“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convém; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. Ninguém busque o proveito próprio; antes, cada um, o que é de outrem.”
Bíblia Sagrada, 1 Coríntios 10.23-24 [1]
1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO: CONSIDERAÇÕES BÁSICAS
A Constituição Federal de 1988 é tão grande que não se contém em si. Ela precisa explodir, estourar, vazar. Ela, sem a menor sombra de dúvida, nasceu vocacionada a penetrar, devassar, invadir. É uma espécie de bomba que, com sua densa carga axiológica e seu perfil altamente emancipatório, advém com a declarada missão de implodir as estruturas centrais do edifício jurídico, reconstruindo-as na esteira de seus vetores materiais[2].
Em verdade, sua promulgação ecoou mesmo como um grito de revolução, cujo som se propagou por toda a extensa malha jurídica, pretendendo regular condutas visando à perseguição da justiça material e à promoção da dignidade humana. Podemos afirmar, portanto, que nossa atual Lex Fundamentalis veio ao mundo com o ardente desejo de mudar a realidade brasileira.
Isso quer significar, mais precisamente, que, à vista de sua inexorável preeminência normativa, toda a ordem jurídica deve ser (re)lida à luz da Carta Constitucional, submetida ao seu crivo, confrontada com seus valores[3]. Esse processo é comumente chamado de constitucionalização do Direito. Com isso, oportuniza-se que os valores constitucionais desentupam os poços jurídicos entulhados pelo individualismo exacerbado e os canais normativos obstruídos pelo excessivo apego ao viés patrimonial[4].
Partindo dessa linha de ideias, é possível desde logo perceber que por constitucionalização do Direito em nenhum momento se quer aqui referir apenas àquele fenômeno, relativamente recente, que diz com a presença, no texto constitucional, de temas e institutos outrora tratados apenas no âmbito da legislação infraconstitucional. O que pretendemos aqui trabalhar, pois, não concerne à simples elevação constitucional de institutos até então meramente ligados à tábua legislativa ordinária. Não se cuida, assim, de uma visão formal, de uma noção meramente topológica da coisa. É muito mais que isso.
Por constitucionalização do Direito, deve-se compreender, pelo contrário, como o fenômeno pelo qual os vetores constitucionais se deslocam rumo ao direito infraconstitucional, no desiderato de permear seus institutos e dispositivos com os valores consagrados na Magna Carta, impondo-lhes uma releitura substancial, uma reinterpretação crítica, agora debaixo da lente constitucional[5]. Cuida-se, portanto, de uma visão material, de uma noção essencialmente teleológica. É o que FAVOREU chama de constitucionalização-transformação, já que o objetivo é não apenas a impregnação dos diferentes ramos do direito, senão que também a sua própria transformação, em conformidade com o perfil constitucional[6].
O corolário lógico desse tipo de perspectiva é que toda interpretação jurídica acaba por envolver, necessariamente, alguma dose de interpretação constitucional[7]. Melhor dizendo: cada interpretação é um “microcosmo” que deve apontar para a afirmação de uma sociedade mais livre, justa e solidária[8].
Noutro quadrante, tangente aos requisitos que viabilizaram sua ocorrência, CUNHA JUNIOR assere, com inteira pertinência, que a constitucionalização do Direito somente foi possível a partir da i) compreensão da Constituição como norma jurídica fundamental, dotada de supremacia; ii) da incorporação nos textos constitucionais de valores e opções políticas fundamentais; e iii) da eficácia expansiva dos valores constitucionais, moldando a interpretação e aplicação da legislação infraconstitucional em conformidade com aquelas diretrizes materiais[9].
Com relação à amplitude dessa irradiação nos diversos setores de poder da sociedade (público e privado), leciona BARROSO:
“Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares. (...) Relativamente ao Legislativo, a constitucionalização (i) limita sua discricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das leis em geral e (ii) impõe-lhe determinados deveres de atuação para realização de direitos e programas constitucionais. No tocante à Administração Pública, além de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor-lhe deveres de atuação, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário, (i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ação direta), bem como (ii) condiciona a interpretação de todas as normas do sistema. Por fim, para os particulares, estabelece limitações à sua autonomia da vontade, em domínios como a liberdade de contratar ou o uso da propriedade privada, subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais”[10].
