1
. IntroduçãoComo sabido, o Decreto n.º 1.070/94, regulamentando a Lei n.º 8.248/91, prescreve a forma de aferição e de julgamento das propostas para contratação, pela Administração Federal, de bens e serviços de informática e automação.
Ocorre que a aplicação "pura e simples" dos critérios de cálculo definidos no decreto pode dar ensejo a aquisições não razoáveis, devido a uma distorção matemática presente em suas fórmulas.
Assim, pode-se ser levado à adjudicação de um licitante que ofereça um produto pouco melhor tecnicamente que o de outro licitante, pelo dobro do preço. Esta conclusão parece fantasiosa, mas o objetivo deste texto é a sua demonstração.
Infelizmente – para o jurista – a análise aqui desdobrada firma-se sobre os cálculos matemáticos insertos na ponderação técnica e preço definida no diploma. Razão pela qual, sua leitura será menos árdua àqueles que lidam, diariamente, com o tema.
2. Explicando melhor
O artigo 3º do diploma em questão, definidor da intrincada ponderação técnica e preço, prescreve:
"Art. 3° No julgamento das propostas desses bens e serviços deverão ser adotados os seguintes procedimentos:
I - determinação da pontuação técnica de cada proposta, em conformidade com critérios e parâmetros previamente estabelecidos, no ato convocatório da licitação, através do somatório das multiplicações das notas dadas aos fatores prazo de entrega, suporte de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e desempenho, em consonância com seus atributos técnicos, pelos pesos atribuídos a cada um deles, de acordo com a importância relativa desses fatores às finalidades do objeto da licitação;
II - determinação do índice técnico, mediante a divisão da pontuação técnica da proposta em exame pela de maior pontuação técnica;
III - determinação do índice de preço, mediante a divisão do menor preço proposto pelo preço da proposta em exame;
IV - multiplicação do índice técnico de cada proposta pelo fator de ponderação, que terá valor de cinco a sete, fixado previamente no edital da licitação;
V - multiplicação do índice de preço de cada proposta pelo complemento em relação a dez do valor do fator de ponderação adotado;
VI - O obtenção do valor da avaliação (A) de cada proposta, pelo somatório dos valores obtidos nos incisos IV e V;
VII - pré-qualificação das propostas, cujas avaliações (A) não se diferenciem em mais de seis por cento da maior delas.
§ 1° Quando justificável, em razão da natureza do objeto licitado, o licitador poderá excluir do julgamento técnico até dois dos fatores relacionados no inciso I.
§ 2° Os fatores estabelecidos no inciso I para atribuição de notas poderão ser subdivididos em subfatores com valoração diversa, de acordo com suas importâncias relativas dentro de cada fator, devendo o licitador, neste caso, especificar no ato convocatório da licitação essas subdivisões e respectivos valores.
(...)
§ 4° Os valores numéricos referidos neste artigo deverão ser calculados com duas casas decimais, desprezando-se a fração remanescente."
Portanto, o valor de avaliação (inciso VI) consiste na ponderação do índice técnico (inciso II) e do índice de preço (inciso III), obtida através de um fator de ponderação com peso de 5 a 7 para a técnica (inciso IV) e seu complemento em relação a 10 (ou seja, de 5 a 3) para o preço (inciso V), o que equivale dizer que a técnica pesará de 50 a 70% e o preço de 50 a 30% na avaliação final.
E ainda, conforme o inciso II, o índice técnico será 1,00 (máximo) para a empresa que apresentar a melhor pontuação técnica (inciso I), e algo entre 0 (zero) e 1,00 para as demais. Analogamente, o índice de preço será 1,00 (máximo) para a empresa que apresentar o menor preço, e algo entre 0 (zero) e 1,00 para as demais (inciso III).
A distorção se dá porque a fórmula presente no inciso II prejudica demasiadamente as propostas técnicas que não atendam a requisitos opcionais, e atribui nota técnica 1,00 à melhor proposta dentre as apresentadas, independentemente de quão melhor seja esta proposta.
Com efeito, se uma licitante atende a (somente) um requisito opcional e se todas as demais não atendem a nenhum requisito opcional, a primeira proposta recebe pontuação técnica máxima (1,00) e as outras 0 (zero). Parece correto, porém tal procedimento esconde uma grande injustiça. Com efeito, no exemplo dado, a primeira licitante poderia apresentar um preço cem vezes maior que o preço das outras que, mesmo assim, obteria o maior valor de avaliação. E para esta conclusão, nem sequer cogitou-se da eventual superfluidade do requisito opcional solicitado e ofertado, de seu custo, e da ponderação técnica e preço (fator de ponderação) escolhida.
