O presente artigo versa sobre a inovação trazida ao ordenamento jurídico penal pela Lei nº 12.015/09, que revogou o art. 224 do Código Penal, que, por sua vez, tratava da presunção de violência nos crimes sexuais contra, entre outros indivíduos, os menores de catorze anos, emplacando no art. 217-A desse mesmo diploma legal a figura do estupro de vulnerável.
Discute-se aqui se o legislador ordinário, em que pese a induvidosa necessidade de se tutelar penalmente a dignidade sexual das pessoas tidas por incapazes em razão da idade, não terá olvidado a evolução dos costumes e, por conseguinte, da compreensão pela “vítima” do ato por ela realizado e a vontade por ela manifestada de assim proceder (ausência de coação física e também psicológica)[1].
Sem dúvida. Ainda em 1940, o legislador, na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, houve por bem, no item de número 70, ressaltar que o limite etário previsto em lei anterior à sua edição (então dezesseis anos) deveria ser minorado para catorze anos, para fins de presunção da violência (art. 224 do CP). Respaldou-se tal entendimento na circunstância de, já àquela época, ser assente a “precocidade no conhecimento dos fatos sexuais”. Deixou bem claro o legislador na aludida oportunidade que:
“(...) o fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a ‘innocentia consilli’ do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que uma pessoa de 14 (catorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que se corre se se presta à lascívia de outrem (...)”. (sem grifo no original)
Com base nesse fato, ainda nos anos 90, surgiram duas correntes doutrinária e jurisprudencial com o intuito de adequar a realidade traçada no Código Penal de 1940 com a então circundante, já que o art. 224 do CP presumia violento o ato sexual que envolvesse menores de catorze anos, desconsiderado seu consentimento. Como acontece no Direito Penal, uma delas se mostrou favorável ao reconhecimento da presunção absoluta da violência e a outra passou a considerá-la de modo relativo, isso é, passível de prova em contrário.
Verifica-se, de plano, dos aspectos acima assinalados, que uma forma de coadunar o tipo penal autônomo à realidade social contemporânea é admitir que a referida discussão acerca da presunção de violência ainda não alcançou termo.
Com efeito, a presunção de violência encontra-se subsumida na figura da vulnerabilidade do sujeito envolvido em um relacionamento sexual. Guilherme de Souza Nucci, a esse respeito, acertadamente, assevera que[2]:
“(...) agora, subsumida na figura da vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar a relativa vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece acertada. A lei não poderá jamais modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade.” (sem grifo no original)
E, como salientou o insigne doutrinador retromencionado, tal se dá em virtude da premente necessidade de se compatibilizar o dispositivo legal em testilha com os princípios da intervenção mínima e da ofensividade.
Acerca do princípio da intervenção mínima do Direito Penal expõem de forma brilhante Luiz Flávio Gomes, Antonio Molina e Alice Bianchini que[3]:
“A intervenção penal, em razão da natureza do castigo penal, que retrata a forma mais drástica de reação do Estado frente ao delito, deve ser fragmentária e subsidiária. Isso é o que caracteriza o princípio da intervenção mínima, que constitui a base do direito penal mínimo. (...) A fragmentariedade do direito penal (...), por sua vez, significa duas coisas: (a) somente os bens jurídicos mais relevantes devem merecer a tutela penal; e (b) exclusivamente os ataques mais intoleráveis é que devem ser punidos penalmente.
(...)
A subsidiariedade do direito penal, por seu turno, significa sua posição de ultima ratio frente aos demais sistemas de controle social formal ou informal. Se outros setores do ordenamento jurídico se apresentam como suficientes e, portanto, como mais idôneos para a tutela de determinado bem jurídico, não se deve utilizar o direito penal para atender tal finalidade.”
Tem-se, assim, delimitado o alcance do Direito Penal, o qual se presta a tutelar bens jurídicos cuja ofensa venha perturbar de modo efetivo o convívio social, inexistindo tutela satisfatória em outro ramo do Direito.