Logo, a partir dessa delimitação do que se entende tecnicamente por “constitucionalização”, centremos nossa atenção, a partir de agora, para a órbita do Direito Civil propriamente dito.
2. PARTICULARIZANDO O FOCO: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
2.1 Intróito
É nesse alvissareiro cenário que a partir dos anos 90 diversos estudiosos demonstraram sua pertinente preocupação em adaptar todos os ramos do direito à nova realidade axiológica inaugurada em 1988. Todavia, foi no campo do Direito Civil que essa repercussão se mostrou mais visível. Há quem defenda, por exemplo, que, a partir da invasão constitucional na esfera antes reservada apenas à autonomia privada, “uma nova ordem pública há de ser construída, coerente com os fundamentos e objetivos fundamentais da República”[11]. Embora cause espécie de início, a assertiva está corretíssima. Poderíamos até mesmo consignar, parafraseando PONTES DE MIRANDA, que, com a Constituição Federal de 1988, começou mesmo, para o Direito Civil, uma nova manhã[12].
De fato, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais e a necessidade de promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 3º, inciso III) e epicentro axiológico da ordem constitucional brasileira[13] – que há de ser realizado no máximo de seu potencial normativo (CF, artigo 5º, § 1º), porquanto incorpora verdadeiro mandado de otimização (Alexy) –, tem remodelado profundamente o perfil do Direito Civil, gerando aquilo que se convencionou chamar de Direito Civil-Constitucional[14]. Como ensina LÔBO:
“Os civilistas, finalmente, descobriram a Constituição. Perceberam que a elevação dos fundamentos do direito civil ao status constitucional foi uma deliberada escolha axiológica da sociedade, indispensável para a consolidação do Estado Democrático e Social de Direito e da consequente promoção da justiça social e da solidariedade, incompatíveis com o modelo liberal anterior de distanciamento jurídico dos interesses privados e de valorização do individualismo”[15].
Com essa nova silhueta, o Direito Civil passa a se alimentar da seiva humanista que jorra do tronco constitucional, expurgando do sistema cível aquela visão extremamente patrimonialista, sua marca registrada até bem pouco tempo atrás[16]. Ao pálio desse novo paradigma, o valor segurança, característico do período das codificações oitocentistas, deve conviver em harmonia com o valor justiça, sobremodo prestigiado no atual rumo da história. Essa apurada engrenagem serve para buscar, no alto de suas possibilidades, a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, centrada na máxima proteção da dignidade humana[17]. Essa é a nova ordem pública a ser erguida[18].
2.2 Escorço Histórico
No início havia mundos apartados[19]. De um lado, as relações entre o Estado e os cidadãos, regidas pela Constituição, um pálido documento político; do outro, as relações travadas entre particulares, regidas pelo Código Civil, um vigoroso documento jurídico. À época, a legislação civil era subserviente aos interesses egoístas da burguesia, tendo sido entretecida com o claro objetivo de assegurar a liberdade individual, a igualdade formal entre as pessoas e a garantia absoluta da propriedade. Diante da experiência do Código napoleônico (1804), seguiu-se um movimento de codificação na Europa ao longo do século XIX[20]. Naqueles tempos, o direito público não interferia na esfera particular dos cidadãos, “assumindo o Código Civil, portanto, o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas”[21]. Público e privado se odeiam.
O tempo fluiu e o mercado ficou “livre”. Mas no aflorar do século XX já não havia mais como esconder uma realidade cruel: as péssimas condições de vida da classe trabalhadora, proporcionadas pelo ambicioso processo de industrialização. Surge uma certa preocupação com a desigualdade material subjacente à sociedade de então, em especial quanto aos liames firmados entre particulares, impondo-se a direta intervenção estatal nessas relações privadas por meio de normas de ordem pública, com vistas a garantir um relativo equilíbrio material entre os contratantes. Tal fenômeno, chamado de dirigismo contratual ou publicização do direito civil, operou-se sob a égide do Estado Social e representou um primeiro despertar de consciência para a promoção da dignidade humana e a superação do individualismo exacerbado, típico do Estado Liberal[22]. Público e privado se flertam[23].
