3. PARTICULARIZANDO MAIS AINDA: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
3.1. Intróito
A tsunami chamada “constitucionalização do Direito” também tem alcançado as praias da responsabilidade civil, a ponto de proporcionar profundas e irreversíveis reformulações em sua paisagem. Deveras, já de início podemos mencionar que se a responsabilidade civil tradicional estava basicamente centrada na tutela do direito de propriedade, agora a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a justiça distributiva modificaram decisivamente a sistemática do dever de ressarcir[74]. Isso se dá mormente em razão da necessidade de harmonização do instituto da responsabilidade civil com os ventos atuais, compatibilizando-o com a complexidade/dinamicidade inerentes à sociedade contemporânea[75].
3.2 Contemporaneidade e Responsabilidade Civil: Fatores de Influência
Podemos apontar pelo menos quatro fatores que têm influenciado diretamente os rumos da responsabilidade civil da atualidade.
Cumpre acentuar, primeiramente, um importante fator econômico. De fato, a substituição de uma economia fundada na agricultura por outra baseada na indústria suscitou a produção e distribuição, em grande escala, de produtos de consumo padronizados, potencializando sobremaneira o risco, sobretudo o chamado risco serial. Deflui daí, desse âmago da Revolução Industrial, pois, o fenômeno da massificação das relações, donde se percebe o envolvimento cada vez maior de grandes grupos em torno de um único fato. Com isso, ocorre o declínio dos liames jurídicos essencialmente individualizados, que cedem espaço às lides tipicamente de massa[76]. Por outro lado, a complexidade estrutural dos grandes conglomerados econômicos serviram para dificultar ainda mais a já árdua tarefa de identificação precisa do verdadeiro autor da lesão[77].
Segue-se, ainda, ligado intimamente a esse fator econômico, o já reconhecido fator tecnológico. À guisa de exemplo, destaque-se o desenvolvimento dos transportes, em especial ferroviários, aéreos e rodoviários, que, de sua parte, elevaram vertiginosamente o nível de risco que naturalmente gravita sobre seus usuários[78]. De fato, muitas das máquinas utilizadas nas indústrias eram ligadas não apenas para gerar lucro, mas também para mutilar corpos e ceifar vidas[79]. Nessa linha, o contundente desabafo de RIPERT, verbis:
“As estatísticas mostram quantos acidentes custa um quilômetro de exploração de vias férreas, um ano de circulação de automóvel, a extração de tantas toneladas de carvão. A ciência que, frustrando a doença, consegue prolongar a vida humana, é impotente para prevenir todos os acidentes, e mesmo sabendo curar as feridas, faz aleijados. É justo que as vítimas sejam designadas à fatalidade? (...) os que possuem bens materiais criam, pela exploração respectiva, novos riscos; os que estão privados de riqueza sofrem as consequências desta exploração intensiva. Há uma classe social de autores dos prejuízos e uma outra das vítimas. Ora, a parte mais pobre da população é precisamente a mais exposta: são os operários da indústria que estão em contacto permanente com as coisas perigosas; os que circulam a pé pelas estradas que são apanhados pelos automóveis. (...) A morte dum rico proprietário enriquece os parentes; a morte dum operário priva uma família do seu amparo”[80].
É por força dessa problemática que mencionamos ainda um fator moral. A respeito, destaca ALVINO LIMA, in verbis:
“Ao lado destes fatores de ordem material e social, fatores morais vieram influenciar no surto do movimento inovador. O crescente número de vítimas sofrendo as consequências das atividades do homem, dia a dia mais intensas, no afã de conquistar proventos; o desequilíbrio flagrante entre os ‘criadores de risco’ poderosos e as suas vítimas; os princípios de equidade que se revoltavam contra esta fatalidade jurídica de se impor à vítima inocente, não criadora do fato, o peso excessivo do dano muitas vezes decorrente da atividade exclusiva do agente, vieram-se unir aos demais fatores, fazendo explodir intenso, demolidor, o movimento das novas ideias, que fundamenta a responsabilidade extracontratual tão-somente na relação de causalidade entre o dano e o fato gerador”[81].
Gize-se, também, a reboque, algo acerca de um fator ideológico –intimamente ligado àquele fator moral –, aqui representado pela intensa defesa dos direitos do homem, notadamente no que concerne à necessária blindagem da dignidade humana. Destarte, logo em seguida às guerras mundiais adveio uma radical transformação na conformação constitucional dos ordenamentos jurídicos ocidentais, firmando-se uma clara tomada de posição em prol da defesa da dignidade do homem[82].
Esse fator, espraiado com destaque em meio a diversas cartas constitucionais do mundo, aninhou-se, sem fazer cerimônia, no texto de nossa Constituição Federal, que firmou intransigente compromisso com os valores existenciais que permeiam cada ser humano, tão-só por ser tal[83]. Sem pestanejar, podemos afirmar que, no campo da responsabilidade civil, um dos magníficos reflexos desse modo de pensar é a crescente – e crucial – ênfase na pessoa da vítima, e sua justa reparação, em detrimento da clássica ênfase na pessoa do ofensor, e sua reprovável conduta[84].
Essa valorização da pessoa humana, marcada pela ampla proteção de sua dignidade, deteve o elevado condão de gerar uma profunda reestruturação dos próprios alicerces da responsabilidade civil, de modo a fazer com que seu epicentro de preocupação passasse a açambarcar não apenas a recomposição do patrimônio da vítima, tout court, mas também a própria preservação da pessoa, a defesa de sua existência digna, sendo um exemplo disso a já consagrada solidificação da indenização por abalo moral no direito brasileiro[85].