Atrela-se a isso a necessidade de constatação de lesão ou perigo concreto de lesão a um bem jurídico penal (lesão jurídica), cuja conceituação assume conceito normativo, valorado pelo legislador, e não naturalístico de dano físico ou material do bem existencial. Nesse sentido, a realidade sexual que interfere sobremaneira nos costumes vigentes na atualidade não só não pode como não deve ser modificada pela singela vontade do legislador.
Evidente, do exposto, que o legislador brasileiro ao subsumir a figura típica do art. 217-A ao limite etário, não acompanhou a evolução da sociedade no cenário sexual, de modo a efetivamente respeitar o princípio da intervenção mínima do Direito Penal.
A presunção da violência inserta no contexto da vulnerabilidade, quanto ao aspecto puramente etário, deve ser relativa, tendo em conta não somente os princípios acima aludidos como, principalmente, os motivos constantes da opção legislativa adotada em 1940 igualmente citados, sob pena de se estar diante de produção legislativa totalmente desconforme e desproporcional à realidade vigente.
Efetivamente, o legislador contemporâneo deveria ter aplicado raciocínio semelhante ao exposto por aquele ainda em 1940, por inegável, nos dias atuais, a disseminação da questão sexual entres os adolescentes de doze ou treze anos. Hoje, o franco acesso dos adolescentes a programas televisivos com essa temática e também à internet possui o condão de conferir a tais indivíduos plena compreensão do ato sexual e de outras questões a ele atinentes, sendo, ademais, possível a obtenção por eles, mesmo no âmbito escolar, de orientação nesse sentido.
O panorama acima retratado é verificado de forma mais corriqueira nas regiões Norte e Nordeste do nosso País, sobretudo nas localidades mais carentes e afastadas dos grandes centros, em que muitos adolescentes, com idades inferiores a catorze anos, por se tornarem pais muitos jovens acabam por vivenciar verdadeiras uniões estáveis, assumindo, assim, compromissos e afazeres de adultos. Nesse contexto, fechar os olhos para essa realidade seria o mesmo que tornar criminosos muitos pais de família que por terem desposado suas mulheres ainda adolescentes, incidiriam, não obstante o dever conjugal de coabitação entre eles existente, de forma reiterada na figura típica do estupro, praticado em continuidade delitiva, até o alcance por sua esposa/convivente da idade catorze anos.
Mostra-se necessária a unificação das idades dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal. A proteção, pelo segundo, da dignidade sexual dos menores de 14 anos de forma rígida na maioria das vezes tem se mostrado inócua, já que muito mais adequado à realidade social brasileira o marco etário previsto no ECA, 12 anos, para a puberdade e desenvolvimento do indivíduo. Os milhares de relacionamentos firmados com e entre pessoas menores de 14 anos não podem ser simplesmente olvidados ou tidos como ofensivos à ordem jurídica penal vigente sem que antes se afira o caso concreto.
É justamente esse descompasso que autoriza a discussão aqui travada, pois não só se mostra cabível como extremamente necessário enxergar na figura da vulnerabilidade a possibilidade de reconhecimento da presunção relativa.
Não se está a discorrer acerca da proteção à dignidade sexual das crianças (menores de doze anos), a qual, sem sombra de dúvida, é merecedora de ser considerada absoluta no cenário dos crimes contra ela perpetrados, mas, apenas, repise-se, a proteção absoluta e a vulnerabilidade conferida àqueles tidos, em razão da idade, por adolescentes, já que o legislador, ao proceder desse modo indevidamente olvidou os princípios da intervenção mínima e da ofensividade, pilares do Direito Penal.
Há que ser tido por vulnerável e, portanto, merecedor da tutela penal, no campo dos delitos contra a dignidade sexual, aquele que realmente se mostrar impossibilitado de externar o seu consentimento racional, seguro e pleno. Ora, um adolescente hoje já é dotado de capacidade intelectual para compreender a seriedade do ato sexual, podendo, por conseguinte, externar sua opinião e desejo ao se deparar com tal situação.