Esse processo de intensa intervenção legislativa, aliado à premência de regulação de novos institutos surgidos com a evolução econômica, acabou redundando na formação de diversos microssistemas legais (v.g., no Brasil, a Lei de Locação), que passaram a circundar o Código Civil, como se fossem mundos à parte[24]. Tal fenômeno é chamado na doutrina de processo de descodificação e foi responsável por reduzir a importância jurídica do Código Civil, que já não mais regia todas as relações privadas praticadas no seio social[25]. Dito enfraquecimento se intensificou quando as Constituições do Estado Social começaram a assumir compromissos que deveriam ser levados a cabo pelo legislador, oportunidade em que foram traçados limites para a autonomia privada e a propriedade[26], convolando-se, com isso, essas cartas constitucionais, em genuínos centros de unificação do ordenamento civil[27]. Público e privado se aproximam.
Enfim, com a chegada do Estado Constitucional ou Democrático de Direito, a Constituição assume de vez o reinado no ordenamento normativo[28], e, mercê de sua força normativa e dos valores existenciais que nutre, passa a servir como verdadeiro filtro axiológico através do qual devem ser lidos todos os institutos jurídicos, inclusive os do ramo cível. É a constitucionalização do direito civil. Público e privado se casam[29].
2.3 Novos Paradigmas do Direito Civil-Constitucional
No que diz respeito ao nosso anterior Código Civil, gestado nos idos de 1916, destacam com pertinência GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, verbis:
“O CC-16, sem diminuir a sua magnitude técnica, em sua crueza, é egoísta, patriarcal e autoritário, refletindo, naturalmente, a sociedade do século XIX. Preocupa-se com o ‘ter’, e não como ‘ser’. Ignora a dignidade da pessoa humana, não se compadece com os sofrimentos do devedor, esmaga o filho bastardo, faz-se de desentendido no que tange aos direitos e litígios pela posse coletiva de terras, e, o que é pior, imagina que as partes de um contrato são sempre iguais. Por tudo isso, a Constituição Federal, consagrando valores como dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho, a igualdade e proteção dos filhos, o exercício não abusivo da atividade econômica, deixa de ser um simples documento de boas intenções e passa a ser considerada um corpo normativo superior que deve ser diretamente aplicado às relações jurídicas em geral, subordinando toda a legislação ordinária”[30].
O Código Civil de 2002, de sua parte, efetivamente se rendeu aos princípios, compatibilizando-se, na generalidade de seu perfil, com o paradigma da axiologia constitucional[31]. Embora tenha vindo ao mundo jurídico já debaixo de severas críticas, a par de seu demorado processo de elaboração e votação, a verdade é que tal Codex redimensionou institutos e abriu suas portas ao poderoso influxo principiológico ora intensamente insuflado[32].
Malgrado, no fundo, em alguns aspectos, tenha mesmo expressado certa timidez legislativa, o referido diploma se mostrou digno de encômios quando, em diversas de suas passagens, abre a janela para a ética e a solidariedade, valendo-se ainda de várias cláusulas gerais e inúmeros conceitos indeterminados, o que bem demonstra sua especial maleabilidade, adaptabilidade e sensibilidade aos fatos sociais. Pode-se perceber mesmo um verdadeiro sinal de ruptura material com as proposições do Direito Civil anterior, subserviente que era com o vetusto paradigma de Estado Liberal, que, primando pelo culto a valores individualistas e patrimoniais, assentava-se na rígida dicotomia – hoje ultrapassada – entre público e privado[33].
Logo, podemos afirmar que essa mudança é interna, nodal mesmo, pois centrada na própria essência, no próprio âmago do Direito Civil, a exigir alterações profundas, onde o patamar a ser perseguido é o de uma coerência não apenas formal, mas acima de tudo material, é dizer, um (re)alinhamento teleológico em relação ao renovado conteúdo axiológico que a legislação – e o intérprete – civil recebeu a partir de 1988[34].
De fato, como menciona MONTEIRO FILHO:
“A promulgação da Constituição de 1988 operou vigorosa transformação do direito civil, a impor a releitura de todas as suas instituições. A nova carta ensejou tanto a revogação das disposições normativas incompatíveis com o seu texto e seu espírito, quanto a modificação interpretativa de todas as remanescentes. Rompeu com as bases e valores que até então prevaleciam, de cunho liberal, notadamente o individualismo e o patrimonialismo, e inaugurou nova ordem jurídica, calcada em valores existenciais, não patrimoniais, sobretudo no pluralismo e no solidarismo”[35].