Percebe-se, nisso tudo, uma certa (r)evolução de ideias, humanizando-se a forma de raciocínio da reparação civil, tomada não mais apenas enquanto mero fator técnico ressarcitório/reparatório – o que é campo totalmente subserviente a uma estreita visão patrimonial –, mas, acima de tudo, assume, agora, uma forte conotação ética de valorização de uma concepção preventiva da dignidade humana – o que por certo se ajusta a um foco ligado a preciosos valores existenciais –[86].
Certamente que essa preocupação angariou maior simpatia social quando se viu que os acidentes que marcavam os novos tempos na grande maioria das vezes afetavam singelos trabalhadores, cuja coarctação da força de trabalho, de regra a única fonte de renda, significava quase sempre lançar uma família inteira ao campo da miséria[87].
Dessarte, tais fatores, conjugados, serviram como um denso pano de fundo que cuidou de forçar reformulações drásticas na teoria da responsabilidade civil, a ponto de lhe conferir um diferente perfil, apto a dar resposta adequada à contundente ambiência que lhe é circundante[88]. Mas, que reformulações seriam essas? Que nova formatação é essa que tem marcado a novel responsabilidade civil? Vejamos.
3.3 Contemporaneidade e Responsabilidade Civil: Tendências
A responsabilidade civil é matéria sempre viva e dinâmica[89], a todo tempo no encalço das transformações da realidade[90]. Desse modo, passemos a abordar, à luz das assertivas acima delineadas, algumas das mais destacadas tendências da responsabilidade civil contemporânea.
3.3.1 O Ocaso Científico da Culpa
É cediço que a ideologia liberal foi erigida em torno da ideia de liberdade. Como corolário, no afã de garantir um amplo espaço de atuação aos particulares, a teoria da responsabilidade civil foi construída tendo como elemento fundante da reparação o mau uso dessa valiosa liberdade individual[91]. A culpa, nessa ocasião, é o fundamento nuclear – senão único – da responsabilidade civil[92].
Então, na esteira do artigo 1.382 do Código Civil francês[93], seguiram-se inúmeros outros diplomas civis de países ocidentais, tal como consta dos artigos 159 do Código Civil brasileiro de 1916[94], 1.902 do Código Civil espanhol[95], 1.319 do Código Civil uruguaio[96] e 483 do Código Civil português[97], todos corroborando a ideia de que a responsabilidade civil de um agente causador de danos, em regra, só se concretizaria se presente o elemento subjetivo da culpa (em um sentido genérico, que abrange, pois, dolo e culpa em sentido estrito)[98]. Ou seja: a vítima só será indenizada se houver prova de que o agente tenha incorrido em culpa (latu sensu). Ocorre que, se, de um lado, essa concepção psicológica da culpa serviu para conferir uma razoável justificativa filosófica ao dever de ressarcir, certo é, por outro, que também serviu para, no aspecto jurídico, atrair os holofotes quase que exclusivamente para o ofensor – e seu ato praticado –, em detrimento da vítima – e seu dano sofrido –[99].
Todavia, já ao fim do século XIX começam a surgir críticas com relação à exigência da prova da culpa como pressuposto exclusivo do dever de reparação[100]. É que os desumanos vínculos de trabalho, o frio maquinário produzido a larga escala pela indústria, o manuseio de insumos perigosos e a crescente invasão dos veículos contribuíram para o surgimento de diferenciados tipos de acidentes, muitos deles até mesmo inevitáveis, de tal arte que, a cada dia, passou-se a perceber, com a nefasta experiência do cotidiano, a enorme dificuldade das vítimas em provar a conduta culposa dos lesantes, conforme exigência do então vigente modelo de responsabilidade civil[101].
Essa dificuldade probatória era tão intensa e injusta que acabou sendo encarada como uma verdadeira maldade às vítimas, que, diante do dissabor de um já previsível fracasso probatório no interior de uma demanda judicial, no mais das vezes restavam totalmente irressarcidas. Daí o porquê dessa frustração técnico-probatória ter sido batizada na doutrina de probatio diabolica[102].
Tal nuança foi bem destacada por JOSSERAND, que, lançando mão de fortes argumentos, verberou:
“Como um operário, que se feriu durante o seu trabalho, pode demonstrar a culpa do patrão? Como o pedestre, colhido por um automóvel, num lugar solitário, à noite, na ausência de testemunhas, pode provar – supondo-se que tenha sobrevivido ao acidente – que o carro não estava iluminado ou que corria a uma velocidade excessiva? Como o viajante que, no curso de um trajeto efetuado em estrada de ferro, ou sobre a via, pode provar que os empregados tinham negligenciado no fechamento da porta, logo depois da partida da última estação? Impor à vítima ou aos seus herdeiros demonstrações desta natureza equivale, de fato, a recusar-lhes qualquer indenização”[103].
A partir de então, iniciou-se uma crescente tendência à objetivização da responsabilidade civil[104]. Mercê do profundo sentimento de justiça e de equidade que passou a trespassar a matéria, doutrina e jurisprudência começaram a se utilizar de artifícios técnicos cada vez mais acurados e requintados, sempre imbuídos do mesmo intuito: buscar a máxima reparação de todo e qualquer dano injusto. Nessa fase, inicia uma respeitosa mudança de ângulo na responsabilidade civil, cujo giro conceitual vai do ato ilícito para o dano injusto, do lesante para a vítima[105].
Surgem, assim, por primeiro, posições doutrinárias que diminuíam o clássico rigor na configuração da culpa, fazendo com que os magistrados, em sua atividade judicante, extraíssem a culpa das próprias circunstâncias, em si mesmo consideradas, ou dos antecedentes pessoais dos participantes[106].
