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A pretensão cientificista do juspositivismo e seu afastamento do ideal de justiça

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O desvirtuamento da lei do sentimento de justiça prezado por determinada sociedade constitui-se em ofensa tão severa e profunda que abala os termos fundamentais em que se estrutura o pacto de convivência e cooperação existente entre os indivíduos.

Resumo:

Trata o presente artigo de uma breve análise sobre a dissociação entre Direito e justiça proposta pelo Positivismo Jurídico e sua inadequação para assegurar que a lei atinja suas finalidades essenciais, examinado a concepção avalorativa do juspostivismo e os riscos da dissociação entre lei e justiça proporcionar a edição de leis arbitrárias, voltadas ao atendimento de interesses políticos mesquinhos, viabilizando ao indivíduo até mesmo, com último meio de resistência, o recurso à desobediência civil.

PALAVRAS-CHAVES: Justiça. Lei. Ciência. Positivismo Jurídico. Desobediência.

SUMÁRIO: 01. Introdução. 02. A Lei. 03. O Positivismo Jurídico. 04. A ciência. 05. A neutralidade axiológica apregoada pelo juspositivismo. 06. Conclusão.


01 – INTRODUÇÃO.

No presente trabalho, nos propomos a examinar, de forma breve e crítica, a abordagem juspositivista, a qual preconiza a concepção do direito como um fato e não como um valor. De modo que a validade deste recaia sobre a sua estrutura formal, não guardando, portanto, relevância o aspecto substancial da norma posta.

O direito mantém correlação estreita e indissolúvel com os valores primados pelo corpo social. E, indubitavelmente, à justiça é reservada posição pinacular dentre tais valores.

Certamente uma das mais tortuosas questões que divide a sociedade é definir o que seja justiça.

Sobre a justiça há, sem dúvida, um consenso quanto à necessidade de sua existência e de sua posição preferencial enquanto reitora das relações travadas no seio social, porém grande é o dissenso sobre a sua aplicação prática, ou seja, sobre o modo de concretizá-la e, no mais das vezes, de como defini-la.

O debate sobre a justiça, nas sociedades ocidentais, remonta à Antiguidade Clássica.

Platão vê a justiça como a virtude suprema, sendo esta atingida por intermédio da harmonia e do equilíbrio entre a ação e a reação, entre pretensão e obrigação. Para Platão, nas palavras de Dimas Macedo (Macedo, 2003/90), a justiça “harmoniza todas as outras virtudes, sendo que a natureza da justiça seria descoberta pelo exame da harmonia do Estado, já que o Estado, para Platão, seria algo supremo”.

A visão de Platão sobre a organização política do Estado era aristocrática, contrária à democracia. Acreditava Platão que o Estado deveria buscar a realização do justo e do bom, valendo-se para tanto de um corpo de agentes especialmente preparados para governar, como esclarece Stephen Law (Law, 2009/247):

Seu modelo é um Estado em que o conflito interno foi abolido e cada cidadão cumpre o seu papel. Isso significa instituir um regime rigoroso de treinamento e seleção para produzir governantes sábios e incorruptíveis, Estes, os guardiões de seu Estado, merecerão o nome de “filósofos”, porque serão genuinamente amantes da sabedoria, E eles devem adquirir conhecimento do bem, para poder governar efetivamente em nome do bem do Estado como um todo.

Aristóteles, rejeitando a ideia de Estado defendida por Platão, concebia os seres humanos como estruturalmente sociais, cabendo ao Estado facilitar-lhes a realização do bem-estar, que seria obtido por um modo de viver virtuoso. Nesta ordem de ideias, concebe Aristóteles a justiça sob um duplo aspecto: virtude individual e critério de ordem coletiva.

Na concepção de Aristóteles, pode a justiça ser entendida sob dois enfoques. O primeiro, enquanto justiça geral, considerada como expressão da moralidade, devendo as condutas dos indivíduos pautarem-se por critérios éticos e morais, o que convergiria para o interesse coletivo, para o bem comum.

