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Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: a preponderância dos direitos da gestante

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6. Ponderação de direitos constitucionais

Em que pese não existir consenso a respeito da existência ou não de vida nos fetos anencéfalos, é possível constatar que toda problemática gira em torno de saber qual direito constitucional deve prevalecer: o direito à vida do feto anencéfalo ou os direitos à saúde, à liberdade e à dignidade da gestante.

A Constituição é composta por normas-regras e normas-princípios, mais especificamente “por regras e princípios de diferentes graus de densidade normativa (concretização), articulados de maneira tal que, juntos, formam uma unidade material (unidade da constituição).” (CUNHA, 2011, p. 144).

Para estabelecer a diferença entre os princípios e as regras, a doutrina criou alguns critérios. Segundo Robert Alexy (2008, p. 87) há diversos critérios para se distinguir regras de princípios, sendo o mais usado o da generalidade:

Há diversos critérios para se distinguir regras de princípios. Provavelmente aquele que é utilizado com mais freqüência é o da generalidade. Segundo esse critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que todo preso tem direito de converter outros presos à sua crença. Segundo o critério da generalidade, seria possível pensar em classificar a primeira norma como princípio e a segunda como regra.

Ainda para o mesmo autor o ponto decisivo na distinção entre princípios e regras é que os princípios determinam que algo seja feito na maior medida do possível:

O ponto decisivo na distinção entre princípios e regras é que os princípios são normas que ordenam que algo seja feito na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida da sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. (ALEXY, 2008, p. 90-91)

Para complementar o posicionamento acima, pode-se citar Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 155):

Interessante destacar que os princípios, por se revelarem como normas jurídicas impositivas de optimização, ainda que eventualmente conflitantes (o que pode ocorrer), coexistem, pois permitem o balanceamento de valores e interesses de acordo com sua importância para o caso concreto, ou seja, podem ser objeto de ponderação, harmonização ou concordância. Já as regras sequer podem coexistir quando colidentes, pois as regras antinômicas excluem-se.

No caso em apreço, é notório que as normas invocadas (direito à vida, à saúde, à liberdade e à dignidade da pessoa humana) são normas-princípios, dotadas de alto grau de abstração e generalidade. Dessa forma, as referidas normas coexistem no ordenamento jurídico, não são excludentes, podendo uma ou outra prevalecer no caso concreto.

O conflito entre regras se resolve no âmbito da validade. Para a solução dos conflitos entre as chamadas normas-regras, deve-se excluir uma delas do ordenamento, aplicando-se para tanto um dos critérios propostos por Noberto Bobbio (1999): o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e o critério da especialidade (lex specialis derogat generali).

E quando há colisão entre princípios constitucionais? Como resolvê-los? Diferente do conflito entre normas-regras, a colisão entre normas-princípios não se resolve no campo da validade, mas sim no campo do valor. Nesse sentido:

A colisão entre princípios constitucionais não se resolve no campo da validade, mas no campo do valor. Se uma determinada situação é proibida por um princípio, mas permitida por outro, não há que se falar em nulidade de um princípio pela aplicação do outro. No caso concreto, em uma "relação de precedência condicionada", determinado princípio terá maior relevância que o outro, preponderando. Não se pode aceitar que um princípio reconhecido pelo ordenamento constitucional possa ser declarado inválido, por que não aplicável a uma situação específica. Ele apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio também reconhecido pela Constituição. A solução do conflito entre regras, em síntese, dá-se no plano da validade, enquanto a colisão de princípios constitucionais no âmbito do valor. (CRISTÓVAM, 2012, p. 11)

De acordo com Robert Alexy (2008, p. 94-95), todos os princípios constitucionais têm o mesmo valor em abstrato, de forma que a solução ao conflito entre uns e outros somente pode ser dada quando analisado o caso concreto, pois poderão ser valorados de forma distinta, dadas as circunstancias postas.

Essa relação de tensão não pode ser solucionada com base em uma precedência absoluta de um desses deveres, ou seja, nenhum desses deveres goza, “por si só, de prioridade”. O “conflito” deve, ao contrário, ser resolvido “por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes”. O objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto: (…)

Ressalta-se que não existe direito absoluto, por mais fundamental que possa parecer, pois sua valoração deve ser realizada no caso real analisado. Pedro Lenza (2008, p. 590) classifica essa característica dos direitos fundamentais como “limitabilidade” ou “relatividade”.

