num Estado Democrático de Direito, não só a ocupação do poder deve observar a vontade popular, mas também e, sobretudo, os atos emanados dos poderes públicos devem corresponder aos anseios da sociedade, que não admite o desrespeito aos princípios universais, a não ser que haja alguma tensão aparente a exigir tal medida.
"A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples (delegação da vontade do povo). A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus atos."2
Porém, distantes dessas realidades, nossos pseudo-representantes, a cada dia, produzem cada vez mais normas inconstitucionais, sempre em detrimento de direitos e/ou garantias fundamentais dos cidadãos, que ficam de pés e mãos atadas para enfrentar tais situações.
E assim vão inobservando princípios universais, sem qualquer preocupação com a conseqüente incidência de tais normas na vida da população, pois que se é que juridicamente pode-se afirmar que uma lei inconstitucional não está apta a produzir efeito, tal assertiva não se pode fazer do ponto de vista sociológico, pois que os menos cultos, sejam por temor ou mesmo por ignorância, cumprem toda e qualquer lei que lhe é imposta.
Cabe a comunidade jurídica e em especial aos juízes de direito enfrentar com veemência tais normas, cruéis com os cidadãos.
"Não é admissível que a Ciência do Direito sobreponha as construções jurídicas aos homens concretos. Precisa contribuir à efetividade da ordem jurídica, transcendendo o arranjo lógico-formal dos direitos e obrigações, aferindo a aptidão das leis à construção de um convívio menos inumano, mais harmônico e solidário. A interpretação lógico-sistemática dos textos legais, por melhor articulada que seja, não é suficiente. Deve o jurista saber ler o silêncio da ordem jurídica, cuja eloqüência pode ser maior do que a de sua escrita. É nele e nas entrelinhas das leis que, com freqüência, se tecem privilégios e se afunilam as oportunidades. (...) Não pode o jurista ser insensível ao clamor de seu povo e surdo às lições da História.(...) Não basta constatar que a ordem jurídica não os discrimina de modo explícito. Tem-se de buscar dela extrair meios para obviar essa situação, para o que são necessários operadores jurídicos servidos por ampla formação, tanto jurídica quanto geral, abertos ao horizonte social, libertos dos antolhos positivistas, em que se apascenta o ideal da ciência pela ciência, servido pelo egoísmo e a indiferença pelo próximo"3.
Neste sentido, busca-se, com o presente estudo, ajudar àqueles que estão sendo proibidos de ingressar nos quadros das Polícias Militares, graças ao capricho do legislador estadual fluminense que, sem qualquer base científica, vem ao longo da história reproduzindo, como papagaio, norma no sentido de exigir determinada estatura mínima dos candidatos.
No caso específico do Estado do Rio de Janeiro, encontra-se exigência neste sentido no art. 1º da Lei Estadual nº 1.223, de 10.11.1987 (DOERJ, de 11.11.87), in verbis:
Art. 1.º A altura mínima para admissão de candidatos nos quadros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro passa a ser de 1,68m (um metro e sessenta e oito centímetros) para os de sexo masculino.
Tal exigência vem sendo tutelada por nossos Tribunais, sobretudo, pelo Supremo Tribunal Federal, que já proferiu entendimento no sentido de sua licitude, desde que tenha, o edital do certame, base legal para tanto, conforme se pode verificar no aresto do Recurso Extraordinário nº148095/MS, de relatoria do Exmº. Ministro Marco Aurélio, cuja ementa é a seguinte:
CONCURSO PÚBLICO - AGENTE DE POLÍCIA
- ALTURA MÍNIMA - VIABILIDADE. Em se tratando de concurso público para agente de polícia, mostra-se razoável a exigência de que o candidato tenha altura mínima de 1,60m. Previsto o requisito não só na lei de regência, como também no edital de concurso, não concorre a primeira condição do mandado de segurança, que é a existência de direito líquido e certo.