De outra banda, poderia se falar em uma justiça particular que, nas palavras de Dimas Macedo (Macedo, 2003/88) “tem um mérito mais abrangente, por sensível à motivação das necessidades particulares. Divide-se em comutativa e distributiva.”

A proporcionalidade e a igualdade são traços marcantes da justiça particular, podendo ser afirmado que, em sua modalidade distributiva, consistiria em promover a partilha dos bens e honras de acordo com os méritos e as necessidades de cada um. Essa modalidade de justiça seria tipicamente empreendida pelo Estado, sob o timbre da equidade. A justiça corretiva, sinalagmática ou comutativa referir-se-ia aos processos de troca envolvendo os agentes sociais, tendo por escopo de assegurar-lhes a equivalência entre ônus e bônus, permitindo a todos a proporcional retribuição por suas condutas.

Os Romanos preocuparam-se com a ciência do direito e buscaram nesta inserir elementos delineadores de sua concepção de justiça, como se extrai da lição de Paulo Dourado Gusmão (Gusmão, 1997/72):

É no Digesto que vamos encontrar a definição de romana de justiça: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuiqur tribuendi (justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu). “Dar a cada um o que é seu”, eis a regra fundamental da justiça dos romanos, completada com outra, alterum num laedere (não causar dano injusto a outrem ou “a ninguém ofender”). Eis os princípios do direito justo romano que serviram de fonte e de manancial inesgotável para as legislações da Civilização Européia.

No Medievo, São Tomaz de Aquino vai reafirmar a concepção de Justiça Aristotélica[1], compreendendo o direito como o objeto particular de uma virtude específica, a justiça. Uma virtude que não se resume ou se satisfaz com a consciência ou aceitação por parte do indivíduo quanto à retidão do seu agir, mas sim que assume natureza heterônoma, como se permite entrever da lição de Daniel Coelho de Souza (Macedo, 2003/91): “distingue (Tomaz de Aquino) a justiça de todas as demais virtudes porque, enquanto estas voltam-se diretamente para o agente do ato, exigindo a pureza das intenções, aquela reside na adequação do ato praticado com um modelo extrinsecamente dado de antemão”.

Outras contribuições para a árdua tarefa de firmar um conceito de justiça podem ser citadas, como, por exemplo, a Teoria da Justiça de Rawls[2]. Em sua teoria, Rawls parece se afastar da orientação de que a justiça consistiria em distribuir os bens da vida conforme os méritos de cada um (justiça distributiva), eis que propõe que os dotados de melhores condições, seja por nascimento, herança ou dom, aceitem, voluntariamente, ver reduzida a sua participação no patrimônio social (bens, remuneração, posição social, lucratividade etc.) em benéfico dos menos afortunados. Contudo, não se pode deixar de vislumbrar a reafirmação da equidade e da proporcionalidade, elementos indissociáveis do ideal de justiça.

Cremos que, a partir do ensinamento da filosofia clássica, a proporcionalidade, a igualdade e a equidade são os motes que irão influenciar a concepção do direito ocidental, cabendo ressaltar a irretocável observação de Paulo Dourado Gusmão (Gusmão, 1997/72) no sentido de que “apesar de não se confundir como direito, a justiça desempenha tríplice papel em relação ao jus: 1º, meta do direito; 2º, critério capaz de julgá-lo e de aperfeiçoá-lo; 3º, fundamento histórico”.

Pensar o direito sem sua necessária imbricação com a justiça seria o mesmo que estabelecer um padrão de conduta sem qualquer correlação necessária com a realização do bem comum e as aspirações sociais que o direito visa concretizar.


02 – A LEI.