Nessa linha argumentativa, afirma-se que o novo Código Civil foi estruturado debaixo da luz de três princípios, a saber, o princípio da eticidade, o princípio da socialidade e o princípio da operabilidade[36]. Vejamos suas linhas básicas.
O princípio da eticidade concerne ao anseio de aproximar ao máximo possível a técnica e a ética. Cuida-se de um vetor axiológico que nos insta a focar os institutos de direito civil não mais debaixo de uma ótica puramente legalista, mas sim sob o influxo da finalidade social da obrigação. É o que se vê, por exemplo, nos artigos 112[37] e 113[38] do atual Código Civil. Prioriza a equidade, a boa-fé, a decisão mais justa para cada caso concreto[39].
Já o princípio da socialidade procura se contrapor à ideologia individualista e patrimonialista do sistema vigorante desde 1916[40]. Através dele, busca-se preservar o sentido de coletividade, muitas vezes em detrimento de interesses puramente individuais[41]. É o caso, por exemplo, do prestígio conferido à função social do contrato e à natureza social da posse, constantes, respectivamente, dos artigos 421[42] e 1.239[43] do vigente Diploma Civil.
De outro turno, o princípio da operabilidade basicamente quer referir à valorização dos poderes do magistrado, a quem se confere um mais alargado campo hermenêutico por ocasião da interpretação/aplicação do direito, habilitando-o a verificar, em cada caso concreto, as efetivas necessidades que demandem a tutela jurisdicional. Nessa vereda, o legislador se valeu, no mais das vezes, de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que devem ser colmatados à luz de cada espécie fática[44]. Podemos destacar, aqui, o conteúdo do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil[45]. Esse princípio está também ligado com a ideia de efetividade, imperatividade e cogência das normas, evitando-se ao máximo a utilização de preceitos meramente enunciativos ou programáticos, porquanto desprovidos da necessária força pacificadora de conflitos que há de permear todo o Direito[46].
Na síntese de BENETI, pode-se afirmar que:
“... a socialidade é a prevalência dos valores sociais da sociedade industrial moderna sobre os individuais da antiga sociedade rural; a eticidade afirma os valores humanos e valoriza o resultado justo da atuação do Direito, sobretudo por intermédio da equidade, boa-fé e confiança, e a operacionalidade afasta o formalismo e academicismo e norteia a busca da simplicidade e da realidade concreta”[47].
Fácil inferir que todo esse novo cabedal teórico calha perfeitamente à fiveleta constitucional. Com efeito, note-se que, partindo dessa cosmovisão – onde Direito e Sociedade se aproximam mais intimamente –, a ética deve preceder e permear a técnica, o ser deve preceder e permear o ter, viabilizando, assim, que relações jurídicas obrigacionais sejam focadas não mais debaixo de uma lente puramente legal ou individual, mas sim sob o influxo dos desideratos social e ético de cada obrigação. Altera-se, pois, a forma de se encarar as coisas, migrando-se da frieza das regras formais técnicas para o calor dos princípios substanciais éticos, a serem harmoniosamente conjugados em prol do resguardo da dignidade humana.
Urge averiguar, nesta quadra de nosso estudo, ainda que rapidamente, algumas das importantes influências dessas nobres diretrizes principiológicas no âmbito do novo Código Civil, notadamente – não esqueçamos – enquanto reflexo do fenômeno da constitucionalização desse mui especial ramo jurídico.
Uma das grandes repercussões da constitucionalização do Direito Civil é exatamente a noção de funcionalização dos direitos. À luz dessa condição, mesmo o exercício do mais comezinho dos direitos há de ser praticado em estrita consonância com a pauta axiológica subjacente à ordem constitucional[48]. Nesse rumo intelectivo, pois, não basta se afirmar diante do Estado titular de um direito. Em verdade, é preciso exercê-lo de tal forma que essa prática contribua, ainda que indiretamente, para o bem comum. A intenção é reprimir aqueles atos que, embora legais, são violadores da diretriz constitucional socializante. Enfim, passamos a gozar de nossos direitos não mais de olho apenas no Estado, mas atentos também – e principalmente – para os valores materiais que norteiam a sociedade como um todo[49].