Em que pese à origem do entendimento supra, ousa-se afirmar que este não mais se coaduna – se é que um dia se coadunou – com o melhor direito, que deve ter sempre como base os princípios universais, a lógica, a razão, enfim, a ordem natural das coisas.
Nem mesmo o princípio da legalidade, em sua verdadeira acepção, tutela este tipo de exigência, caprichosa, eis que "Na obra de Montesquieu, Do Espírito das Leis, está presente a idéia de que todos os seres humanos estão sujeitos as leis, que são expressão da razão. Há uma lei política e uma lei civil, não sendo admissível um relacionamento humano fora da lei. (...) Entretanto, a lei de que falavam Montesquieu e os primeiros liberais era a lei natural numa concepção racional, entendida como "a relação necessária que deriva da natureza das coisas". E o que acabou prevalecendo foi a lei apenas formal, fabricada artificialmente pelos Legislativos, sem qualquer preocupação com a justiça(...)
Para os adeptos dessa linha de pensamento que restringe ao conjunto de regras formalmente postas pelo Estado, seja qual for seu conteúdo, resumindo-se nisso o chamado positivismo jurídico(...) Essa concepção do Direito é conveniente para quem prefere ter a mente anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir as responsabilidades e riscos e procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política. Os normativistas não precisam ser justos, embora muitos deles sejam juízes"4.
A razão, a lógica, a ordem natural das coisas, não está a acobertar norma jurídica que contém exigência caprichosa e sem base científica, como é o caso, muito embora em alguns Estados Federados, como no Estado do Rio de Janeiro, exista legislação expressa, que está sendo imposta aos cidadãos.
DA RECEPÇÃO
Uma constituição, ao entrar em vigor, não invalida todas as normas anteriores, mas tão-somente aquelas formalmente constitucionais - compatíveis ou não – salvo disposição expressa em contrário, e as normas infraconstitucionais com si materialmente incompatíveis.
As demais, materialmente compatíveis com os seus preceitos e princípios são recepcionadas pela nova ordem jurídica, recebendo novo fundamento de validade e, às vezes, novo status.
A não-recepção, também denominada de inconstitucionalidade superveniente, por sua vez, difere-se da inconstitucionalidade propriamente dita, tendo reflexos práticos importantes.
"A inconstitucionalidade superveniente refere-se, em princípio, à contradição dos actos normativos com as normas e princípios materiais da Constituição e não à sua contradição com as regras formais ou processuais do tempo da sua elaboração"5.
A possibilidade de fiscalização de vícios formais das normas pré-constitucionais, de acordo com os novos parâmetros de produção jurídica "conduziria à inconstitucionalidade de grande parte do ordenamento jurídico anterior, mesmo quando, rigorosamente, as suas normas não estão em contradição com as normas e princípios da Constituição (materialmente consideradas)"5, frustrando-se, assim, a finalidade precípua do instituto.
Outra diferença, de ordem prática, é a não incidência do art. 97 da Constituição de 1988.
O insigne prof. Caio Mário ensina que "Se após a existência da regra legal aparece princípio constitucional com ela incompatível, não se trata de inconstitucionalidade da lei, pois que ao tempo de sua votação inexistia na Constituição preceito contrário. Há simples revogação, distinção que tem importância, porque o quorum especial dos tribunais (Constituição Federal, art. 98) para sua declaração"6.
Outra diferença importante consiste na possibilidade de propositura de ação direta de inconstitucionalidade tendo por objeto a apreciação da compatibilidade de norma pré-constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, hoje em dia, já firmou o entendimento no sentido de ser a via direta de controle da constitucionalidade mecanismo de defesa da supremacia da constituição em vigor, e não, da ordem jurídica pretérita.
A via direta de controle da constitucionalidade não constitui meio idôneo, adequado à simples decretação de inconstitucionalidade superveniente – revogação – das normas pré-constitucionais, de modo que se configura a falta de interesse processual, ação neste sentido.