O penalista Rogério Greco, ao discorrer sobre a norma prevista no art. 224 do CP, adverte que a presunção de violência intentava a proteção da “indenidade sexual” da vítima, citando, sobre o tema, excertos da monografia de Emiliano Borja Jiménez, verbis[4]:
“Indenidade sexual é um conceito que se utiliza para abarcar as hipóteses nas quais a vítima não goza de liberdade sexual, seja momentânea, seja por um espaço de tempo mais ou menos permanente. A pessoa adulta que, por qualquer causa, se haja privada de sentido, uma criança de nove anos ou um sujeito que sofre qualquer tipo de transtorno psíquico, nenhum deles pode em um momento determinado dispor sobre sua liberdade sexual. E se alguém mantivesse relações desta índole com a pessoa que se encontra nessa situação, atacaria sua indenidade sexual. E se entende por tal o direito que todo o ser humano tem a manter incólume sua dignidade humana frente a consideração de seu corpo como mero objeto de desejo sexual. Desta forma, a indenidade sexual está intimamente relacionada com a dignidade humana e com o livre desenvolvimento da personalidade. A dignidade humana se reflexa na auréola de respeito que todo o ser humano merece pelo mero fato de ter nascido, e que impede que seja considerado como um objeto, como uma coisa, neste caso, como um mero instrumento dos instintos sexuais do outro.” (sem grifo no original)
Por esse prisma, resta flagrante que a indenidade sexual de um adolescente, na acepção conferida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não pode ser tida por agredida se restar comprovada sua maturidade para se relacionar sexualmente com outro indivíduo, analisando-se cada caso de forma concreta.
Quando evidente, na espécie, a maturidade do adolescente para ser sujeito de prazer, afastada se acha a figura da vulnerabilidade ou a presunção de inocência.
Com efeito, sem violência real e ante o consentimento do adolescente não há qualquer ofensa à sua dignidade sexual passível de ser tutelada pelo Direito Penal. E nem poderia ser diferente, pois o ordenamento jurídico penal, com a edição das normas aqui referidas, buscou a tutela da dignidade sexual e o resguardo da respeitabilidade do ser humano em matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção no cenário em testilha, circunstâncias que só podem ser aferidas caso a caso.
Exemplo da ausência da ofensa mencionada é o do namoro de um adolescente maduro com o consentimento dos pais, bem como a orientação sexual escolar que de há muito lhe é passada e o desejo sexual que nutre por sua parceira.
Ainda que o tipo penal não inclua o consentimento do ato sexual em seu preceito, não há como olvidar o contexto social atual, visto sob a ótica da formação sexual, desenvoltura e intenções racional e emocional do adolescente tido como “vítima”, conduzindo a condenação de seu par por estupro de vulnerável à esdrúxula punição de conduta não agressora, de modo indesculpável, do bem jurídico penal que se busca tutelar.
Como dito, aliás, há que se ter em mente que o ECA, legislação exemplar em inúmeros aspectos, considera adolescente, por razões óbvias de desenvolvimento físico e mental, todo o indivíduo maior de doze anos, a quem, por tal razão e de forma mais gravosa, admite a atribuição da prática de ato infracional e assegura a aplicação de medida socioeducativa.
Acerca do entendimento jurisprudencial anterior à mudança implementada pela Lei n. 12.015/09, ora combatida, e a análise da presunção relativa de violência, destaque-se[5]:
“RECURSO ESPECIAL COM PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. INCIDENTE NÃO PROCESSADO. INICIATIVA EXCLUSIVA DOS ÓRGÃOS DOS TRIBUNAIS. PRECEDENTES. ESTUPRO MEDIANTE VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA ADOLESCENTE. CONDUTA ANTERIOR À LEI Nº 12.015/2009. ACÓRDÃO HOSTILIZADO QUE CONSIDERA RELATIVA A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. MANUTENÇÃO DO DECISUM A QUO. INTERPRETAÇÃO ABRANGENTE DE TODO O ARCABOUÇO JURÍDICO. A POSSIBILIDADE DE A MENOR, A PARTIR DOS 12 ANOS, SOFRER MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS É INCOMPATÍVEL COM A PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA NO ESTUPRO. PRECEDENTE. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DAS PROVAS ACERCA DO CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. SÚMULA 07 DO STJ.