Eclodem, depois, as primeiras teorias favoráveis à aplicação de uma presunção de culpa a desfavor do agente causador do dano. Para tal visão, a simples existência do dano, por si só, já era uma demonstração da culpa do ofensor. Nesse viés doutrinário, pois, uma vez ocorrido o dano, haveria de se tomar por culpado aquele que agiu ou se omitiu, que, de sua parte, em sua defesa, deveria se desincumbir do onus probandi de demonstrar, inequivocamente, nos autos, que o resultado danoso não teria qualquer nexo de causalidade com sua conduta[107].
Através desse expediente, aliviou-se sobremaneira a pesada carga probatória que, antes, recaía sobre a vítima, repassando-a, desta feita, para os ombros do ofensor. Em paralelo, tal medida representava uma solução salomônica, já que, além de impedir injustiças decorrentes da severa exigência da prova da culpa, também exercia o oportuno papel de negar acolhida à polêmica teoria do risco como novo fundamento da responsabilidade[108]. Foi o que fez, por exemplo, o Código Civil italiano de 1942, em seu conhecido artigo 2.050[109].
Também faz parte dessa articulação doutrinária – que, para seus fins, valia-se da figura da presunção – a engenhosa ideia de transformação da culpa extracontratual em culpa contratual. A finalidade prática dessa arguciosa operação intelectiva era justamente a de transferir o encargo probatório ao agente causador do dano, a quem caberia demonstrar, ao final, que o resultado lesivo não lhe poderia ser imputado. Com isso, libertava-se a vítima da árdua tarefa de provar o estado de culpa do ofensor.
Não durou muito para que o caráter dessa presunção passasse de juris tantum para juris et de jure, ou seja, que sua feição assumisse contornos absolutos, inamovíveis, ao ponto de o juiz, no exercício dessa tarefa, presumir de forma tão definitiva a culpa do ofensor que, no frigir dos ovos, a medida equivalia mesmo, na prática, à própria dispensa do fator culpa para fins de reparação civil[110]. Note-se, porém, que, ainda aqui, a culpa continua a figurar como atriz principal no palco da responsabilidade civil, muito embora já se perceba fortes indícios de sua degradação enquanto principal elemento da responsabilidade civil.
Seguindo essa interessante trilha que conduz ao gradual ocaso da culpa, enquanto fator exclusivo de legitimação da reparação civil, cabe-nos agora trazer a lume o nascimento de uma concepção objetiva de culpa (também chamada de culpa normativa), onde, desprezando-se as particularidades do agente, realiza-se um cotejo de seu comportamento com uma figura abstrata, um homem-médio, um homem-padrão, na linha dos famosos bonus pater familias e reasonable man. Agindo dessa forma, a prova da culpa fica deveras facilitada, pois a investigação judicial, passando ao largo das idiossincrasias do ofensor, abre margem para um ambiente interpretativo bem mais propenso à visualização do culpa[111].
Como se pode perceber, até aqui as novidades teóricas sempre advinham da reflexão dos doutrinadores e/ou da pena dos juízes, cuja sensibilidade, para garantir um direito mais justo e equânime, caminhava bem à frente da bitolada legislação da época, forjada sob a luz da sempre rigorosíssima exigência de prova da conduta culposa do agente lesivo[112]. Mas a invasão dessa direção teórica no campo da práxis fez com que o legislador finalmente passasse a positivar, expressamente, no ordenamento jurídico pátrio, hipóteses específicas de atribuição de responsabilidade independentemente do fator subjetivo da culpa.
Enfim, há o reconhecimento formal, através de leis especiais, que o instituto da culpa não mais figurava como necessário pressuposto da responsabilidade civil, marcadamente naquelas áreas onde há um maior índice de acidentes (fator quantitativo) e onde ocorre maior dificuldade na prova da culpa (fator qualitativo), podendo ser citados, com tais características, os acidentes de trabalho e os acidentes de aviação, sendo claro, nessa nova fase, “o objetivo de superar o individualismo, que marca a noção de culpa, em favor de uma visão mais solidarista da responsabilidade civil”[113].
Mais à frente, essas previsões normativas foram se tornando tão numerosas que acabaram por gerar a consagração, no âmbito do próprio Código Civil, de uma responsabilidade que prescinde do fator subjetivo da culpa. Em geral, as hipóteses previstas na lei englobam situações específicas em que há um prévio desequilíbrio entre os envolvidos, sendo flagrante a hipossuficiência da vítima quanto ao encargo de provar a possível culpa do lesionante[114].
Por último, ganha relevo o disposto no artigo 927, parágrafo único, do atual Código Civil pátrio[115], que, acolhendo a teoria do risco, de uma parte ratificou as hipóteses até então fixadas pelo legislador como acobertadas por uma responsabilidade objetiva, e, de outra, autorizou cada magistrado a, pautado em um senso de justiça, identificar atividades outras que, à luz do caso concreto submetido ao crivo do Judiciário, ajustem-se perfeitamente à moldura semântica que marca a cláusula geral de responsabilidade objetiva ali estampada – tema que será abordado com mais vagar no próximo capítulo –.
Defronte de uma preocupante questão probatória, o que se extrai desse breve histórico é a gradual mitigação da culpa, se tomada enquanto um dos fatores hábeis ao acionamento do dever de reparação de danos[116]. Por via de consequência, descortina-se, já há algum tempo, um visível processo de crescente objetivação da responsabilidade civil.