Neste sentido, veja-se a ementa da ADIMC nº 385 / DF, cujo relator foi o Exmº Ministro Moreira Alves, in verbis:
EMENTA :
- Ação direta de inconstitucionalidade. A questão da incompatibilidade entre lei infraconstitucional e Constituição, quando aquela é anterior a esta, se circunscreve ao âmbito da revogação, e não da inconstitucionalidade, não podendo, por isso, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade.
Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.
No mesmo sentido, veja-se a ementa da ADIMC nº 381 / DF, cujo relator também foi o Exmº Ministro Moreira Alves, in verbis:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
- NAO CABE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARA SABER-SE SE INSTRUÇÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL QUE SE LIMITA A REPRODUZIR DISPOSITIVO DE LEI, QUE SE ALEGA REVOGADO PELA ATUAL CONSTITUIÇÃO, E, POR VIA INDIRETA, INCONSTITUCIONAL.
- A questão da incompatibilidade entre lei infraconstitucional e constituição, quando aquela e anterior a esta, se circunscreve ao âmbito da revogação, e não da inconstitucionalidade, não podendo, por isso, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.
Enfim, estas são importantes diferenças, que não se afiguram somente de caráter didático, mas também exercem importância na prática jurídica.
DO PRINCÍPIO DA ACESSIBILIDADE À FUNÇÃO PÚBLICA
Dentre os princípios setoriais que regem o concurso público no ordenamento jurídico pátrio está o da Acessibilidade à função pública, insculpido no art. 37, I da Constituição de 1988, cuja redação primitiva estabelecia:
Art. 37.... omissis...
I – "Os cargos, empregos e funções são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei";
A emenda nº 19/98 - denominada reforma administrativa - deu nova redação ao art. 37, I, in verbis:
Os cargos, empregos e funções são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
Tal modificação em nada influencia o presente trabalho, eis que apenas amplia o direito de o estrangeiro ocupar cargo, emprego ou função pública em nosso Estado, o que, inclusive, já estava sedimentado em sede jurisprudencial.
Destarte, ao se debruçar para a análise do dispositivo supra citado o jurista esbarrará com uma indagação, a saber: Quais requisitos podem ser estabelecidos por lei? A resposta, pelos argumentos que serão expostos, só pode ser uma: os requisitos procedimentais do certame, de ordem formal (tais como, inscrição, presença, obtenção de pontuação mínima, classificação correspondente à quantidade de vagas existentes e etc.) e requisitos indispensáveis à função, de ordem material.
Pode-se afirmar, sem medo de errar, que os requisitos hão de ser "indispensáveis", pois todos os requisitos que possam ser dispensados, ou seja, não imprescindíveis ao bom desempenho da função pública, não podem ser exigidos, sob pena de se burlar o princípio do amplo acesso.
Repito: Exigir-se requisito dispensável é retirar de parte do povo – atualmente, com a emenda nº 19/98, melhor dizer da população – o seu direito de acesso à função pública, restringindo assim, sem qualquer ponderação de interesses, o princípio da universalidade.
Aliás, uma interpretação histórica do princípio da acessibilidade à função pública, verifica-se ter sido o mesmo elevado à categoria de dogma constitucional na Carta Política de 1824, art. 179, n. 14, cujo texto não deixa dúvidas acerca de seu significado, de sua intenção, in verbis:
Todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes;
Lecionando sobre o tema é categórico o festejado Constitucionalista José Afonso da Silva7:
Esta (a lei ordinária) está limitada à própria regra constitucional, de sorte que os requisitos nela fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do principio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa. (parêntese posto)
O saudoso Administrativista Hely Lopes Meirelles, escreveu, com a propriedade que sempre lhe foi peculiar, que "é preciso ver que, além das distinções acima referidas, a igualdade de todos os brasileiros perante a lei veda as exigências meramente discriminatórias, como as relativas ao lugar de nascimento, condições de fortuna, família, privilégios de classe ou qualquer outra qualificação social. E assim é porque os requisitos a que se refere o texto constitucional (art. 39) hão de ser apenas os que, objetivamente considerados, se mostrem necessários ao cabal desempenho da função pública"8. (grifei)
O fato de o constituinte, atento à natureza sintética da Constituição, ter submetido ao legislador ordinário o dever de estabelecer os requisitos formais e materiais necessários ao bom exercício de cada função, não dá ao legislador o direito de restringir, quando possível ampliar, a incidência de princípios constitucionais, tal como o princípio da acessibilidade.