Nova perplexidade surgiria caso nenhuma licitante ofertasse produto que atendesse a requisitos opcionais, pois não seria possível proceder aos cálculos dos índices técnicos e, em conseqüência, dos valores de avaliação, pois chegar-se-ia a uma razão matemática impossível – 0/0 (zero dividido por zero) – a partir do comando do inciso II supra mencionado.
Neste caso, visando à solução do impasse e amparando-se na razoabilidade, afastar-se-ia a aplicação do Decreto n.º 1.070/94, concluindo-se pela adjudicação à empresa com a proposta de menor preço, já que as propostas apresentadas seriam, quanto à técnica, equivalentes.
3
. Demonstrações a partir de uma especificação técnica típica(Observação: a demonstração efetuada neste item tem por base a especificação técnica simplificada constante do Anexo deste documento. Note-se que a especificação objetiva, tão-somente, subsidiar o texto, não havendo nenhum compromisso quanto à sua adequação técnica e, até mesmo, porque não atende ao preceituado no parágrafo 1º do artigo 3º do Decreto n.º 1.070/94)
3.1. Distorção do valor de avaliação
1º exemplo) suponha-se:
- que a Empresa A ofereça o equipamento Micro A a um custo de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), que atende a todos os requisitos mínimos e ao requisito opcional de qualidade C.4 (gabinete com botão de "reset"), fazendo jus, portanto, a 1 (um) ponto;
- que a Empresa B ofereça o equipamento Micro B a um custo de R$ 2.000,00 (dois mil reais), que atende a todos os requisitos mínimos, não estando presentes, entretanto, quaisquer requisitos opcionais e, assim, não sendo pontuada; e
- que o fator de ponderação escolhido pelo licitador seja 5, ou seja, a técnica tem o mesmo peso que o preço.
Seguindo os passos previstos no artigo 3º do Decreto, tem-se:
Comando |
Empresa A |
Empresa B |
inc. I: pontuação técnica |
1 |
0 |
inc. II: índice técnico |
1,00 |
0 |
Preço |
R$ 4.000,00 |
R$ 2.000,00 |
inc. III: índice de preço |
0,50 |
1,00 |
inc. IV: ponderação técnica |
5,00 |
0,00 |
inc. V: ponderação de preço |
2,50 |
5,00 |
inc. VI: valor de avaliação |
7,50 |
5,00 |
inc. VII: pré-qualificação |
7,50 |
(eliminada) |
Assim, faz-se necessário adjudicar o objeto da licitação à Empresa A, dentro da estrita legalidade, ainda que seu preço seja o dobro do preço oferecido pela Empresa B. Ou seja, o Decreto n.º 1.070/94 permite, a priori, que um botão "reset" no gabinete do equipamento custe R$ 2.000,00 (valor correspondente à diferença entre as propostas das licitantes).
2º exemplo) agora, suponha-se:
- que a Empresa A ofereça o equipamento Micro A a um custo de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), que atende a todos os requisitos mínimos e ao requisito opcional de qualidade C.4 (gabinete com botão de "reset"), fazendo jus, portanto, a 1 (um) ponto;
- que a Empresa B ofereça o equipamento Micro B a um custo de R$ 2.000,00 (dois mil reais), que atende a todos os requisitos mínimos, não estando presentes, entretanto, quaisquer requisitos opcionais e, então, não sendo pontuada; e
- que o fator de ponderação escolhido pelo licitador seja 6, ou seja a técnica contribuirá com 60% e o preço com 40% no valor da avaliação final.
Novamente, seguindo o Decreto, tem-se:
Comando |
Empresa A |
Empresa B |
inc. I: pontuação técnica |
1 |
0 |
inc. II: índice técnico |
1,00 |
0 |
Preço |
R$ 200.000,00 |
R$ 2.000,00 |
inc. III: índice de preço |
0,01 |
1,00 |
inc. IV: ponderação técnica |
6,00 |
0,00 |
inc. V: ponderação de preço |
0,04 |
4,00 |
inc. VI: valor de avaliação |
6,04 |
4,00 |
inc. VII: pré-qualificação |
6,04 |
(eliminada) |
Neste caso, o custo do questionado botão "reset" alcançaria R$ 198.000,00 (cento e noventa e oito mil reais).
Obviamente, tal ocorrência não se dará na prática, mas o que se quer mostrar é que não existe relação entre a pontuação técnica e o progressivo custo da proposta; o Decreto n.º 1.070/94 não implementa a análise de custos e, via passagens matemáticas, acaba por frustrar o interesse da Administração.
3.2. Inaplicabilidade do Decreto n.º 1.070/94
Voltemos ao 1º exemplo, acima, supondo que a Empresa A não ofereça nenhum requisito opcional, da mesma forma que a Empresa B.