Desde os primórdios, a lei, enquanto instrumento de intervenção social, limitadora da liberdade e disciplinadora de comportamentos, esteve associada ao bom, ao correto e ao justo. Fustel de Coulanges atribui à lei origem religiosa, posto que, nas organizações sociais mais antigas, ao lado de disposições sobre liturgia, orações também eram encontradas outras, sobre propriedade e sucessão. Informa o autor que (Coulanges, 2002/208):

Os antigos afirmavam que suas leis tinham-lhes vindo dos deuses. Os cretenses atribuíam as suas, não a Minos, mas a Júpiter; os lacedemônios acreditavam que seu legislador não fosse Licurgo, mas Apolo. Os romanos afirmavam ter Numa escrito a lei que uma das divindades mais poderosas da Itália antiga, a deusa Egéria, lhe ditara. Os etruscos receberam as suas leis do deus Tages. Em todas as tradições existe algo de verdadeiro. O autêntico legislador, entre os antigos não fora o homem; mas a crença religiosa que este trazia em si.

As leis, durante muito tempo, foram consideradas coisa sagrada[3].

Em sendo a lei objeto da emanação da autoridade divina[4], ainda que os entes místicos, por vezes, padecessem de alguns dos vícios e fraquezas humanas, certamente a sua vontade manifesta estava vocacionada a garantir a devoção por parte dos fiéis e a proteção aos submissos.

Até mesmo quando a lei se desgarra de sua primitiva sacralidade e, portanto, imutabilidade, podemos perceber que isto se dá como forma de permitir a reaproximação da norma de conduta às aspirações de justiça partilhadas pela maioria dos indivíduos integrantes de uma sociedade. Assim é que Raquel Souza (Wolkmer, 2001/70) nos informa que:

O que levou os gregos a utilizarem a nova tecnologia para escrever e publicar leis na forma de inscrições públicas tem sido motivo de controvérsias. A explicação até agora mais predominante tem sido a de que o povo grego, em determinado ponto da história (por volta do século VII a.C.), começou a exigir leis escritas para assegurar melhor justiça por parte dos juízes. Cristopher Carey, em seu livro Trail from classical Athens (julgamentos da Atenas clássica), defende essa posição, provavelmente a mais antiga, de que “foi um desejo de colocar limites ao exercício do poder por aqueles que detinham a autoridade”. O propósito seria o de remover o conteúdo da lei do controle de um grupo restrito de pessoas e colocá-lo em lugar aberto, acessível a todos. As palavras de Teseu nas Suplicantes de Eurípedes (produzida por volta de 420 a. C.) têm sido utilizadas como apoio a essa posição: “Quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça igual.”.

Não se demonstra absurdo, então, concluir que, entre os antigos, a lei somente atendia à sua finalidade instrumental e pragmática quando voltada à realização da justiça.

Na idade moderna, a concepção da lei como um instrumento de afirmação do direito natural ganhou projeção. Do mesmo modo que Hobbes[5], Locke[6] elege uma lei da natureza (direito natural), fundada na racionalidade, como vetor da atuação do Legislador (Locke, 2002/98) “a primeira lei natural que deve nortear até o próprio poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até onde seja compatível com o bem público, de todos seus membros”.

Daí segue-se que o exercício do poder legiferante não poderia se dar de forma arbitrária, encontrando limites, inclusive, na amplitude da delegação conferida pelos indivíduos ao ente estatal ao pactuarem a instituição deste último. Neste aspecto, tal como Hobbes, Locke reconhece a impossibilidade de transferência ao Estado de poderes de que o próprio indivíduo não dispunha, como, por exemplo, o poder para destruir a própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem.

Permite-se, então, inferir que o exercício das atividades legiferantes, o qual delineia o âmbito de liberdade individual, se dá de forma finalística, isto é, “O poder do legislativo tem seus limites restritos ao bem geral da sociedade” (Locke, 2002/99).

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A toda evidência, o pensamento de John Locke influenciou os elaboradores da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, na qual se lê que as distinções sociais baseiam-se unicamente no bem comum (art. 1º), que a não é permitido à lei defender ações nocivas à sociedade (art. 5º) e que a lei deve ser a mesma para todos, não importando a quem proteja ou puna (art. 6º).