Não se enxergue nesse fenômeno, todavia, a falsa impressão de que a culpa estaria fadada à morte, com tempo marcado para desaparecer do cenário da responsabilidade civil. Quando se fala aqui em ocaso científico da culpa, reportamo-nos à total decadência do pensamento que enxerga a culpa como o único fundamento da responsabilidade civil[117]. Na verdade – e muito pelo contrário –, a aferição da culpabilidade do agente continua exercendo um relevante papel na sistemática jurídica que rege o tema, bastando destacar, no caso do ordenamento brasileiro, o disposto no artigo 186 do Código Civil de 2002[118], havendo até quem esgrime a tese de que, nos dias atuais, ocorre mesmo uma espécie de contra-ofensiva da culpa[119].
3.3.2 A Flexibilização Técnica do Nexo Causal
Não é somente o clássico elemento da culpa que tem sofrido mudanças no decorrer dos anos, de modo a se prestigiar o pleno ressarcimento da vítima. Também o nexo de causalidade tem enfrentado suas transformações ao sabor do mesmo objetivo. A nítida impressão é que o fluir dos tempos tem sido acompanhado por um profícuo aprimoramento das teorias que versam sobre a causalidade, cuja fluidez decorre do constante confronto com circunstâncias que ousam desafiar o senso de justiça que reside em cada coração humano, em especial no coração do julgador[120].
De fato, perceba-se que a mais antiga das concepções que cuidavam da fixação do nexo de causalidade seguia pela toada de que, em verdade, todas as condições de um dano se equivalem, ou seja, todo e qualquer evento que tenha de alguma forma contribuído para o resultado lesivo há de ser considerado efetiva causa do dano, para os efeitos da responsabilização civil. Trata-se da chamada teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non), cuja crítica mais severa reside justamente no inconveniente de alargar em demasia o raio do dever de reparação, imputando-o a uma miríade de agentes e eventos que muitas vezes apenas remotamente se relacionam com o dano[121].
Procurando ajustar esse defeito, formulou-se então a teoria da causalidade adequada, para quem “somente se considera como causadora do dano a condição por si só apta a produzi-lo”[122]. Através dessa teoria, para se conhecer se determinada causa é ou não adequada para produzir determinado efeito, instiga-se a questionar se tal relação de causa e efeito existe sempre, independentemente de qualquer outra circunstância, ou se, ao revés, no caso sob análise do estudioso, tal liame de causalidade se firmou em razão de fatores outros, específicos do caso concreto. A crítica, aqui, recai sobre a alegada excessiva dilatação do campo de liberdade conferido ao juiz na análise de cada caso, medida, para alguns, assaz perigosa[123].
Outrossim, almejando afastar essa visão algo que abstrata, engendrou-se a teoria da causalidade eficiente, segundo a qual as condições que concorrem para um certo resultado não são tomadas como equivalentes, porquanto sempre haverá de existir um fator que, na circunstância concreta, efetivamente desponta como a verdadeira causa do evento. Aqui, como se percebe, o juízo alusivo à causalidade não se dá in abstracto, mas in concreto. Entretanto, como não se logrou êxito em chegar a um denominador comum quanto a que critérios deveriam ser usados nesse mister, tal teoria se fadou ao insucesso[124].
Em seguida, exsurgiu a teoria da causalidade direta ou imediata, da interrupção do nexo causal ou da causalidade necessária[125], propalando, no particular, que a causa jurídica será apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem interferência de outra condição sucessiva, “tendo o condão de restringir a relevância do comportamento humano, para fins de responsabilização, aos acontecimentos mais próximos da geração do prejuízo”[126]. Sucede, porém, que também esse constructo intelectivo, com o tempo, não escapou de duras críticas, centradas basicamente na demonstração de sua feição excessivamente limitativa, acarretando até mesmo resultados injustos, à vista de determinadas hipóteses fáticas[127].
O fato inconteste é que na seara doutrinária impera enorme polêmica quanto a se saber qual a teoria mais consentânea com o ordenamento jurídico cível brasileiro. GONÇALVES, por exemplo, afirma que a teoria da causalidade direta ou imediata foi aquela adotada pelo novel Código Civil, como se vê de seu artigo 403, assim vazado: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”[128]. Entretanto, há também quem diga, em contraposição, como CAVALIERI FILHO, que a teoria vigorante no direito pátrio é a da causalidade adequada[129].
O mesmo se dá no que diz com a seara jurisprudencial, que também reflete semelhante dificuldade em se encontrar um ponto em comum, um consenso definitivo. Isso ocorre pela corriqueira inconsistência científica verificada no bojo de muitos acórdãos, que, “sucumbindo ao caráter sedutoramente empírico do tema, acabam por confundir ambas as teorias, não dispensando, entretanto, em nenhuma hipótese, a investigação da necessidade da causa”[130]. Realmente, malgrado seu relevante papel usualmente direcionado a alavancar decisões mais justas, a jurisprudência, nesse particular, e isso não há como negar, apresenta-se bastante confusa no que atine ao nexo causal[131].
Esse fenômeno, de início, produz um certo ar de descontentamento em nosso espírito. No entanto, cremos que a razão está mesmo com SCHREIBER, que, à luz de uma análise mais fina, afirma que a dita “torre de babel” erigida nos tribunais, no que toca ao tema sub examen, não significa um franco descompromisso científico, um irresponsável desleixo teórico por parte dos juízes. Muito pelo contrário, no fundo, esse “caos” reinante, quanto à temática do nexo etiológico, em verdade detém certo grau de coerência interna, já que consubstancia uma especial abordagem do tema, deliberadamente destinada a, por assim dizer, flexibilizar o nexo de causalidade, de modo a garantir, na prática – e à revelia de qualquer rigor científico-dogmático –, a efetiva reparação às vítimas de danos[132].