Assim:
Comando |
Empresa A |
Empresa B |
inc. I: pontuação técnica |
0 |
0 |
inc. II: índice técnico |
0 |
0 |
Preço |
R$ 4.000,00 |
R$ 2.000,00 |
inc. III: índice de preço |
0,50 |
1,00 |
inc. IV: ponderação técnica |
??? |
??? |
inc. V: ponderação de preço |
2,50 |
5,00 |
inc. VI: valor de avaliação |
??? |
??? |
inc. VII: pré-qualificação |
??? |
??? |
Como já dito, na hipótese de nenhuma licitante apresentar requisitos opcionais, o Decreto, per si, torna-se inaplicável.
4
. 1ª solução propostaNa mesma linha que norteia o Decreto, o mais conveniente seria podermos "interpretar" o inciso II do artigo 3º da seguinte forma:
"II - determinação do índice técnico, mediante a divisão da pontuação técnica da proposta em exame pela de maior pontuação técnica possível;"
Note-se que a "maior pontuação técnica possível" é aquela correspondente à soma de todos os requisitos opcionais. Assim, só receberia índice técnico 1,00 o produto que contivesse todos os requisitos opcionais.
Nos exemplos dados, como a "maior pontuação técnica possível" é 45 – soma de todas as pontuações parciais dos subitens do item C da especificação –, a proposta da Empresa A – ofertando o Micro A, que de todos os opcionais possíveis somente possui o botão "reset" –, receberia índice técnico 0,02 e a Empresa B permaneceria com 0 (zero). Esta forma de cálculo encontra-se mais próxima da realidade, já que indica que o Micro B equivale ao mínimo esperado e que o Micro A é 2% melhor que este mínimo.
Entretanto, tal solução, s.m.j., extrapola a letra do comando legal.
5
. 2ª solução propostaOutra forma de amenizar as distorções impostas pelo Decreto, consiste em atribuir pontuações a todos os requisitos mínimos, de tal sorte que todas as propostas sejam comparadas a partir de um piso.
Voltando aos exemplos, caso os subitens dos itens A, B e D fossem pontuados perfazendo um total, por exemplo, de 155 (cento e cinqüenta e cinco pontos), a pontuação técnica de cada proposta estaria necessariamente entre os valores 155 e 200 (requisitos mínimos somados a todos os opcionais) e, conseqüentemente, o índice técnico (do combatido inciso II) entre 0,77 e 1,00, diminuindo sensivelmente os problemas apontados.
Trata-se de uma forma de atribuição de pontos que não fere qualquer dispositivo do Decreto 1.070/94 e, portanto, de fácil implantação. Numa primeira análise, aconselha-se que os requisitos mínimos perfaçam, aproximadamente, 80% dos pontos e os opcionais, os outros 20%.
6
. ConclusãoAs duas "soluções" aventadas minimizam as conseqüências absurdas que podem, em algumas hipóteses como as aqui colocadas, ocorrer em um certame licitatório apoiado desapercebidamente no Decreto n.º 1.070/94.
Mas o problema persiste: não há, no Decreto, relacionamento entre os pontos aferidos nos requisitos opcionais e a contribuição do custo destes itens no valor global da proposta. As suas fórmulas matemáticas – que, a priori, são lógicas –, encobrem um desajuste que permanecerá existindo sempre, em maior ou menor grau, tornado-se visível a "olho nu" naquelas licitações onde estejam presentes ou ofertados poucos requisitos opcionais.
A 1ª primeira solução aqui esboçada apresenta-se mais justa, embora dependente de (pequena) alteração legislativa. Em qualquer caso, entretanto, cabe ao Administrador proceder com critério na definição das pontuações, de forma a manter uma pertinência lógica entre os requisitos pontuados e seu custo.
Em conclusão, para casos específicos o Decreto vem de encontro com os objetivos do processo licitatório, destoando claramente dos ditames constitucionais (CF/88, art. 37, XXII) e legais (artigo 3º da Lei 8.666/93, em especial) e, mais praticamente, induzindo a contratações, no mínimo, discutíveis.
ANEXO
(uma especificação técnica típica)
ESPECIFICAÇÃO TÉCNICA: MICROCOMPUTADORES PENTIUM III, SUPERIOR OU FUNCIONALMENTE EQUIVALENTE, COM CLOCK MÍNIMO DE 600MHz, MEMÓRIA RAM DE 128MB, MONITOR POLICROMÁTICO DE 15"
A - Requisitos Mínimos:
A.1 – Qualidade do Equipamento:
B – Requisitos mínimos de compatibilidade
B.1 – Requisitos mínimos de compatibilidade:
B.1.1. – Todos os equipamentos ofertados deverão funcionar perfeitamente com acesso à rede Novell 4.1X e 5.X e emulação para equipamento IBM RS/6000 (sob sistema operacional AIX).
C – Requisitos opcionais de qualidade
C.9.1 – AGP em padrão acima de 2X com Pipe/Sideband: 5 pontos
C.9.2 – AGP 2X com Pipe/Sideband: 4 pontos