SUMÁRIO: Introdução; 1. O Mercosul e o sistema constitucional tributário brasileiro; 2. Os sistemas tributários da Argentina, Paraguai e Uruguai; 3. Harmonização tributária no Mercosul; 3.1. A estrutura básica do IVA na Argentina; 3.2. A estrutura básica do IVA no Paraguai; 3.3. A estrutura básica do IVA no Uruguai; 3.4. O sistema tributário brasileiro e a necessidade de reforma; 4. O tratamento tributário dos preços de transferência no Mercosul; 5. Considerações finais; Referências.
1. Considerações Iniciais
As derradeiras décadas do século XX e o limiar deste século têm oferecido uma realidade que se impõe de forma arrebatadora: a globalização. Uma era de integração regional e mundial que se faz sentir sob os mais diversos prismas, ainda que o fator econômico seja o carro-chefe por excelência deste modelo de integração mundial, reforçado pela ascensão e consolidação das empresas transnacionais e pelo acirrado movimento de integração dos mercados.
As fases política e econômica da globalização são apresentadas em meio a um discurso único e total que pretende não só a integração dos mercados, mas principalmente a consolidação do processo de internacionalização do capital[1]. Um processo que tem reforçado sobejamente a importância do debate acerca da tributação internacional e do estudo do Direito Tributário comparado.
O lugar destacado do Direito Tributário comparado tem explicação imediata nos processos de regionalização e globalização da economia. A regionalização da economia, por meio dos chamados blocos comerciais ou zonas de livre comércio, tem-se colocado na ordem do dia, impulsionando uma agenda política e econômica inteiramente voltada para o comércio internacional de bens, serviços e capitais “entre mais de uma centena de blocos comerciais conhecidos ao redor do mundo, segundo informam as estatísticas da Organização Mundial do Comércio – OMC”[2].
O presente trabalho procura discutir algumas questões referentes à tributação no Mercado Comum do Sul – Mercosul, instituído pelo Tratado de Assunção assinado em 1991, do qual são atualmente signatários a República Federativa da Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai. A partir do método sincrônico de análise comparativa, pretende-se analisar determinados institutos tributários que compõem os sistemas jurídicos[3] dos Estados-partes signatários do Tratado de Assunção, procurando estabelecer pontos de similitude e dissonância, na intenção de discutir as possibilidades de uma futura e necessária harmonização tributária no Mercosul.
Antes de ter início o estudo comparativo acerca das peculiaridades que compõem os sistemas tributários dos Estados-partes do Mercosul, parece oportuno uma breve incursão em algumas questões centrais do Tratado de Assunção, bem como a discussão concernente à harmonização jurídico-tributária entre as regras dispostas no Tratado de Assunção e o sistema constitucional brasileiro.
2. O Mercosul e o sistema constitucional tributário brasileiro
O Tratado de Assunção, assinado em 26.03.1991, tem por finalidade a constituição de um mercado comum entre os quatro países signatários, com livre circulação de bens, serviços e fatores de produção. Segundo disciplina o ordenamento jurídico brasileiro, sua aprovação foi dada pelo Congresso Nacional, conforme o Decreto-Legislativo n° 197, de 25.09.1991, com sua posterior promulgação por meio do Decreto Federal n° 350, de 21.11.1991.
Transcende os limites do presente estudo a discussão político-econômica acerca das vantagens e desvantagens para o Brasil do processo de integração regional do Mercosul. Este processo pode ser encarado como “um esforço importante de compatibilizar a agenda interna e a agenda externa da modernização… porque tem como horizonte a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais”, horizonte este que “aproxima os atores representativos dos fatores de produção – os empresários e os trabalhadores – e os atores governamentais, num processo de negociação continuada”[4]. Por outro lado, também pode ser analisado como a integração de um mercado onde o Brasil representa mais de 3/4 (três quartos) do total, com mais de 75% (setenta e cinco por cento) do espaço comunitário populacional, que será posto em comum para a disputa de 25% (vinte e cinco por cento) restante do mercado, oferecido pelos demais países[5].