(...)
2. O delito imputado ao recorrido teria sido em tese praticado anteriormente ao advento da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, que implementou recentíssimas alterações no crime de estupro. O acórdão absolutório, objeto do presente recurso especial, entendeu ser insustentável que uma adolescente, com acesso ao modernos meios de comunicação, seja absolutamente incapaz de consentir relações sexuais, o que, no entender do Tribunal a quo, implicaria responsabilização objetiva ao réu, vedada no nosso ordenamento jurídico.
3. É inadmissível a manifesta contradição de punir o adolescente de 12 anos de idade por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Precedente - HC 88.664/GO, julgado em 23/06/2009 pela 6ª Turma desta Casa e divulgado no Informativo Jurídico nº 400 deste Superior Tribunal de Justiça.
(...).” (sem grifo no original)
Acresça-se a isso que a colenda Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nas decisões exaradas no HC 88.664/GO e no REsp 403.615/MG, expressamente assinalou que a violência prevista no então artigo 224, “a”, do Código Penal deveria ser relativizada conforme o caso analisado, presunção que, como ora defendido, ainda deve ser vislumbrada.
Demais disso, cumpre destacar as palavras da Ministra do egrégio STJ Maria Thereza de Assis Moura que, apesar da extensão, merecem ser transcritas[6]:
“(...) não me parece juridicamente defensável continuar preconizando a ideia da presunção absoluta em fatos como os tais se a própria natureza das coisas afasta o injusto da conduta do acusado. Vale ressaltar, neste ponto, que em recente decisão a Sexta Turma defendeu a quebra de mais esse paradigma penal, em julgamento do HC 88.664/GO, de que relator o eminente Desembargador Celso Limongi.
Na oportunidade, lembrou o Ilustre magistrado, que as sociedades mudam e os conceitos e preconceitos de igual modo.
A propósito, cabe destacar do seu belo voto:
‘(...) A conduta do paciente se subsumiu ao tipo descrito no artigo 213, combinado com o artigo 224, alínea "a", ambos do Código Penal? Por esse fato, merece o paciente a pena que lhe foi imposta, 6 anos e 9 meses de reclusão, em regime inicial fechado? É essa pena objetivamente justa? O comportamento do paciente merece, sem dúvida, críticas. (...)
De qualquer modo, não estamos nem podemos examinar sua conduta do ponto de vista social, mas do direito penal. E, em seu favor, vimos que nutria afeto à vítima, tanto que buscou autorização dos pais desta para namorá-la. Não se pode deixar de consignar também que a própria menor aceitou o convite para ir ao Motel e manter relações sexuais. O ato foi consentido e aqui é que se enfrenta o maior problema: a lei penal não atribui validade ao consentimento de menor de 14 anos de idade para a prática de relações sexuais ou de atos libidinosos. Em outras palavras, presume-se a violência contra menores com menos de 14 anos de idade. Caracteriza-se, por definição legal, o estupro, se houver conjunção carnal, ou o atentado violento ao pudor, se se limita à prática de atos libidinosos distintos da conjunção carnal. Esse é o pensamento do legislador de 1940, ano em que nasceu o Código Penal Brasileiro. Em primeiro lugar, faz-se necessário relembrar que o Direito não deve ser estático, mas, por força das vertiginosas transformações sociais, nem sempre consegue acompanhá-las. Por isso, o Direito erige-se tantas vezes em óbice ao desenvolvimento da sociedade. O chileno Eduardo Novoa Monreal escreveu monografia a propósito desse tema e já no preâmbulo anotou:
‘... a nota mais deprimente reside em que os preceitos, esquemas e princípios jurídicos em voga se vão convertendo, gradualmente, não apenas em um pesado lastro que freia o progresso social, quando não chega, muitas vezes, a levantar-se como um verdadeiro obstáculo para ele’ (cf. ‘O Direito como obstáculo à transformação social’, Sergio Antonio Fabris Editor, pág. 9, Porto Alegre, 1988).