Não fosse apenas isso, cumpre registrar, que, mesmo com relação às denominadas excludentes de causalidade – que, sabe-se, são aquelas circunstâncias fático-jurídicas que, rompendo o elo etiológico, a rigor liberam o agente de qualquer dever de reparação[133] –, temos verificado construções flagrantemente impregnadas dessa altaneira influência que vem confirmando a erosão desse tal liame causal. Perceba-se, a título ilustrativo, que, inspirados na especialidade da relação consumerista, doutrina e jurisprudência vêm tecendo nos últimos anos sutil distinção entre fortuito externo e fortuito interno[134]. A respeito, leciona SCHREIBER:
“Por consistir em risco ligado à atividade do sujeito responsável, o fortuito interno tem sido considerado insuficiente para o afastamento da relação de causalidade entre a atividade desenvolvida e o dano, mesmo quando imprevisível e irresistível. Em outros termos: aos tradicionais requisitos da imprevisibilidade e irresistibilidade do caso fortuito, tem-se acrescentado esta terceira exigência – a externalidade ou externidade do caso fortuito, sem a qual se conserva a responsabilidade”[135].
Com relação ao fato ou culpa exclusiva de terceiro, já há mesmo expressa disposição legal mencionando, no caso dos contratos de transporte, que a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva (CC, artigo 135). Isso quer dizer, por exemplo, que caso o acidente entre um ônibus e um caminhão tenha decorrido diretamente da imprudência deste último, por ter invadido a contramão de direção, as vítimas que estavam no coletivo deverão se voltar contra a empresa transportadora. Assim se tem entendido porque “o fato culposo de terceiro se liga ao risco do transportador, relaciona-se com a organização de seu negócio, caracterizando o fortuito interno, que não afasta a sua responsabilidade”[136].
Também o fato ou culpa exclusiva da vítima tem recebido interpretação relativizada. É famoso o caso em que determinado jovem, hospedado em um hotel fazenda paulista, pela madrugada, após se confraternizar com amigos, decidiu subir em um escorrega e dali mergulhar dentro da piscina. Como a piscina não era suficientemente profunda para acolher um mergulho daquela altura, o salto acabou rendendo ao jovem um violento choque de sua cabeça com o solo, com sérias repercussões para a sua saúde. Nesse caso, muito embora, a rigor, o lesado tenha agido em desacordo com um standard mínimo de diligência e cautela, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu por bem que a responsabilidade pelos danos deveria recair sobre o hotel e a agência de turismo que o indicou, já que, segundo a decisão, o fato da vítima se encontrava dentro dos lindes da previsibilidade e prevenção do estabelecimento hoteleiro, excluindo-se a responsabilidade integral da vítima[137]. Percebemos, aí, que o julgamento levou ao extremo a noção de fato ou culpa exclusiva da vítima, buscando, em prol da tutela do lesionado, no contexto fático desse caso concreto, um dado, uma circunstância, um fator que, por parte da empresa, de alguma forma pudesse ter contribuído, minimamente que seja, para o evento danoso[138].
Vale mencionar, também, posicionamento doutrinário e jurisprudencial que vai no sentido de elastecer o próprio elo causal em si, a tal ponto de não se dispensar o agente da reparação de danos naqueles casos em que se sucede lesão mais grave que o normal, por força de condições particulares da vítima. Nesse sentido, até se pode invocar o preceito contido no artigo 944, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, que reza: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”[139].
Mais uma vez, fica clara a depuração científica do tema, empolgada pelo intuito de tutelar a pessoa da vítima, de modo a evitar injustas hipóteses de ausência de reparação. A flexibilização do nexo causal, nesse cenário, representa um engenhoso desdobramento técnico do sentimento constitucional de proteção da dignidade humana, no caso bem refletido naquelas situações em que a vítima se vê lesada em circunstâncias que, de uma forma ou de outra, têm alguma ligação com a atividade do agente causador do dano[140].
3.3.3 O Redimensionamento Ontológico dos Danos
Esse crescente influxo do desejo de proteção da vítima deitou por terra o clássico pensamento que tendia a dificultar ao máximo o acionamento da reparação civil. Eis o porquê dos filtros da responsabilidade civil (culpa e nexo causal), na maior parte do tempo, terem sido manuseados com extremo rigor pela pena judicante.
Entretanto, na atual quadra científica, o impulso segue por caminho diverso, qual seja, pugna-se, agora, pela relativização cada vez maior desses fatores, a fim de que decisões mais justas sejam exaradas, como naquelas hipóteses em que a prova da culpa é praticamente impossível e o fortuito envolve circunstância que pode ser enquadrada, de alguma forma, na própria dinâmica de atividade do sujeito lesionante. E a consequência da erosão desses clássicos filtros da reparação civil é o natural alargamento da esfera de danos ressarcíveis[141].
Nesse quadro, podemos relatar, inicialmente, a expansão de danos sob um enfoque estritamente quantitativo. Deveras, em especial a contar da Constituição de 1988, valorizou-se o pleno acesso à justiça[142] e se consolidou a viabilidade jurídica de vingar indenizações por dano moral[143]. Some-se a isso a edição do Código de Defesa do Consumidor (1990) – que abrange um extenso círculo humano de influência normativa[144] – e a criação dos Juizados Especiais[145].