A tributação no Mercosul tem sido tema central de várias discussões e estudos aprofundados, como é o caso do XXII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária, quando foram enfrentados alguns dos pontos mais polêmicos da política tributária do Mercosul. Quanto à incorporação do Tratado de Assunção pelo ordenamento constitucional brasileiro, uma primeira questão formulada se refere a sua eficácia, à luz do artigo 5°, § 2° da Constituição de 1988[6], no caso de conflito com outros tratados tributários em que o Brasil seja signatário.
Há que se considerar, primeiramente, que o disposto no artigo 5°, § 2° da Constituição de 1988 está a salvo de investidas tanto do legislador constituinte reformador, como do legislador infraconstitucional, em virtude da blindagem constitucional disposta no artigo 60, § 4°, IV da Constituição de 1988, que disciplina as chamadas cláusulas pétreas. Entretanto, não se pode olvidar que em matéria tributária, ressalvados os princípios constitucionais[7] tributários, as matérias relativas a regimes jurídicos, alíquotas, incidência, etc., não se constituem em cláusulas pétreas, podendo sofrer restrições e alterações tanto pelo legislador constituinte reformador como pelo legislador infraconstitucional.
Segundo José Eduardo Soares de Melo, não se pode negar a eficácia das disposições constantes do Tratado de Assunção, por conta do disposto no artigo 5°, § 2° da Constituição de 1988. Para o caso de antinomia entre o Tratado de Assunção e tratados anteriormente assinados pelo Brasil, não sendo possível conciliar as legislações conflitantes, há que se reconhecer a prevalência daquele, por conta do princípio segundo o qual a lei posterior revoga a anterior[8].
Por outro lado, conforme sustenta Marco Aurélio Greco, no caso de conflitos entre o Tratado de Assunção e outros tratados que tenham o Brasil como signatário, quando celebrados pelas mesmas Partes, ocorrerá ou denúncia implícita ou revisão do tratado anterior, aplicando-se os critérios de resolução de conflito aparente de normas, quais sejam os critérios cronológico e de especialidade. Não coincidindo as mesmas Partes, estar-se-á perante documentos distintos regulando relações diversas, entre diferentes entidades de Direito Internacional, o que afasta, em tese, a possibilidade de conflito[9].
Outra questão discutida pela doutrina especializada acerca da relação entre o Tratado de Assunção e o sistema tributário brasileiro refere-se ao tratamento das operações com mercadorias originárias dos demais países do Mercosul, considerando o disposto nos artigos 1°, 5° e 7° do Tratado de Assunção[10] e a legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Se devem ser tratadas como operações de “importação”, sujeitas à alíquota interna, ou se terão tratamento equiparado às operações “interestaduais”, sujeitas a mesma alíquota aplicável às operações interestaduais ou apenas a uma complementação de alíquota.
Segundo defende José Augusto Delgado, as operações com mercadorias oriundas dos demais países do Mercosul constituem-se em operações de “importação”, sujeitas ao tratamento que o Direito interno fixa para fins de aplicação do ICMS, havendo “necessidade de um acordo específico para que tais operações deixem de ser consideradas como sendo de importação de mercadoria e, conseqüentemente, recebam o mesmo tratamento que é seguido para as operações interestaduais”[11].
Muito embora admita que, enquanto existirem fronteiras e “desembaraço aduaneiro”, as mercadorias oriundas dos demais países do Mercosul devem ser consideradas “importadas”, ocorrendo o fato gerador do ICMS, Greco sustenta que o artigo 7° do Tratado de Assunção impõe, positivamente, que os produtos advindos dos países do Mercosul tenham “o mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional”, o que exige a mesma carga tributária, havendo “uma ‘equalização’ da carga tributária de ICMS”. Neste sentido, a tributação das importações dos demais países do Mercosul deverá ser a aplicável às operações interestaduais, primeiro, porque são mercadorias que advêm de fora do Estado-Membro; segundo, porque a carga tributária interna é aplicada às mercadorias importadas em geral, sob a justificativa de que o fato gerador da obrigação tributária ocorreria no território do Estado-Membro, o que não pode ser aplicado aos países do Mercosul, por conta do processo de integração progressiva e da regra do citado artigo 7°; terceiro, porque exigir a alíquota interna, indiscriminadamente, seria submeter aquelas mercadorias oriundas do Mercosul a ônus tributário superior ao aplicado às mercadorias provenientes de outros Estados da Federação[12].