Tem-se assim a noção de que a lei guarda viés estreito com a efetivação de valores sociais, bem como mantém vínculo indissociável com a realização da justiça, descabendo cindir o liame entre estas de modo a que não se conceberia a possibilidade de produção legislativa sem que o vetor informativo do Legislador não fosse a concretização material da justiça. A admissão da existência e validade de uma norma legal que se demonstra-se axiologicamente neutra seria impensável.

Porém, o pensamento jurídico não seguiu a mencionada orientação.


03 – O POSITIVISMO JURÍDICO

No século XIX, uma postura filosófica, que ganhou grande projeção, buscou assentar que o conhecimento genuíno somente poderia ser obtido pelos métodos científicos. Essa doutrina foi denominada de positivismo.

 No caso do positivismo jurídico, buscou-se estabelecer princípios do direito independentemente de juízos de valor. A validade destes princípios proviria de um critério objetivo, ainda que arbitrário, e não de sua imbricação para com padrões morais consagrados pela coletividade.

Para a teoria positivista[7], a exemplo de Bobbio, o qual colhe fundamento em Kelsen[8], tem-se que o ordenamento jurídico é um conjunto de normas, que integram um sistema dinâmico[9] dotado de coerência[10] e completude[11].

Para o positivismo jurídico, inicialmente, o ordenamento jurídico é concebido, segundo suas fontes[12], como de sendo complexo – eis que dotado de várias fontes – e hierarquizado - não-paritário, de modo que suas fontes ocupam planos diversos.

Para esta corrente de pensamento, a lei é a fonte que detém prevalência sobre todas as demais, as quais, enquanto fontes, o serão sempre de natureza subordinada. Esta subordinação se dará pelo reconhecimento – o Estado recepciona tais fontes sem que tenha contribuído para formação das mesmas, é o caso do costume – ou pela delegação – hipótese na qual o Estado confere a órgão diverso do legiferante o poder normativo específico e limitado, tal como ocorre com os regulamentos administrativos.

Neste passo, para o juspositivismo apenas a lei detém o monopólio da qualificação jurídica, isto é, de fixar quais regras serão dotadas de impositividade, assegurada pela coercibilidade estatal.

Como se percebe, para tal doutrina, tudo o mais seria, ou não, fonte do direito na medida em que a lei assim permitisse. Portanto, tomando como referencial a compreensão de fonte do direito, como fonte de qualificação, o ordenamento jurídico deixaria de ser concebido como complexo e passaria a caracterizar-se como simples, posto que apenas uma fonte existiria, a lei.

Como bem apontado por Simone Fabre (Goyard-Fabre, 2007/75): “A conseqüência lógica desse legalismo que reduz o direito à lei é que esta passa a ser considerada em seu componente formal e não em seu componente material”.


04 – A CIÊNCIA.

Assentar o Direito enquanto ciência, sem dúvida, foi um mérito do positivismo jurídico. Mas o que pode ser entendido como ciência? Para responder a pergunta, recorremos aos suplementos de Eva Lakatos (Lakatos, 1991/80), a qual, citando Trujillo Ferrari, afirma que:

Entendemos por ciência uma sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar: “A ciência é todo conjunto de atitudes e atividades racionais, dirigidas ao sistemático conhecimento com objeto limitado, capaz de ser submetido à verificação.”.

A ciência busca o conhecimento pelas causas, tendo por escopo ampliar os espaços da verdade, valendo-se da certeza como instrumento de legitimação do conhecimento obtido, sendo a certeza advinda da reflexão aprofundada, da experimentação e da verificação, ou seja, de metodologia fundada na racionalidade.