No que se refere, agora, ao enfoque qualitativo, urge destacar a impetuosa proliferação de novas espécies de danos, além daqueles exclusivamente patrimoniais. A respeito, assevera VINEY que essa aparição e multiplicação de danos até então completamente desconhecidos, seja pela sua origem, seja pela sua amplitude, advém “dos acidentes de toda natureza que atingem o homem e o seu ambiente em razão do desenvolvimento da indústria, dos meios de transporte, da difusão de produtos complexos e perigosos, da exploração de energias mais ou menos bem controladas etc”[146]. NORONHA bem captou esse novo cenário, discorrendo com propriedade, verbis:
“Em tempos ainda recentes, os danos suscetíveis de reparação eram quase que somente os patrimoniais e individuais. A necessidade sentida pela sociedade de não deixar dano nenhum sem reparação é que mudou as coisas. Em primeiro lugar, gerou um avassalador movimento em prol da reparação dos danos extrapatrimoniais (ou morais, em sentido amplo), que, por contraposição aos danos que acarretam prejuízo econômico, atingem valores somente de ordem corporal (danos puramente corporais) ou espiritual e moral (danos anímicos, ou morais em sentido estrito). (...) Em segundo lugar, conduziu ao reconhecimento da necessidade de tutelar também os danos transindividuais (também chamados de supra-individuais ou metaindividuais), que são os que resultam da violação dos chamados interesses difusos e coletivos, definidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), art. 81, parágrafo único, I e II. Trata-se de danos que dizem respeito a bens do interesse da generalidade das pessoas que integram uma comunidade, destacando-se, dentre eles, os prejuízos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens ou direitos da coletividade”[147].
Exemplos dessa nova miríade de lesões seriam o abalo moral individual, o dano moral coletivo, dano estético, dano afetivo, dano social, dano coletivo, dano difuso, dano ambiental, dano sexual, dano por perda de oportunidade, perda de concorrencialidade, por redução de capacidade laboral, por assédio moral, por abandono afetivo, por morte de animal doméstico, por tranquilidade doméstica etc.[148]
Não sem razão a técnica legislativa mais utilizada no mundo contemporâneo é a da fixação de cláusulas gerais e conceitos indeterminados... A extrema dinamicidade da sociedade atual, aliada ao forte desejo de promover, no plano mais amplo possível, a tutela da pessoa humana, são dados incompatíveis com a rigorosa tipicidade de condutas que outrora marcou a produção legiferante[149].
Cuida-se, pois, de uma imposição dos novos tempos, que, obviamente, não poderia passar desapercebida por nosso Direito. De fato, uma ampla rede de proteção quanto aos mais variados danos, permeada por conceitos de extrema vaguidade conceitual, pode ser bem visualizada no arcabouço normativo brasileiro.
Perceba-se que, na órbita constitucional, verificamos ser resguardado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (artigo 5º, inciso V), mostrando-se invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (artigo 5º, inciso X).
Ademais, agora na órbita infraconstitucional, dispõe a lei que comete ato ilícito aquele que, por ato culposo (omissivo ou comissivo), violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral (CC, artigo 186), bem como aquele que, sendo titular de um direito, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC, artigo 187).
3.3.4 A Potencialização Fática da Efetiva Reparação
Na vigência do modelo anterior, a responsabilidade civil expressava um sistema altamente individualista, fundado na necessidade de prova inequívoca da culpa e onde os filtros de reparabilidade eram manuseados com alto rigor, em consonância com a criticável ideia de que o ressarcimento só deveria incidir em casos excepcionais, estreitos. Nessa dimensão, ressoava algo que comum ver inúmeras vítimas serem diuturnamente assoladas pelo fantasma do desamparo, que, defronte de um previsível insucesso probatório, acabavam por assumir, com absurda resignação, prejuízos que sequer tinham dado causa.
Nos dias atuais, todavia, a sistemática da responsabilidade civil é tangida por outro comando. Mercê de uma sadia ambiência constitucional – que introduziu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III) e viu no princípio da solidariedade uma noção objetiva conformadora das instituições jurídicas (artigo 3º, inciso I) –, a preocupação, hoje, é justamente evitar ao extremo as fatídicas ocasiões de ausência de reparação.
Como anotamos em linhas transatas, o ocaso científico da culpa, a flexibilização técnica do nexo de causalidade e o redimensionamento ontológico dos danos ressarcíveis constituem medidas que, conjugadas, expressam essa nova forma de ver as coisas, esse novo paradigma que, fincado em densos valores constitucionais, exsurge com o elevado intuito de tutelar a vítima, de forma que, pelo contrário, a reparação plena e integral de seus prejuízos seja uma regra, nunca uma exceção[150].
Dentre tantas tendências no particular desse tema, pelo menos três podem aqui ser mencionadas, todas dirigidas pela mesma ideia de garantia da efetiva reparação da vítima.
De início, registramos o que se tem cunhado de teoria da causalidade alternativa, cujo conteúdo ganha importância naquelas hipóteses em que, malgrado seja possível identificar o grupo de cuja atuação adveio o dano, há impossibilidade de realizar a identificação precisa e individualizada de seu causador, sendo que a tendência verificada, na esteira do direito germânico, segue pela responsabilização solidária de todos os participantes do grupo, impedindo, com isso, que a vítima reste injustamente desamparada[151].
Sobressai, também, a vigorosa tendência de fazer com que a responsabilidade pelo ressarcimento abarque o maior número possível de pessoas, geralmente amarradas com um precioso vínculo de solidariedade, elo esse que, sabe-se, reduz sobremaneira as possibilidades da vítima sair irressarcida do infortúnio, em face da maior amplitude de acervo patrimonial reservado ao cumprimento de uma possível tutela ressarcitória de dano. Esse alinhamento encontra prodigioso espaço em nosso sistema jurídico, destacando-se, por exemplo, o disposto no artigo 942, caput, in fine, do Código Civil de 2002, quando reza que se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação[152].