Um outro ponto que merece algumas ponderações se refere à possibilidade de o Tratado de Assunção ou acordos complementares disciplinarem acerca de tributos estaduais e municipais, inclusive concedendo isenções nessas esferas, o que discreparia da regra contida no artigo 150, III da Constituição de 1988. Segundo Kiyoshi Harada, na consecução do interesse do Estado brasileiro, “a União, enquanto órgão de representação perante os Estados estrangeiros (art. 21, I, da CF), pode firmar Tratados e Convenções disciplinando tributos estaduais e municipais, inclusive concedendo isenções”. Conforme este autor, a proibição do artigo 150, III não está endereçada à União enquanto órgão de representação do Estado brasileiro, mas sim no plano interno, enquanto entidade componente da Federação[13].
De forma diversa, entendendo que a disciplina de tributos estaduais e municipais pelo Tratado de Assunção somente poderá ser aceita se merecer aprovação de legislação estadual, salvo se for admitida a supremacia do Direito comunitário, Delgado assevera que sem “o consentimento dos Estados e Municípios, por legislação própria, não pode o Tratado de Assunção ou Acordos complementares ou posteriores a ele vinculados cuidar de isenção de tributos estaduais e municipais”[14].
Inegavelmente, a harmonização tributária no Mercosul é tema deveras complexo e controverso, sobretudo se analisadas as consideráveis disparidades entre os sistemas tributários dos países signatários do Tratado de Assunção. Na Federação brasileira, as competências impositivas dos Estados-Membros e dos Municípios, que são entidades federadas, suplantam sobremaneira a complexidade jurídico-política dos modelos argentino, paraguaio e uruguaio. Enquanto nestes países os tributos indiretos estão na competência do poder central, no Brasil os Estados-Membros detêm a competência sobre o principal tributo indireto, o ICMS. Ademais, o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISQN, que vem ganhando considerável importância na economia nacional e mundial, impulsionado pelo crescimento do chamado setor de serviços, pertence aos Municípios, constituindo-se em imposto fundamental às grandes municipalidades da Federação, base da autonomia financeira e administrativa conferida pela Constituição de 1988 a estas entidades federadas.
3. Os sistemas constitucionais tributários da Argentina, Paraguai e Uruguai
Nos itens seguintes serão abordadas algumas das temáticas mais relevantes e complexas acerca dos sistemas tributários dos países do Mercosul, a saber: a estrutura do Imposto sobre Valor Agregado – IVA na Argentina, Paraguai e Uruguai, a necessidade de reforma tributária no ordenamento constitucional brasileiro, bem como a regulação dos preços de transferência nos Estados-Partes do Mercosul. Impende, por hora, sejam tecidas algumas breves considerações acerca de especificidades dos sistemas constitucionais tributários dos países que, juntamente com o Brasil, assinaram o Tratado de Assunção para a integração regional do Mercosul.
A organização política da República Federativa da Argentina, segundo dispõe o artigo 1° da Constitución de la Nación Argentina[15], adota para seu governo a forma representativa republicana federal, existindo “três níveis de imposição: a Nação, as Províncias e os Municípios. Cada um deles é titular de poderes tributários para efeitos de estabelecer gravames”[16].
A base do sistema tributário argentino é composta por três espécies tributárias, os impostos, as taxas e as contribuições de melhorias. Os impostos são prestações patrimoniais geralmente exigíveis em dinheiro, sem contraprestação específica, usados na satisfação de necessidades coletivas. As taxas, por sua vez, são prestações em dinheiro devidas em virtude da prestação de um serviço público aproveitado pelo destinatário. As contribuições de melhoria constituem-se em prestações pecuniárias devidas por quem experimentou um acréscimo no valor de seu bem em razão de uma obra pública[17].