No mesmo sentir José Sérgio Cristóvam (2012, p. 12) afirma que “a existência de princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se mostra consoante com o próprio conceito de princípios jurídicos”.

Destarte, para que se possa solucionar a colisão entre direitos constitucionais faz-se imperativo utilizar o princípio da proporcionalidade, a fim de se descobrir qual deles deve preponderar no caso concreto.

Ao estudar a colisão de princípios constitucionais George Lima (2012, p. 4-5) defende que as duas soluções encontradas pela doutrina de Hesse e Dworkin devem sempre estar acompanhadas pelo princípio da proporcionalidade:

Duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina (estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin). A par dessas duas soluções, aparece, em qualquer situação, o princípio da proporcionalidade como "meta-princípio", isto é, como "princípio dos princípios", visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O próprio HESSE entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da proporcionalidade.

A nosso ver, essas duas soluções (concordância prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como "parâmetro": primeiro, aplica-se a concordância prática]; em seguida, não sendo possível a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando, o mínimo possível, o princípio de "menor peso".

O princípio da proporcionalidade não se encontra expresso no texto constitucional brasileiro, mas pode ser extraído do principio do devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV.

O devido processo legal possui duas dimensões: o devido processo legal formal ou procedimental e o devido processo legal material ou substantivo. A primeira remonta à Carta do Rei João Sem Terra, de 1215, e diz respeito à abertura de processo formal, regular. A segunda diz respeito à necessidade da razoabilidade da decisão. Fazendo um breve retrospecto sobre a origem do princípio, cito:

Na verdade, a razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido processo legal, antigo instituto do direito anglo-saxão que remonta à cláusula de law of the land inscrita na Magna carta de 1215. Esta garantia teve origem na Inglaterra, com um aspecto meramente formal (“procedural due process”, segundo o qual não é possível a condenação de alguém sem o devido processo legal) e se desenvolveu nos Estados Unidos com uma aspecto muito mais substantivo ou material (“substantive due process of law”) para permitir ao Judiciário investigar o próprio mérito dos atos do poder público, a fim de verificar se esses atos são razoáveis, ou seja, se estão conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 227).

A doutrina alemã divide o princípio da proporcionalidade em três elementos ou subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação.

No direito constitucional alemão, a ponderação é uma parte daquilo que é exigido por um principio mais amplo. Esse princípio mais amplo é o princípio da proporcionalidade. O principio da proporcionalidade compõe-se de três princípios parciais: dos princípios da idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito (ALEXY, 2007, p. 110-111).

Na adequação deve-se perguntar se a medida adotada é hábil a atingir a finalidade pretendida. Na necessidade pergunta-se se a medida adotada é realmente necessária, isto é, se não existe um meio menos gravoso para alcançar o objetivo almejado. Na proporcionalidade em sentido estrito busca-se sopesar os princípios constitucionais envolvidos a fim de dar preponderância ao de maior valor no caso concreto.

Melhor explica a divisão o Ministro Gilmar Mendes (2012, p. 4):

O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-se que, na prática, adequação e necessidade não têm o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado. Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final.

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Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito).

Diante das explicações acima, é chegada a hora de averiguar qual direito deve prevalecer na colisão entre o direito à vida, atribuído ao feto, e o diretos à saúde, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, conferidos à gestante.

E, como visto, a análise de tal conflito deve ser feita com base no princípio da proporcionalidade, valorando-se, no caso concreto, a qual direito deve ser atribuído maior peso, a fim de que se obtenha um resultado satisfatório.

Como já ressaltado anteriormente, não existe um consenso mínimo sobre a existência ou não de vida nos fetos anencéfalos. Sem querer retornar à discussão e sem a pretensão de chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto, parte-se da premissa hipotética de que existe vida no feto.

Para os defensores da proibição do aborto no caso em apreço, a vida do feto deve ser preservada, pois o direito à vida deve ser protegido desde a concepção. O direito à vida seria, pois, um bem maior, um direito fundamental inviolável, de forma que a vida dos fetos deve ser protegida em detrimento de qualquer outro direito que se possa conferir à gestante, mesmo que seja breve e que a morte seja um fato certo.