Mas, na verdade, quem deu mesmo novo fôlego ao tema foi o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que, no caso de danos nas relações consumeristas, primando pela máxima proteção da vida humana[153] e pela ampla prevenção e reparação de toda e qualquer sorte de prejuízo (artigo 6º, incisos I e VI)[154], adotou a solidariedade da responsabilização enquanto regra geral[155]. Não bastasse, tal Codex também previu, expressamente, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica das empresas, com invasão da esfera patrimonial dos sócios, quando essa figura – a personalidade jurídica – constituir óbice ao ressarcimento de prejuízos de consumidores (artigo 28, caput, e § 5º[156]).
Não bastasse, estabelece também aquele valoroso diploma legal que toda e qualquer vítima do evento danoso, ocorrido no âmbito consumerista, por fato do produto ou do serviço, ainda que não detenha relação direta de consumo com o prestador ou fornecedor, gozará de todo o mesmo plexo de benefícios que recaem sobre a figura do consumidor[157]. Aliás, em norma até muito mais abrangente que essa, dispõe mesmo o Código de Defesa do Consumidor que “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”[158].
Também deve receber menção o uso, em diversos países, de um sistema de seguro de responsabilidade civil, destinado a fazer frente com possíveis indenizações. Inicialmente encarada como uma ideia absurda[159], a verdade é que, com o desenrolar da história, tal mecanismo acabou ganhando corpo, ao ponto de YVONNE FLOUR afirmar que, “na época contemporânea, a responsabilidade civil não pode mais ser pensada fora da noção de seguro”[160]. Sobre o assunto, acentua SCHREIBER:
“A grande ironia reside em que o próprio desenvolvimento da responsabilidade civil veio ampliar a interferência da técnica securitária em seus domínios. A ânsia por desestimular as condutas culposas e, em momento posterior, o propósito de assegurar a reparação integral à vítima vieram exigir somas ressarcitórias elevadas com as quais os agentes lesivos não estavam preparados ou dispostos a arcar. Mais recentemente, ao consolidar-se a alteração funcional da responsabilidade civil, com um progressivo abandono do escopo repressivo da conduta culposa em favor da proteção à pessoa lesada, eliminaram-se os obstáculos ideológicos que impediam a transferência do ônus econômico da reparação a um terceiro inocente”.[161]
A nosso ver, uma das grandes críticas que se pode lançar contra esse sistema securitário é justamente o fato de que sua formatação atinge de morte a inarredável função preventiva da reparação, justamente a que mais se tem tentado prestigiar na concepção hodierna de responsabilidade civil[162].
De resto, cumpre o aceno, sempre bem-vindo, no sentido de que, em ocorrendo prejuízos, estes merecerão especial tutela não apenas para serem reparados (CC, artigo 927, caput[163]), mas, também e acima de tudo, reparados em toda a sua extensão (CC, artigo 944, caput – princípio da restitutio in integrum[164]), expediente esse consentâneo com a já mencionada cláusula geral de tutela da pessoa humana e que, de sua parte, só convalida essa salutar tendência hodierna de se garantir, na medida das condições fáticas e jurídicas de cada caso, a máxima potencialização fática da efetiva reparação das vítimas.
3.3.5 A Reformulação Teórica dos Fundamentos da Responsabilidade Civil
A mais importante tendência da responsabilidade civil no mundo atual – quiçá até mesmo responsável por todas as demais tendências anteriormente relatadas – está ligada não com seus elementos clássicos (culpa, dano, nexo de causalidade), muito menos com aquela tão propalada inflexão subjetiva de forte ênfase na vítima.
In vero, a mais marcante das tendências da responsabilidade civil está ocorrendo em seu próprio âmago, nas razões de sua própria existência. Nessa área, as reflexões têm sido tão profundas que podemos até mesmo afirmar estarmos vivenciando, hodiernamente, um auspicioso momento de transição quanto à própria concepção da responsabilidade civil[165].
Um dos rebentos mais destacados desse novo ambiente pode ser visualizado na excelente obra Responsabilidade Pressuposta, redigida por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, da Universidade de São Paulo. Nesse livro, de conteúdo denso e altamente qualificado, a ilustre jurista faz inquietantes indagações. No início de seu trabalho, por exemplo, afirma, in verbis:
“Poucos institutos jurídicos evoluem mais que a responsabilidade civil. A sua importância em face do direito é agigantada e impressionante em decorrência dessa evolução, dessa mutabilidade constante, dessa movimentação eterna no sentido de ser alcançado seu desiderato maior, que é exatamente o pronto-atendimento às vítimas de danos pela atribuição, a alguém, do dever de indenizá-los. Refere-se, neste início de um novo tempo, à necessidade de se definir, de modo consentâneo, eficaz e ágil, um sistema de responsabilidade civil que tenha por objetivo precípuo, fundamental e essencial a convicção de que é urgente que deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais reduzidos de vítimas irressarcidas. Mais que isso. O momento atual desta trilha evolutiva, isto é, a realidade dos dias contemporâneos, detecta uma preocupação – que a cada dia ganha mais destaque – no sentido de ser garantido o direito de alguém de não mais ser vítima de danos. Este caráter de prevenção da ocorrência de danos busca seu espaço no sistema de responsabilidade civil, em paralelo ao espaço sempre ocupado pela reparação dos danos já ocorridos. Há um novo sistema a ser construído, ou, pelo menos, há um sistema já existente que reclama transformação...”[166].
