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Acumulação ilícita de cargos públicos e o direito de opção

01/10/2001 às 00:00
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O processo administrativo disciplinar para apuração de acumulação ilegal de cargos passou, com a edição da Lei nº 9.527, de 1997, a desenvolver-se sob novo rito, denominado de procedimento sumário, que se desenvolve em fases idênticas ao do rito comum, possuindo, entretanto, prazos abreviados para o seu desenvolvimento, conclusão e julgamento, que não poderão exceder trinta dias, admitindo-se, excepcionalmente, sua prorrogação por até quinze dias se circunstâncias imperiosas o exigirem.

A principal novidade trazida pela Lei nº 9.527/97, entretanto, não diz respeito ao rito do processo, mas sim à inusitada e reprovável oportunidade que é dada ao servidor antes da instauração do processo, de optar por um dos cargos em regime de acumulação, e de caracterizar, com esse ato, sua boa-fé, impedindo, com isso, o prosseguimento da ação disciplinar. Assim, embora a acumulação de cargos públicos seja proibida pela Constituição Federal, e seja, ainda, causa ensejadora da aplicação da penalidade de demissão do cargo, conforme dispõe o art. 132, inciso XII, da própria Lei nº 8.112/90, o processo disciplinar somente pode ser instaurado depois de ter sido oferecida ao servidor a oportunidade de optar por um dos cargos, hipótese em que restará configurada, com esse ato apenas, sua boa-fé, e, em conseqüência, o processo sequer será iniciado. É o que dispõe o art. 133 da Lei nº 8.112/90: "Detectada a qualquer tempo a acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas, a autoridade a que se refere o art. 143 notificará o servidor, por intermédio de sua chefia imediata, para apresentar opção no prazo improrrogável de dez dias, contados da data da ciência e, na hipótese de omissão, adotará procedimento sumário para a sua apuração e regularização imediata". A nova disciplina jurídica vai ainda mais longe, ao ponto de permitir que mesmo após o processo ter sido instaurado, o servidor tenha nova oportunidade de optar por um dos cargos, escolha que pode ser manifestada até o último dia do prazo para apresentação da defesa (§ 5º do art. 133), e que redundará no imediato arquivamento do processo, por perda de objeto.

Com essa nova disciplina jurídica, jamais comissão alguma conseguirá comprovar a má-fé do servidor que se encontre acumulando cargos ilicitamente, já que a sua opção por um dos cargos dentro do prazo estabelecido pela lei caracterizará sua boa-fé e ensejará a não instauração do processo, ou, caso isso já tenha se verificado, no seu imediato arquivamento. Nenhum servidor, evidentemente, deixará de fazer a opção por um dos cargos dentro do prazo que lhe é facultado, pois se assim o fizer, verá o processo seguir seu curso até o final, quando então ser-lhe-á aplicada a pena de demissão em relação aos dois cargos. É óbvio que o servidor fará opção antes de se iniciar o processo ou durante o prazo da defesa. Em outras palavras, nunca, servidor algum será punido por ter acumulado cargos, empregos ou funções públicas, reduzindo-se, com isso, a letra morta a proibição constitucional de se acumular cargos públicos. Casos haverá, por certo, em que o servidor acumulará cargos públicos durante um, dois, cinco ou dez anos com a mais nítida má-fé, até que a situação irregular seja detectada pelos órgãos de controle e a ele seja formulado um convite para optar por um dos cargos, resolvendo-se, com isso, a situação ilícita, sem que o mesmo fique sujeito a demissão ou à obrigação de ressarcir os valores recebidos indevidamente durante anos.

É fácil perceber que os dispositivos da Lei nº 8.112/90 que prevêem tal opção são inconstitucionais, merecendo, por isso, sua imediata revogação ou a decretação de sua invalidade pelas vias judiciais adequadas. A opção em destaque além de afrontar a Constituição Federal, é um verdadeiro incentivo à acumulação ilegal de cargos, pois somente após a constatação da situação irregular é que o servidor será convidado a optar por um deles, e receberá, ainda, como prêmio, o esquecimento do passado, ficando dispensado de repor os valores recebidos ilegalmente. Tais valores, indevidamente recebidos durante anos, transmudam-se assim, de uma hora para outra, de ilícitos em lícitos, o que, evidentemente, repugna ao bom senso. Uma simples opção, evidentemente, não pode ter o condão de regularizar o passado irregular. Atos inconstitucionais não podem ser legitimados por meio de lei ordinária, a menos que se pretenda subverter a ordem jurídica constitucional.

Tem sido utilizado o argumento de que essa opção visa evitar o enriquecimento sem causa do Estado que usufruiu do trabalho do servidor durante algum tempo, não podendo, por isso, exigir a restituição dos valores que lhe foram pagos, pois tais verbas representam apenas a retribuição pelo trabalho efetivamente prestado. Tal argumento não se sustenta. Se a acumulação é ilícita, qualquer remuneração paga ao servidor também é ilícita. Enriquecimento sem causa haverá em relação ao servidor, se este não devolver as quantias que recebeu de maneira indevida durante o tempo que permaneceu em estado ilegal de acumulação.

A dispensa dos valores indevidamente recebidos deveria destinar-se apenas aos casos em que ficasse constatada a verdadeira boa-fé do servidor, como por exemplo nos casos em que pairasse dúvida razoável sobre a natureza jurídica dos dois cargos, e de sua possível acumulação legal. Admitir, entretanto, por presunção legal, que a boa-fé pode ser obtida por meio de uma simples opção, é atentar contra a razoabilidade, além de servir como verdadeiro incentivo legal para a prática de atos que são proibidos pela Constituição Federal. Ora, se o servidor é obrigado a declarar no ato de sua posse que não acumula cargos públicos, como fazer, posteriormente, vista grossa a essa afirmação? Se prestou declaração falsa ele cometeu crime. Não é, portanto, juridicamente razoável que, constatada a acumulação, as declarações prestadas no ato da posse não sirvam para absolutamente nada. Suprima-se, então essa exigência.

Parece-me, portanto, que as regras anteriormente vigentes eram mais consentâneas com a Constituição Federal pois, constatada a legítima e verdadeira boa-fé - não essa admitida por presunção - oferecia-se ao servidor a oportunidade de optar por um dos cargos, hipótese em que era dispensado da devolução dos valores, que, embora indevidos, foram percebidos sem dolo ou má-fé. Entretanto, constatada sua má-fé, o servidor ficava sujeito à demissão dos dois cargos, além de ter que ressarcir as quantias que recebeu indevidamente ao longo da acumulação. A opção ora instituída por lei fere os bons propósitos que levaram o constituinte a proibir a acumulação de cargos públicos, qual seja, o de evitar que poucos cidadãos monopolizem a ocupação desses cargos para obterem duplo ganho, sem a dedicação necessária para o exercício de cada um deles, trazendo reflexo negativo na prestação do serviço público. A lei que a instituiu, é, portanto, flagrantemente inconstitucional, merecendo, por isso, sua imediata revogação ou correção pelas vias judiciais adequadas. Boa-fé não se adquire por meio de opção.

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Sobre o autor
Izaías Dantas Freitas

advogado em Brasília e assessor do Procurador-Geral do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Izaías Dantas. Acumulação ilícita de cargos públicos e o direito de opção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2182. Acesso em: 24 nov. 2024.

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