Do outro lado, alega-se em defesa do direito à saúde da gestante que a gravidez de fetos anencéfalos possui muitos riscos, por exemplo, óbito intra-uterino, possibilidade de toxemia gravídica em razão do excesso de líquido amniótico, aumento dos riscos obstétricos no parto e no pós-parto, hipertensão e diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário, esterectomia, etc. Além da saúde física, a saúde mental e psicológica das gestantes também seria abalada, pois a alegria da espera do nascimento de um filho se transforma na angústia da espera de uma criança morta.

Por sua vez, argumenta-se que forçar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida é violar a dignidade da sua condição de ser humano, submetendo-a a um tratamento equivalente a tortura.

Sustenta-se ainda em favor das gestantes que, obrigá-las a suportar os riscos a sua saúde física e as dores emocionais de uma gravidez infrutífera, em prol de deixar nascer um feto sem condições de vida extra-uterina, sobre o qual pesa a dúvida da efetiva existência de vida, viola os direitos à liberdade e autonomia da vontade. Liberdade de consciência e crença para escolher entre aguardar o fim da gravidez ou de por fim imediatamente à mesma.

Para sopesar os direitos contrapostos deve-se verificar se satisfeitos todos os elementos do principio da proporcionalidade, subsumindo o caso aos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação.

a) Adequação: saber se as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos.

Para a análise da adequação, interessante fazer as seguintes indagações:

É adequado compelir a gestante a aguardar até o fim da gravidez, sujeitando-se a múltiplos riscos à sua saúde e física e mental, suportando todas as dores psicológicas tortuosas, para que seu filho possa ter breves momentos de vida biológica, ainda que inconsciente, e morrer pouco tempo depois? É adequado obrigá-la a dar à luz a um ser anencéfalo apenas porque algumas pessoas entendem que a vida tem início desde a concepção?

Ou é adequado permitir que a gestante opte por interromper a gravidez, se entender que não deve colocar sua saúde em risco e/ou não tem condições psicológicas de suportar a dor de carregar por nove meses um feto que  sobreviverá por apenas poucas horas/dias? É adequado que a gestante esteja livre para decidir se deseja dar à luz mesmo colocando sua saúde em risco?

Sem dúvidas, a resposta à primeira indagação só pode ser negativa. E à segunda positiva.

Não é adequado obrigar a gestante a colocar sua saúde física e, quiçá, sua própria vida, em risco, apenas para que o feto venha a nascer e morrer logo em seguida. Da mesma forma que não é adequado obrigar a gestante a conviver por nove meses com a tortuosa dor de saber que terá que enterrar seu filho logo depois que ele nascer. Não é adequado coagir a gestante a dar à luz a um ser anencéfalo apenas porque algumas pessoas entendem que a vida tem início desde a concepção e por isso deve ser protegida incondicionalmente, a qualquer custo.

b) Necessidade: saber se existe um meio menos gravoso para alcançar o objetivo almejado.

Respondido ao questionamento sobre o que é mais adequado, deve-se perguntar se não existe meio menos gravoso aos direitos do feto e que ao mesmo tempo possa resguardar os direitos da gestante.

Infelizmente, não existe tratamento ou cura para anencefalia, sendo fatal em 100% (cem por cento) dos casos. Assim, a morte do feto sempre ocorrerá, seja dentro do útero, seja poucos dias após o parto.

Em contrapartida, não existe outro meio apto a garantir os direitos da gestante que não seja o de permitir-lhe optar se deseja ou não interromper a gravidez.

c) Proporcionalidade em sentido ou ponderação: busca valorar os princípios constitucionais envolvidos a fim de dar preponderância ao de maior valor no caso concreto.

De acordo com Robert Alexy (2007, p. 110-111), utiliza-se a ponderação se os sacrifícios não podem ser evitados, devendo-se observar três passos: 1) comprovar o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio; 2) comprovar a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; 3) comprovar se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não cumprimento do outro:

Se custos ou sacrifícios não podem ser evitados, torna-se necessária uma ponderação. A ponderação é objeto do terceiro principio parcial do princípio da proporcionalidade em sentido restrito. Esse princípio diz o que significa a otimização relativamente às possibilidades jurídicas. Ele é idêntico com uma regra que se pode denominar “lei da ponderação”.