De fato, a responsabilidade civil, sempre sensível às transformações sociais[167], evidenciou, no começo de tudo, a superação da vingança privada pela ideia de culpa. Depois, imposições da modernidade exigiram o avanço para o constructo da culpa presumida. Mais à frente, com a contundência da contemporaneidade, aflorou a responsabilidade objetiva[168]. Propõe-se, agora, um novo salto evolutivo, desta feita avançando-se para a noção de responsabilidade pressuposta[169]. Ainda com HIRONAKA, mergulhemos um pouco mais no assunto:
“O evoluir jurisprudencial, então, cada vez mais, passa a registrar decisões que se expressam em termos de presunção de responsabilidade e não presunção de culpa. Como se uma espécie de responsabilidade pressuposta. Nem fundada na culpa, nem derivada do risco. Objetivada, mas com precauções. Os freios de expansão bem puxados, controlando os casos de aplicação e restringindo a esfera de abrangência. As considerações vinculadas à culpa vão se tornando, assim, cada vez mais raras e a maior parte das decisões contém uma grande dose de severidade na apreciação da prova liberatória, a ponto de parecer aplicar, na realidade, uma verdadeira responsabilidade objetiva. (...) O que se procura, com um sistema aperfeiçoado de responsabilidade civil, não é, obviamente, evitar todo o perigo, o que seria impraticável, inviável e inimaginável; a finalidade objetivada seria, isto sim, a diminuição do dano. A partir do momento em que a impossibilidade de evitar o dano é aceita, a disciplina jurídica da responsabilidade civil deveria visar a redução do custo social que ele representa, seja por meio da adoção de medidas de prevenção, ou porque alguém responderá por ele, por força de uma responsabilidade pressuposta e fundada num critério-padrão de imputação”[170].
Para a autora, é preciso pensar a responsabilidade civil debaixo de uma ótica eminentemente constitucional, fundando sua disciplina nos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, inciso III) e da solidariedade social (CF, artigo 3º, inciso I). Como corolário, há de se tutelar por primeiro a vítima, para só em seguida atentar para o ofensor[171]. Propõe a jurista que se busque um fator que justifique um novo sistema de responsabilidade civil, a responsabilidade pressuposta[172], que demandaria a construção de um critério geral de imputação que legitime o regime objetivo de responsabilidade civil, situado além da solução legal casuística e que venha a atender àqueles vetores constitucionais acima citados[173]. Encerra a obra reconhecendo a necessidade da doutrina amadurecer ainda um pouco mais o debate, mencionando ter deixado pelo menos algumas pistas para a resolução dessa intrincada questão[174].
Em escrito mais recente, a autora finalmente lançou, com maior precisão, os traços concretos dessa nova sistemática de responsabilização civil, pioneiramente denominada responsabilidade pressuposta. Embora longo, o texto, pela sua indiscutível relevância, merece ser transcrito, verbis:
“Segundo a nossa visão, e a partir da incansável reflexão acerca do assunto, até aqui, uma mise en danger otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim os traços principais que ela contém: 1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a potencialidade, contida na atividade, de realizar um dano de grave intensidade, potencialidade essa que não pode ser inteiramente eliminada, não obstante toda a diligência que tenha sido razoavelmente levada a cabo, nesse sentido; 2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo): subdivide-se em: a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter inevitável do risco (não da ocorrência danosa em si, mas do risco da ocorrência). A impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta acentua a periculosidade, fazendo-a superior a qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada pela diligência razoável; b) intensidade elevada: corresponde ao elevado índice de ocorrências danosas advindas de uma certa atividade (as subespécies deste segundo elemento podem, ou não, aparecer juntas; não obrigatoriamente). Portanto, e a partir desta súmula do que se idealiza quanto a uma mise en danger, provavelmente seria possível retratar o critério buscado para lhe conferir o status de uma règle de valeur, da seguinte maneira: 1) este critério deve descrever a potencialidade perigosa das atividades que podem ensejar a responsabilização pelo viés da mise en danger; 2) não deve ser taxativo ou enumerativo, para não fechar as portas para futuros danos, ainda não conhecidos; 3) não deve ser tão elástico que acabe por suportar (ou por deixar entrar) variáveis que não se encaixem na verdadeira potencialidade perigosa de uma atividade; 4) estabelecido o nexo causal (dano x atividade perigosa), o executor da atividade é considerado o responsável pela reparação (tout court); 5) essa responsabilidade civil deve ter como finalidade exclusivamente a reparação da vítima, sem qualquer abertura à exoneração dos responsáveis, em face de provas liberatórias (assemelhadas às contraprovas, nas presunções juris tantum); 6) não deve admitir excludente de responsabilidade; 7) pode, eventualmente, admitir o regresso (ação de regresso), mas que se dará pelas provas que o demandado possa fazer nessa outra ação, e que demonstrariam a culpa de outrem, contra o qual regressaria”[175].
De tudo o que fora exposto, a sensação que fica é a de que se sucede um verdadeiro sismo no terreno da responsabilidade civil. Seus alicerces estão abalados; seus paradigmas, trincados. Saiu o Código Civil; entrou a Constituição. Passou-se do lesante, ao lesado; do ofensor, para a vítima[176]. Já não reina absoluta a responsabilidade subjetiva; desponta a responsabilidade objetiva. Da culpa ao risco. Do risco à solidariedade. A responsabilidade civil está se libertando da noção individualista de sanção; assimila, agora, as noções solidaristas de reparação e prevenção[177]. Já não se buscam culpados; almejam-se responsáveis. De responsabilidade civil para responsabilidade constitucional. Ou melhor: de responsabilidade civil para reparação civil. Melhor ainda: reparação constitucional. Ora, há, de fato, algo novo sendo construído...[178]