E, nesse aspecto, é inegável o valor da jurisprudência, pois esta comumente vem à frente do legislador e é para ele fonte de inspiração. Em tantos temas de Direito Privado, de Direito Público e de Direito Penal, as decisões do Judiciário foram dando interpretação às leis e culminaram por adiantar-se ao legislador e disciplinaram relações fáticas, para cujas soluções não havia lei expressa. O Judiciário viabilizava uma solução e, posteriormente, o legislador a encampava, transformando-a em lei. Parece claro que, quando se interpreta um Código Penal nascido em 1940, portanto, com 69 anos de idade, é preciso adequá-lo à realidade de hoje, levando em conta os valores da atualidade, para que as decisões sejam mais justas. O outro aspecto que merece destaque se prende a que, para a boa interpretação da lei, é necessário levar-se em consideração todo o arcabouço normativo, todo o ordenamento jurídico do País. A interpretação da lei não prescinde do conhecimento de todos os ramos do Direito. Uma visão abrangente desse arcabouço facilita - e muito - o entendimento e a interpretação da lei. Assim, em tal linha de raciocínio, o Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser analisado, para enfrentar a questão posta nestes autos, a de se saber se o estupro e o atentado violento ao pudor por violência presumida se qualificam como crimes e, mais, como crimes hediondos. É necessário levar em conta o Estatuto da Criança e do Adolescente, porque, pelo artigo 2° desse Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. E, como lembra Carlos Antônio R. Ribeiro, ‘se menor a partir de 12 anos pode sofrer medidas socioeducativas, por ser considerado pelo legislador, capaz de discernir a ilicitude de um ato infracional, tido como delituoso, não se concebe, nos dias atuais, quando os meios de comunicação em massa adentram em todos os locais, em especial nos lares de quem quer que seja, com matérias alusivas ao sexo, que o menor de 12 a 14 anos não tenha capacidade de consentir validamente frente a um ato sexual’ (cf. ‘Violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual’, in Revista da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco, vol. 5, número 12, pág. 216). Imagine-se a hipótese de um jovem de 18 anos de idade que beije lascivamente sua namorada de 13 anos ou que com ela pratique alguns atos libidinosos não dos mais íntimos. Pela presunção de violência que o Código Penal de 1940 estabelece, pois a menor de 14 anos não dispõe de vontade válida, será esse jovem condenado a no mínimo 6 anos de reclusão! E o Código, ao presumir a violência por não dispor a vítima de vontade válida, está equiparando essa adolescente a uma pessoa portadora de alienação mental, o que, convenhamos, não é razoável. Isto, em pleno século XXI! A Constituição Federal importou do direito anglo-americano o princípio do devido processo legal na sua face substantiva, de modo que ela autoriza a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a permitir que o juiz hoje se inquiete com a injustiça da lei, a proporcionalidade dos encargos, a razoabilidade da lei, quando antes não era senão a voz da lei, o cego cumpridor da lei, o escravo da lei, um ser como que inanimado, como preconizava Montesquieu, preocupado, naquele contexto histórico em que viveu, com poder o magistrado interpretar a lei. Aliás, Manoel Gonçalves Ferreira Filho deixou assentado: Contudo, a Carta lhe (ao Judiciário) deu, mesmo nessa função típica, em certo distanciamento em relação a lei que não admitia a doutrina clássica. Com efeito, o texto importou o due process of law substantivo do direito anglo-americano (art. 5°, LIV), afora o aspecto formal, de há muito presente em nosso sistema por meio dos princípios da ampla defesa, do contraditório, etc.,mantido no art. 5°, LV da Constituição. Assim pode hoje o magistrado inquietar-se sobre a razoabilidade da lei, a proporcionalidade dos encargos que acarreta, etc., quando antes não lhe cabia senão ser a voz da lei’. (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, pág. 67).