A lei da ponderação deixa decompor-se em três passos. Em um primeiro passo deve ser comprovado o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio. A isso deve seguir, em um segundo passo, a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário. Em um terceiro passo deve, finalmente, ser comprovado, se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não cumprimento do outro.

Não há duvidas que o direito à vida é um dos direitos mais importantes do ordenamento jurídico. Isso não significa dizer que deve ser absoluto, que não possa sucumbir frente a determinadas situações específicas. Os entendimentos extremistas geralmente levam a algumas distorções e injustiças, razão pela qual devem ser sempre evitados.

Como já informado algumas vezes ao longo deste trabalho, não existe consenso no campo filosófico, religioso ou cientifico a respeito de quando a vida começa. Por outro lado, também não há consenso sobre a existência de vida nos fetos anencéfalos, mesmo após o nascimento dos mesmos.

Inobstante, ainda que se entenda pela existência de vida após o nascimento dos anencéfalos, tal vida será meramente biológica ou vegetativa, pois como visto antes, mesmo que se visualize atividade cerebral nos fetos anencéfalos, esta é absurdamente limitada, apta a produzir apenas movimentos involuntários tais como respiração e funções vasomotoras.

Dessa forma, não haverá vida racional, caracterizadora da própria condição humana, pois o feto anencéfalo, por não possuir Sistema Nervoso Central, não terá consciência, será incapaz de relacionar-se, de comunicar-se, de sentir dor ou de ter emotividade.

Assim, além da certeza do óbito do feto anencéfalo e do pouco tempo de sobrevida extra-uterina, se houver, pode-se dizer que nesse pouco tempo haverá tão-somente uma vida vegetativa, inconsciente, incapaz de perceber a própria existência. Ousa-se dizer que apesar da forma física humana, qualitativamente não haverá vida humana.

Nestes termos, ao se impedir o abortamento, nada mais se estará a fazer do que postegar um fato que ocorrerá invariável e naturalmente. Em outras palavras, a pretendida proteção à vida do feto só durará enquanto a natureza quiser, de forma que não se pode dizer que o prejuízo ao princípio será incalculável ou de grande monta.

O anencéfalo vai e sempre vai, mas a vida que fica, a vida da mãe, não precisa sofrer tantos danos e muitas vezes irreparáveis. Como já dito e repisado, a gravidez em circunstâncias tais possui muitos complicadores à saúde da gestante, podendo causar inclusive riscos de vida à da mesma. Há um grande percentual de óbitos intra-uterinos, o aumento de líquido amniótico pode causar toxemia, aumentam-se os riscos obstétricos no parto e pós-parto, possibilidade de desenvolvimento de hipertensão, diabetes, parto prematuro, gravidez prolongada, descolamento placentário e até esterectomia. A gestante pode perder seu útero e ver acabar seu sonho de ter mais filhos.

Por sua vez, o abalo à saúde mental e psíquica da gestante é incomensurável, podendo levar a um quadro de depressão, stress, angústia, culpa e até tentativa de suicídio, como relatou o Dr. Professor Doutor Jorge Andalaft Neto, quando ouvido na Audiência no STF, dia 28/08/2008 (BRASIL, 2008c, p.19):

Agora, o impacto sobre a saúde mental das mulheres é impressionante. O risco de depressão é oito vezes maior. O stress psíquico, a angústia, a culpa, pensamentos de suicídios - temos casos em que a mulheres queriam se suicidar por se sentirem culpadas, fora que a situação conjugal dessas mulheres fica muito comprometida -, fixação na imagem fetal, sofrimento e tristeza profunda.

A Dra. Lia Zanotta Machado, socióloga, quando ouvida na audiência no STF, dia 04/09/2004 (BRASIL, 2008d, p. 47-50), trouxe relatos de mulheres que passaram por uma gravidez de anencéfalo, os quais revelam quão tortuosa pode ser tal experiência:

Baseio-me nos depoimentos de 58 mulheres de nove Estados brasileiros que, graças à liminar do Supremo Tribunal Federal, vigente de julho a outubro de 2004, decidiram interromper a gravidez. Todas pobres, casadas ou solteiras, com e sem filhos, de diferentes idades e identidades raciais.

Trago as vozes de quatro destas mulheres. Suas experiências evidenciam três momentos: o do encontro com o trágico, com a tortura e com a supressão da tortura. Nomeiam a tragédia de diferentes formas.