Sob tal prisma, responsabilidade deve vir antes de liberdade. A autonomia privada continua tendo vida, mas – como acentua SARMENTO – a ordem jurídica vai agora temperá-la com preocupações sociais[50]. A iniciativa econômica, nesse contexto, há de ter uma utilidade social e há de ser exercida de maneira que não cause dano à segurança, à liberdade e à dignidade humanas[51].
Outrossim, sabemos que a Constituição Federal enuncia como um de seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade solidária (artigo 3º, inciso I, in fine). Ganha relevo, portanto, na lida com essa temática, o princípio da solidariedade. Como diz com perspicácia SARMENTO, embora diferentes, estamos irmanados em um destino comum, um caminhar em conjunto, pelo que a sociedade, de fato, não pode ser palco de concorrência entre indivíduos isolados, onde cada qual persegue projetos pessoais inteiramente antagônicos, senão que deve se erigir enquanto um rico espaço de diálogo e cooperação entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam enquanto tais[52].
Como afirmou KANT, se o fim natural de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém, o que seria uma máxima meramente negativa. Na verdade, tratar a humanidade como um fim em si “implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como meus”[53].
O avanço do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana foi tão marcante que se iniciou um profundo processo de despatrimonialização ou personalização do Direito Civil, significando dizer que a atividade privada, em todas as suas possíveis dimensões, passa a ser funcionalizada aos valores existenciais e sociais definidos no texto constitucional[54]. Ou seja, sob o foco constitucional, fica cristalino que os bens e direitos patrimoniais não constituem fins em si mesmos, devendo ser tratados, ao revés, como simples instrumentos que devem servir à realização da pessoa humana[55]. Isso é fruto daquela inversão axiológica já anteriormente tratada, decorrente da invasão dos valores constitucionais sobre o campo do Direito Civil, que agora fazem sobrepujar as pessoas sobre as coisas, o ser em detrimento do ter[56].
Outro ponto relevante é a existência das chamadas cláusulas gerais[57]. Com efeito, o legislador brasileiro, diante da insuficiência legal no trato com a dinamicidade dos fatos sociais, elegeu textos normativos semanticamente abertos justamente para facilitar a interlocução entre o Direito e a Realidade, vez que, como alertava Ripert, “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o próprio direito”. Portanto, deixando o enunciado legal em aberto, no tocante ao seu horizonte normativo, o legislador remete ao intérprete a incumbência de desenhar sua esfera de incidência à luz do caso concreto. Dessa forma, as cláusulas gerais funcionam como uma inteligente técnica legislativa destinada a manter os diplomas legais sempre naturalmente atuais, coevos[58], a ponto de, para sua adaptabilidade social, prescindir da formalidade que é inerente aos procedimentos ordinários da nomogênese legislativa[59].
Ademais, servem ainda para conferir livre trânsito à ductibilidade dos princípios constitucionais, responsáveis por orientar sua interpretação/aplicação por ocasião da incidência concreta[60]. São exemplos de cláusulas gerais no Direito Civil brasileiro a função social do contrato (artigo 421[61]), a boa fé-objetiva (artigo 422[62]) e a cláusula geral de responsabilidade civil objetiva (artigo 927, parágrafo único[63]).
Ao lado das cláusulas gerais, exsurgem também como de especial relevância os chamados conceitos legais indeterminados. Trata-se de técnica que se serve de expressões vazadas através de conceitos vagos e que o legislador lança mão com o deliberado intuito de propiciar a fácil adaptação da norma a uma realidade muito cambiante ou ainda pouco conhecida[64]. Como ensina GOMES:
“A intenção manifesta da doutrina dos conceitos indeterminados é lograr a abertura do sistema jurídico, evitando-se o seu fechamento exagerado e, pois, o seu isolamento do mundo sociocultural circundante. Com isso, propicia-se que a resolução das lides submetidas ao Poder Judiciário se aproxime o mais possível da ideia de justiça presente no meio social. A ideia, portanto, inspiradora dessa doutrina é a realização de justiça no caso concreto, ou seja: é a boa e antiga preocupação com a equidade. A técnica de usar conceitos indeterminados na norma opõe-se à casuística, pela qual são arroladas ou enumeradas as situações em que incidirá a hipótese legal, ou melhor, a regra ou a proposição veiculada na norma”[65].