Indubitavelmente, o direito reclama, para sua adequada efetivação e cumprimento de finalidade pragmática, análise e metodologia apropriadas para sua interpretação e aplicação, metodologia esta que deve ser passível de aferição quanto aos resultados. A ciência do Direito, nas palavras de Paulo Gusmão (Gusmão, 1997/3):

“Não usa o método das ciências e dos fenômenos naturais, pois, sendo conhecimento de normas, procede por interpretação, e não por descrição, salvo quando versar sobre o direito como fenômeno social ou fato histórico-social. Serve-se de vários métodos, inclusive a intuição.”

Então, não se pode negar que o direito reclama abordagem e método próprios. É sobre estes aspectos que o positivismo jurídico vai formar uma teoria avalorativa.

Sobre a abordagem positivista, Norberto Bobbio (Bobbio, 1995/131) esclarece que:

O direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural; o jurista, portanto, deve estudar o direito do mesmo modo que o cientista estuda a realidade natural, isto é, abstendo-se absolutamente de formular juízos de valor. Na linguagem juspositivista o termo “direito” é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de ser bom ou mau, de ser um valor ou desvalor.


05 – A NEUTRALIDADE AXIOLÓGICA APREGOADA PELO JUSPOSITIVISMO.

Kelsen justifica a desnecessidade de confluência entre norma e valores nos seguintes termos (Kelsen, 72-73):

“se se concede que em diversas épocas, nos diferentes povos e até no mesmo povo dentro das diferentes categorias, classes e profissões valem sistemas morais muito diferentes e contraditórios entre si, que em diferentes circunstâncias pode ser diferente o que se toma como bom ou mau, justo e injusto e nada há que tenha de ser havido por necessariamente bom ou mau, justo ou injusto em todas as possíveis circunstâncias, que apenas há valores morais relativos – então a afirmação de que as normas sociais devem ter um conteúdo moral, devem ser justas, para poderem ser consideradas como Direito, apenas pode significar que estas normas devem conter algo que seja comum a todos os sistemas de Moral enquanto sistemas de Justiça. Em vista, porém, da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom ou mau, justo ou injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos diferentes ordens morais.”

Como se observa, com o escopo de assentar o caráter científico, o positivismo jurídico trilhou a senda de uma neutralidade axiológica por demais reducionista de um ideal de Direito. Para o positivismo, a noção de justiça decorre da regulação. Ou seja, justo é o que se encontra na lei. Nesta senda, como afirma Margarida Camargo (Camargo, 2001/91):

“A valorização do direito corresponderá também a critérios objetivos. Bom é aquilo que o Estado quer e prescreve como conduta obrigatória, e mau aquilo que não valorizou a ponto de incorporar à ordem jurídica. Assim, justa é a lei, historicamente relativizada, enquanto o direito natural é bom ou mau em si mesmo, independentemente da vontade do legislador.

Mais uma vez, o referido aspecto pode ser percebido, claramente, do quinto critério de distinção entre direito natural e direito positivo traçado por Norberto Bobbio (Bobbio, 1997/23):

...os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) oram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado) (Aristóteles, Grócio).

Embora o conceito de justiça não ressoe uniforme em todos os momentos e territórios, o ideal de justiça é a força motriz que confere legitimidade ao exercício do atuar legiferante, a indicar que sua presença se faz permanentemente necessária no processo de elaboração de normas que, efetivamente, estejam voltadas a atender os seus fins de manutenção da paz social. Portanto, o sentimento de justiça é inafastável tanto do aspecto formal, como do aspecto substancial da norma legislada.