Érica relata o momento do diagnóstico com ultra-som: “ele, primeiro, olhou para mim e disse que a criança tinha um problema. Perguntei se tinha solução. Não tinha. Depois, um crente, nas clínicas, me falou que Deus ia pôr um cérebro no filho na hora do nascimento.” Tomada pelo choro, responde a si mesma com angústia, mas com certeza: “nunca que ia ocorrer que, depois de o nenê estar formado, fosse aparecer o cérebro do nada”.

Camila, logo depois do diagnóstico de anencefalia fetal, declara: “fiquei dez dias em casa sem fazer nada. Não me penteava; não me levantava. Era como se eu não quisesse mais viver”.

Dulcinéia, sete filhos, conta-nos sobre a recente gravidez: “fiz ultra-som, me disseram que era anencefalia. Contei para meu pai, minha mãe, meus irmãos. O companheiro nem acreditava. Para mim, o filho é tudo.”

Michele detalha angustiada: o radiologista olhou para a tela, olhou para mim, meu coração deu um estralo; me senti a pior mulher do mundo. Foram os piores momentos do mundo. É que ele foi esperado, desejado, amado antes de ser gerado.”

Todas elas, de diferentes formas, vivenciam a tragédia de esperar um filho ou filha e saber que a anencefalia implica na certeza da morte cerebral já acontecida e na certeza de uma curta sobrevida vegetativa, quando e se ocorrer.

Nomeiam a tortura de diferentes formas. Para Érica, seria continuar a gravidez. Seria “muito mais sofrimentoA gravidez de Michele foi anunciada dentro de um programa de reprodução assistida, depois de haver tentado engravidar durante um ano, vivida com extrema expectativa e felicidade. Depois do diagnóstico de anencefalia fetal, foi descrita como um “trauma terrível”.

Todas elas experimentam a tragédia inevitável da morte cerebral fetal. Sofrem e vivem a tragédia, mas não a confundem com a situação torturante de levarem adiante a gravidez. Querem decidir. Nomeiam a supressão da tortura de diferentes formas: “tirar o peso do mundo de suas costas”, “aquietar aquilo que estava se passando”.

Para Érica, se ela não tivesse feito a antecipação, “nada ia mudar no feto, ele só ia crescer, mas do mesmo jeito. Se fosse para ser saudável, seria desde o começo”.

Camila sente alívio e paz com a antecipação do parto: “sentiu as dores no dia 18 de outubro às seis da tarde; às seis e meia estava andando no hospital. Foi como se tirassem um peso muito grande das minhas costas; como se tivessem tirado com a mão o peso; parecia que eu estava carregando o mundo dentro de mim”. Michele considera: “meu sonho lá - a saudade do filho que não teve - era o que tenho hoje; a felicidade da filha, nascida de segunda gravidez. Sintetiza o que entende por supressão da situação torturante: “se fosse para fazer, eu faria novamente. Não é arrependimento. Não é culpa. O que fiz, foi aquietar aquilo que estava se passando”.

Todas elas diferenciam o que é evitável do que é inevitável. O que é tragédia do que é tortura. De um lado, o inevitável da tragédia e, de outro, o sofrimento desnecessário e evitável da continuidade da gravidez com diagnóstico de morte fetal cerebral. Quiseram a supressão da situação torturante.

Como se pode perceber dos depoimentos acima, obrigar a gestante a carregar por nove meses um feto sem qualquer expectativa de sobrevida traduz-se na violação de sua dignidade, submetendo-a à tortura, tanto física, quanto psicológica. Assim, não há melhor saída do que conceder à gestante o direito de optar pela interrupção ou pela continuidade da gravidez.

Não se pode negar a importância dos direitos ora conferidos às gestantes (saúde, dignidade, liberdade), restando demonstrado que o cumprimento dos mesmos justifica o prejuízo ou não cumprimento do direito à sobrevida do feto.

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Sobre a autora
Danielle de Paula Maciel dos Passos

Procuradora da Fazenda Nacional. Ex-analista judiciário do TJMA. Pós Graduada em Direito Processual pela UNAMA. Pós Graduada em Direito Tributário pela UNIDERP. Pós Graduanda em Direito Constitucional pela UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Danielle Paula Maciel. Interrupção da gravidez de feto anencéfalo: a preponderância dos direitos da gestante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3206, 11 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21486. Acesso em: 26 abr. 2024.

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