Verdadeiramente, em um mundo cada vez mais dinâmico, onde os fatos sociais estão em constante estado de fervilhamento, a tarefa de reger condutas se torna inglória, restando praticamente impossível o regramento pontual, preciso, com menção a determinadas condutas específicas. Para sermos sinceros, o manuseio de conjunções de conceito fugidio, hodiernamente, revela-se mais uma imposição dos tempos do que precisamente uma opção dogmática[66]. São exemplos de conceitos legais indeterminados “ordem pública” e “bons costumes”, para caracterizar a ilicitude da condição que os ofenda (CC, artigo 122[67]), podendo-se citar, ainda, a própria locução “risco”, estampada no já citado parágrafo único, do artigo 927, do Código Civil de 2002.
Atrai especial relevo, também, nesse privilegiadíssimo cenário, o empenho pela garantia de equivalência material no âmago das relações jurídicas. Nesse campo de ideias, incorpora-se o desejo de, na perspectiva dos substantivos valores constitucionais, impor-se o dever de efetivo equilíbrio nos vínculos obrigacionais firmados entre particulares, que, de sua parte, devem servir para unir vontades tendentes a consultar ambos os interesses envolvidos, não se podendo permitir que tais sirvam como locus de opressão, enquanto “expediente de exploração do homem pelo homem”[68]. Exsurgem como exemplo da imposição de equivalência material entre as prestações os comandos normativos vazados nos artigos 478[69] e 480[70] do Código Civil.
Diante de todas as considerações já lançadas ao longo deste texto, podemos, com MONTEIRO FILHO, apontar, em resumo, os novos paradigmas da perspectiva contemporânea do Direito Civil, como segue: (i) identificação do marco axiológico supremo do ordenamento jurídico na dignidade humana e na solidariedade; (ii) aplicação direta dos princípios e valores constitucionais às relações privadas (independentemente da existência de norma infraconstitucional), a permitir a abertura e, ao mesmo tempo, a unidade interpretativa do sistema jurídico; (iii) distinção e prevalência, nas situações de conflito, dos valores não patrimoniais sobre os patrimoniais, por opção, democrática, do Poder Constituinte; (iv) funcionalização dos institutos jurídicos à tábua axiológica da Constituição, com a submissão de todas as situações jurídicas subjetivas a controle de merecimento de tutela, com base no projeto constitucional; (v) valorização da situação concreta e de suas especificidades sob a perspectiva da isonomia substancial, buscando-se tutelar, ao máximo, as diferenças (proteção especial aos idosos, crianças, adolescentes, portadores de necessidades especiais etc.); (vi) superação definitiva da dicotomia público-privado, proporcionando a interpenetração das searas e a redefinição permanente da noção de ordem pública; (vii) consagração da função social das instituições jurídicas, notadamente o contrato e a propriedade – o direito passa a ser visto sob a perspectiva mais ampla da sua função promocional[71].
Dessa forma, o Direito Civil pátrio passa a integrar um sistema hipercomplexo, “em constante interação com a mutabilidade social, tendo no ápice a Constituição, que inspira a interpretação do Código Civil e sua interlocução com a legislação especial e os microssistemas jurídicos”[72].
É evidente que existem inúmeros aspectos da constitucionalização do Direito, em especial com relação ao Direito Civil, que aqui não foram objeto de referência. Mas o quadro desenhado já é mais que suficiente para alcançar nosso atual objetivo: demonstrar que a força irradiadora dos valores constitucionais conformaram a atuação do legislador ordinário, mais especificamente quando forçou vir à baila o Código Civil de 2002, que, de sua parte, cimentou sua normatividade na perspectiva de que as relações jurídicas de direito privado devem ser interpretadas à luz da Constituição, “seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade, princípio capaz de conformar um novo conceito de ordem pública, fundado na solidariedade social e na plena realização da pessoa humana”[73].