O princípio da efetividade, segundo o qual deve-se "dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso "9, deve ser aplicado ao presente caso.
Como bem doutrina Carlos Ari Sundfeld10:
" O Princípio jurídico determina o sentido e o alcance destas, (as regras) que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamento jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, no sentido que vai daqueles para estas." ( parêntese posto)
"aquele que só conhece as regras ignora a parcela mais importante do direito – justamente a que faz delas um todo coerente, lógico e ordenado. Logo, aplica o direito pela metade."
Lúcia Valle Figueiredo, ratificando os ensinamentos do Constitucionalista Português Canotilho, ensina, com propriedade, que "a discricionariedade do legislador deve ser aferida dentro dos princípios abraçados pela Lei Máxima, porque são os ‘vetores’ de todo o sistema normativo11".
Sempre oportuna é a lição que nos dá o iluminado jurista Carlos Ari Sundfeld, a respeito da interpretação e aplicação do direito12, in verbis:
"a) é incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar contradição, explícita ou velada, com os princípios;
b) quando a regra admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece a que melhor se afinar com os princípios;
c) quando a regra tiver sido redigida de tal modo que resulte mais extensa ou mais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcance da regra com o princípio"
Tal ensinamento serve a todos os operadores do direito, inclusive aos legisladores, que devem exercer a atividade legiferante de forma mais escorreita possível.
Note-se que a própria Constituição da República de 1988 estabeleceu, quando se reporta a licitação, o espírito que deve nortear a Administração Pública, diante de um procedimento seletivo que visa assegurar a igualdade, a impessoalidade e a competitividade, para se escolher o melhor.
Muito embora tenham o concurso público e a licitação objetos diferentes, a verdade é que ninguém ousa discordar que ambos se assemelham por constituírem um procedimento seletivo que visa assegurar a igualdade, a impessoalidade e a competitividade para a escolha do melhor para a Administração Pública.
O inciso XXI do art. 37 da Constituição da República, ao estabelecer a obrigatoriedade de licitação, mostra claramente que se exigir requisitos (no caso, qualificações técnicas e econômicas) dispensáveis a boa realização do serviço fere o princípio da competitividade.
Assim reza o dispositivo em comento:
Art. 37...omissis...
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. ( grifo nosso)
Só isto já é suficiente para demonstrar a inconstitucionalidade, no caso, superveniente da exigibilidade de estatura mínima para ingresso nos quadros da Polícia Militar, todavia, por amor à literatura, se demonstrará ainda que lei neste sentido fere ainda o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade, bem como é fruto de um preconceito que o ordenamento jurídico repulsa.
DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
O princípio da razoabilidade, indubitavelmente consagrado na cláusula do due process of law, em seu aspecto substancial – substantive due process – tem como finalidade dar azo ao exame de congruência lógica dos elementos do ato público.
A esse respeito leciona Luís Roberto Barroso13:
"De toda sorte, a cláusula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essa condições poder-se-á admitir a limitação a algum direito individual."
Algumas páginas depois o ilustre publicista ratifica o entendimento de Rafael Bielsa14:
"É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso;"
Veja-se que, in casu, não há congruência lógica entre motivo, meio e fim (razoabilidade interna), no que concerne à Lei nº 1.223, de 10.11.87, do Estado do Rio de Janeiro, vez que não existe correlação lógica entre o motivo (necessidade de admissão de pessoal, dentre outros atributos, com força física suficiente ao bom desempenho da função policial) e o meio utilizado (limitação de estatura).