Crítica veemente ao alegado cientificismo enclausurador do direito a um produto legislativo desprovido de fundamento axiológico, pode ser encontrada nas palavras de Simone Farbe (Goyard-Fabre, 2007/101), para quem:

Mencionaremos aqui três das incertezas que minam a doutrina. Por um lado, o positivismo se pretende a-fiosófico; mas é impossível ganhar essa aposta, pois a auto-suficiência de uma teoria que, em sua pretensa “neutralidade axiológica”, se limitasse apenas à fenomenalidade do direito é uma ilusão, Por outro lado, afastando do campo jurídico toda normatividade transcendente, essa teoria jurídica – que tem forte propensão a rebaixar o direito, aquém de suas próprias prescrições, ao plano das condições empíricas, sociais ou históricas que as motivaram – redunda contraditoriamente afirmando a autonomia do direito na negação do caráter especificamente jurídico do direito. Por fim, a construção de um direito que, invocando critérios de racionalização científica, se fechasse dentro das grades de uma legislação abstrata de alcance mais ou menos geral, teria fortes chances de gerar uma sistematização de direito rígida e sem vida. Quando a teoria da formação gradual do direito (Stufenbau-theorie) expõe que, no interior de uma ordem jurídica, apenas o direito cria direito, é grande o risco de fazer o processo e a forma do direito prevalecer sobre o seu conteúdo substancial.

Ainda que o positivismo, em sua pretensão cientificista, quisesse buscar uma teoria tão transparente e neutra, não se pode olvidar que, nos países democráticos em que predomina o sistema da civil law, será no momento da produção normativa que se travarão os mais relevantes embates de substrato social, político e ideológico. E é nesse momento que o atuar estatal deve estar, efetivamente, influenciado pelos valores predominantes no corpo social, dentre eles a justiça. Do contrário, haverá um arremedo de legislação, voltada a atender interesses outros que não os primados pela coletividade, ou seja, não voltados à efetiva realização do bem comum.

É de se ressaltar que a orientação positivista, voltada a adstringir o direito a uma norma privada de conteúdo axiológico, fomenta, inclusive, a facilitação da edição do que veio a denominar como legislação simbólica, cuja definição nos traz Marcelo Neves (Neves, 2007/30):

Considerando-se que a atividade legiferante constitui um momento de confluência concentrada entre sistemas político e jurídico, pode se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico.

Não se pode deslembrar que o método jurídico, como qualquer outro, somente se demonstra dotado de sentido quando se reporta aos fins que presidiram à sua concepção – a busca de conhecimento válido e verdadeiro -, pelo que não deve se desgarrar da ideia matriz em que se assentam as organizações sociais, qual seja, as sociedades são organizadas a partir dos indivíduos, os quais são os sujeitos e não, meros objetos de que aquela poderá, ao seu talante, dispor.

A impossibilidade de conceber a lei como meio de realização de outro fim que não seja a realização dos superiores interesses da coletividade, tornando-se mesquinho instrumento de opressão, quando deveria assegurar a liberdade e o bem comum, é que justifica, até mesmo, a desobediência civil[13]. O sentimento de justiça é, portanto, indissociável da conformação das sociedades democráticas e não pode ser menosprezado, sob pena de justificar legítima reação, como afirma Rudolf Von Ihering (Ihering, 2001/70):

Se invoquei essa imagem, eu fiz para demonstrar com um exemplo marcante a que desvios está sujeito o sentimento de justiça, especialmente o que se revela mais vigoroso e idealista, quando em virtude da imperfeição das instituições jurídicas lhe é negada a devida satisfação. Sempre que isso acontece, a luta pelo direito transforma-se numa luta contra a lei. O sentimento de justiça, abandonado pela força que devia protegê-lo, desanda do campo do direito e procura atingir por seus próprios meios aquilo que lhe foi negado pela ignorância, má-fé, pela impotência.

Com efeito, a razão está com Hart (LAMAS, 2011/03) quando afirma que “deve haver um mínimo de justiça sempre que o comportamento humano é controlado por regras gerais enunciadas publicamente e aplicadas por via judicial.”

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Sobre o autor
Silvio Wanderley do Nascimento Lima

Mestre em Direito. Juiz Federal. Professor universitário no Rio de Janeiro (RJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Silvio Wanderley Nascimento. A pretensão cientificista do juspositivismo e seu afastamento do ideal de justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3225, 30 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21636. Acesso em: 22 nov. 2024.

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