1. INTRODUÇÃO
A priori, é importante destacar que o debate a respeito da constitucionalidade dos crimes de gestão temerária só surgiu após a entrada em vigor da Lei n.° 7.492/86, lei que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, popularmente conhecida como “Lei do Colarinho Branco”.
Anteriormente, a questão era regulada pela Lei nº 1.521/51, que dispõe sobre os crimes contra a economia popular, e o crime de gestão temerária estava abrangido na descrição típica prevista no art. 3º, inciso IX, nos seguintes termos:
Art. 3º. São também crimes desta natureza: (...)
IX - gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de construções e de vendas e imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlios, pensão e aposentadoria; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falência ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados;
Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa, de vinte mil a cem mil cruzeiros.
Com o advento da Lei nº 7.492/86, toda gestão temerária de entidade considerada “instituição financeira”, conforme definição constante do art. 1º da nova lei[1], passou a ser punida nos termos desta e não mais nos termos da Lei nº 1.521/51.
É de se ressaltar que a Lei 7.492/86 não inovou na criminalização da conduta de gestão temerária. Como já destacado, esta conduta já era criminalizada na Lei dos crimes contra a economia popular. A nova lei, entretanto, alterou a tipificação anteriormente prevista para os crimes de gestão temerária praticados por instituições financeiras, excluindo dela os elementos descritivos da conduta típica e consagrando a figura delitiva tão somente pelo nomen iuris do crime.
2. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA, ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 7.492/86
A atual previsão típica para o delito de gestão temerária contida na Lei 7.492/86 é a seguinte:
Art. 4º Gerir Fraudulentamente instituição financeira:
Pena – Reclusão, de 3(três) a 12(doze) anos, e multa.
Parágrafo único. Se a gestão é temerária:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
Como se observa acima, o tipo penal em apreço (“se a gestão é temerária”) não descreve qual vem a ser o comportamento proibido, deixando inteiramente a critério da doutrina e da jurisprudência a definição e a abrangência do delito de gestão temerária.
Sabemos que há uma justificativa política para tanto: por ser o crime econômico, em decorrência de seu modus operandi e da dificuldade de se achar provas, uma conduta mais difícil de ser penalizada, o legislador, com o objetivo de ampliar o raio de acesso do tipo, através da Lei 7.492/86, optou por criar um tipo penal aberto para definir o crime de gestão temerária.
Entretanto, essa justificativa de cunho extrajurídico não tem o condão de adequar o crime de gestão temerária (nos moldes hoje previstos) ao modelo constitucional-legal de Direito Penal adotado em nosso país.
A nossa Magna Carta ao determinar, em seu art. 5º, inciso XXXIX, que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, adota expressamente o princípio da legalidade ou da reserva legal em matéria penal.
E como bem ensina GRECO, esse princípio, que determina que a lei é a única fonte do Direito Penal quando se quer proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção, desempenha as seguintes funções fundamentais: (i) proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia); (ii) proibir a criação de crimes e penas pelos costumes (nullum crimen nulla poena sene lege scripta); (iii) proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege scripta); (iv) proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa).[2]
Assim, podemos afirmar que o princípio da legalidade implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo, no momento de elaboração das leis, que redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao Judiciário, no momento de aplicação das leis, que as interprete restritivamente, de modo a preservar a efetividade do princípio.
Nesse sentido, Maurício Antônio Ribeiro Lopes assinala:
É mister que a lei defina o fato criminoso, ou melhor, enuncie com clareza os atributos essenciais da conduta humana de forma a torná-la inconfundível com outra, e lhe comine pena balizada dentro de limites não exagerados. [3]
Ainda sobre a necessidade de taxatividade dos tipos penais, Luiz Regis Prado destaca:
Procura-se evitar o arbitrium judicis através da certeza da lei, com a proibição da utilização excessiva e incorreta de elementos normativos, de casuísmos, cláusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos. O princípio da taxatividade significa que o legislador deve redigir a disposição legal de modo legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico (lex certa). Tem ele, assim, uma função garantista, pois o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante contitui autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade.[4]
Importante ressalva faz Manoel Pedro Pimentel:
A falta de um elemento seguro na descrição do fato tipificado, conduz ao risco de entregar a definição da tipicidade a um critério eminentemente subjetivo, reduzindo duramente a garantia assegurada pelo princípio constitucional da reserva legal, repetido no art. 1º do CP: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.[5]
Não desconhecemos, entretanto, que a ciência jurídica penal, por sua própria natureza, admite certo grau de indeterminação dos tipos penais (e essa indeterminação é, inclusive, necessária), visto que muitos dos termos utilizados pelo legislador admitem várias interpretações, bem como existem situações em que não há como o legislador prever e descrever especificamente todas as condutas possíveis.[6] Nesses casos, o legislador se vale dos tipos penais abertos[7] e suas cláusulas gerais valorativas. É o que ocorre nos crimes culposos e omissivos impróprios (art. 13, §2º, CP), por exemplo.