E, efetivamente, não se pode admitir no ordenamento jurídico uma contradição tão manifesta, a de punir o adolescente de 12 anos de idade, por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz, tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Isto, quando já se sabe que o adolescente de hoje recebe muito mais informações sobre sexo do que o adolescente da década de 1940...
(...)”. (sem grifo no original)
Nessa mesma linha de raciocínio, em decisão mais recente, a Terceira Seção da Quinta Turma do STJ, em processo igualmente relatado pela ilustre Ministra Maria Thereza de Assis Moura[7], em um caso em que as “vítimas”, à época dos fatos, já se prostituíam há bastante tempo, entendeu que a presunção de violência no crime de estupro tem caráter relativo e pode ser afastada diante da realidade concreta. Para a Relatora, apesar de buscar a proteção do ente mais desfavorecido, o magistrado não pode ignorar situações nas quais o caso concreto não se insere no tipo penal. Em seu voto, restou corretamente consignado que:
“(…) não me parece juridicamente defensável continuar preconizando a ideia da presunção absoluta em fatos como os tais se a própria natureza das coisas afasta o injusto da conduta do acusado.
(…)
O direito não é estático, devendo, portanto, se amoldar às mudanças sociais, ponderando-as, inclusive e principalmente, no caso em debate, pois a educação sexual dos jovens certamente não é igual, haja vista as diferenças sociais e culturais encontradas em um país de dimensões continentais.
(…)
Com efeito, não se pode considerar crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado – a liberdade sexual –, haja vista constar dos autos que as menores já se prostituíam havia algum tempo”, concluiu a relatora”.
Apesar de já ser uma posição consolidada no âmbito da jurisprudência da Quinta Turma do STJ, o julgado acima mencionado (cujo número do processo não foi divulgado em razão de sigilo judicial), recebeu veementes críticas por parte de membros do Governo Federal, bem como por segmentos da comunidade jurídica brasileira, sobretudo os de proteção à criança e ao adolescente, à consideração de que a presunção de violência é absoluta, sob pena de se favorecer a prática sexual de adolescente com menos de catorze anos de idade.
Repise-se não se olvidar, in casu, a lei, à qual, todavia, deve ser imposto o filtro dos fatos que inspiraram sua edição, cuja compreensão deve ser conjugada com o contexto normativo do ordenamento jurídico em que inserida, de modo a não se admitir incongruências capazes de comprometer a integridade do sistema e, nessa medida, sua força normativa.
A postura que ora se defende, assim, objetiva tão-somente elidir a prática de injustiça maior do que se almeja prevenir com a suposta preservação pelo art. 217-A da dignidade sexual do adolescente vítima de relação sexual racionalmente consentida, a importar em tipicidade meramente formal da conduta.
O poder normativo, a toda evidência, não é ilimitado, sujeito que é ao devido processo legal substantivo, não se admitindo imposições arbitrárias se considerados os anseios sociais. Contexto esse que ressalta incompatibilidade a ser prontamente elidida entre o termo etário da presunção da inocência e o parâmetro legal da capacidade do sujeito para ser agente de ato infracional.
Notas
[1] Confira-se, a contrario sensu: NUCCI. Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. Comentários à Lei n. 12.015 de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 34.
[2] Op. cit., p. 37.
[3] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio Garcia-Pablos; BIANCHINI, Alice. Direito Penal. Vol. I. Introdução e princípios fundamentais. São Paulo: RT, 2007, pp. 443 e 449.
[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte especial, artigos 155 a 249 do Código Penal. v. III. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, pp. 548-549.
[5] STJ, REsp 494.792/SP, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 02/02/2010, DJe 22/02/2010.
[6] STJ, REsp 430.615/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 27/10/2009, DJe 01/02/2010.
[7] Informação extraída de: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105175. Acesso em 02/04/2012.