Mas, temos sempre que ter em mente que o princípio constitucional da legalidade impõe um mínimo de determinação das proibições ou comandos da lei penal (principio da taxatividade), cuja ausência impede o conhecimento das proibições e rompe a constitucionalidade da lei penal, regida pela formula “lex certa”[8]. O nosso ordenamento jurídico não permite tipos penais tão abertos que deixem ao intérprete a verdadeira delimitação do proibido.
Dessa forma, não há nada errado em o legislador se utilizar dos tipos penais abertos desde que as condutas proibidas sejam minimamente determinadas e impossibilitem uma interpretação arbitrária por parte do juiz.
E é exatamente aí que reside o problema do tipo penal em análise previsto no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86. Na descrição típica do delito de gestão temerária, o legislador não conseguiu delimitar minimamente a conduta proibida, o que atenta claramente contra o princípio da legalidade, especialmente ao seu subprincípio, o da taxatividade (lex certa), gerando grande insegurança jurídica, conforme explicitado acima.
E além de a descrição típica ser extremamente aberta, outro aspecto controverso deste tipo penal se encontra no sentido literal do vocábulo “temerário” (elementar do tipo), que possui mais de um significado (arrojado, imprudente, infundado), e certamente tal significado variará de acordo com o ponto de vista do intérprete.
Coadunamos do entendimento do i. ZAFFARONI no sentido de que:
deve-se optar pela inconstitucionalidade quando a aplicação da máxima taxatividade interpretativa se torne por demais artificiosa, o que ocorre quando a interpretação resultante carece de todo ponto de apoio legal (implicando contradições, perdas de referência ou rupturas com a disciplina legal da matéria penalmente legislada), ou quando aquele ponto de apoio deva ser buscado em uma esfera bem distante, ou, ainda, quando a lei contém uma irracionalidade irredutível que não responde a um notório erro material de impressão. Em tais casos deve-se preferir a inconstitucionalidade, porque o outro caminho, ainda que percorrido pela doutrina e pela jurisprudência não interdita o âmbito de arbitrariedade seletiva das agências executivas.[9]
3. CONCLUSÃO:
Portanto, em decorrência de completa impossibilidade de se definir qual vem a ser a conduta reprovável do tipo penal em apreço (crime de gestão temerária, previsto no art. 4º, parágrafo único da Lei nº 7492/86), somos do entendimento de que se trata de norma inconstitucional, por violação do princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, devendo ser assim declarada e expressamente extirpada do nosso ordenamento jurídico.
BIBLIOGRAFIA:
ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Direito Penal Brasileiro –I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 207-208.
BITENCOURT, CEZAR ROBERTO, “Princípios Garantistas e a Delinqüência do Colarinho Branco”, artigo publicado na Revista Brasileira Ciências Criminais, n.° 11, jul-set de 1995.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 1 – Parte Geral. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 4ª Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
COSTA, JOSÉ DE FARIA e ANDRADE, MANUEL DA COSTA, “Sobre a Concepção e os Princípios do Direito Penal Econômico”, texto incluído na obra Temas de Direito Penal Economico, Roberto Podval (Org.), São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2001.
FRAGOSO, FERNANDO, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, in “Lições de Direito Penal”, Parte Especial, de Heleno Cláudio Fragoso, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1988.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios Penais Constitucionais: O Sistema das Constantes Constitucionais. RT, Fascículos Penais, Ano 89, v. 779. RT: São Paulo. 2000. p. 426.
MAIA, RODOLFO TIGRE, Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional,São Paulo: Ed. Malheiros, 1996.
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 443.
PIMENTEL, MANOEL PEDRO, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1987.
PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 133.
REALE JUNIOR, MIGUEL, Problemas Penais Concretos, São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
Notas
[1] Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.
Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:
I - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;
II - a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.
[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. P.96.
[4]PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 133.
[5] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 52.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 1 – Parte Geral. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.11 e GRECO, Rogério. Op. cit. p. 167.
[7] Fala-se em tipo aberto quando o legislador, em razão da impossibilidade de prever todas as condutas passíveis de acontecer na sociedade, cria tipos nos quais não descreve de forma completa e precisa o comportamento considerado proibido e criminoso, o que impõe a necessidade de complementação pelo intérprete da norma. Nessa linha, tipo aberto é aquele que traz em seu bojo requisitos normativos, de forma a exigir do aplicador do Direito, a realização de juízo normativo. Exemplificando: praticar ato obsceno. A norma penal não especifica o que seja ato obsceno, cabendo ao intérprete buscar a sua definição.
[8] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 4ª Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 25
[9] ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Direito Penal Brasileiro –I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 207-208