Vale acrescentar, conforme dispõe o artigo 75, 2 da Constitución de la Nación Argentina[18], que os impostos podem ser diretos ou indiretos. Os impostos diretos podem ser praticados pelo Estado Federal, por tempo determinado, em proporções iguais em todo o território da Nação, quando exigível para a defesa, segurança comum e bem-estar geral do Estado. Os impostos indiretos, que incidem sobre o consumo, podem ser externos (direitos aduaneiros), de competência federal, e internos, de competência concorrente entre o Estado Federal e as Províncias[19].
A República do Paraguai constitui-se em Estado unitário, descentralizado, sendo que, conforme dispõe o artigo 156 da Constitución de la República de Paraguay[20], sua estrutura política e administrativa é formada por Departamentos, Municípios e Distritos, os quais, nos termos da Constituição e das leis, gozam de autonomia política, administrativa e normativa para a gestão de seus interesses, e autogestão na arrecadação e aplicação de seus recursos.
Os impostos, taxas e contribuições formam a base do sistema tributária paraguaio, pelo que se infere do artigo 178 da Constitución de la República de Paraguay, sendo que os princípios tributários da legalidade, tipicidade, vedação do confisco e da bi-tributação, bem como a isonomia e capacidade contributiva, constituem-se em princípios constitucionais expressos.
O artigo 169 da Constitución de la República de Paraguay[21] prevê o imposto imobiliário, um tributo direto incidente sobre a propriedade imóvel, a ser arrecadado pelos Municípios, sendo que sua receita deverá ser repartida entre o Município que o arrecada, o respectivo Departamento e os Municípios de menores recursos, conforme determinação da legislação específica.
A partir de 1992, o IVA foi incorporado ao sistema tributário paraguaio, trazendo profundas alterações na legislação e sistemática tributária nacional. Como será analisado abaixo, os fatos geradores deste imposto são a alienação de bens, a importação de bens e a prestação de serviços.
Do ponto de vista político-administrativo, a República do Uruguai constitui-se em Estado unitário, dividido em Departamentos, sendo o Poder Executivo exercido pelo Presidente da República. O Governo dos Departamentos é exercido por uma Junta Departamental e por um Intendente, conforme dispõe o artigo 262 da Constitución de la República Oriental del Uruguay[22].
O sistema tributário uruguaio tem por espécies tributárias básicas os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria, com predominância dos “impostos indiretos, especialmente ao consumo, sobre os diretos à renda e ao patrimônio, sendo entre aqueles o IVA o mais significativo”[23].
O Uruguai foi um dos primeiros países a implantar um tipo de gravame sobre o consumo nos moldes do IVA, originariamente instituído pela Lei n° 13.637/67, com a denominação de Impuesto a las Ventas y Servicios, reestruturado posteriormente pela Lei n° 14.100/72, que continua vigente, não obstante as reiteradas alterações. Trata-se de imposto importantíssimo na estrutura fiscal uruguaia, uma vez que representa mais de 50% da receita tributária daquele país[24].
Também de considerável importância é o Impuesto Específico Interno, que corresponde a 24% da arrecadação fiscal. Trata-se de um imposto indireto, seletivo e monofásico, incidente sobre a primeira alienação a qualquer título de determinados bens indicados por lei, selecionados por sua natureza suntuosa ou por razões de interesse geral[25].
Feitas estas breves considerações acerca dos sistemas tributários dos países que, juntamente com o Brasil, assinaram o tratado de Assunção para a integração regional do Mercosul, pode-se passar para o estudo mais detido acerca do IVA em cada um dos Estados-Partes, bem como das necessárias reformas no sistema tributário brasileiro, a fim de alcançar a imprescindível harmonização tributária no Mercosul.
4. Harmonização tributária no Mercosul
O artigo 7° do Tratado de Assunção prevê, expressamente, a necessidade de que o processo de integração regional do Mercosul seja marcado pelo princípio da reciprocidade, que exige, entre outras coisas, a igualdade de tratamento entre os produtos nacionais e os originários dos outros Estados-Partes. No mesmo sentido, a harmonização da legislação dos Estados-Partes é previsão explícita contida no artigo 1° do Tratado do Mercosul, sendo que o processo de integração certamente está vinculado à harmonização da legislação tributária dos países signatários.
Neste processo de harmonização tributária, a discussão acerca dos impostos gerais sobre o consumo ganha lugar destacado. A integração econômica do Mercosul passa, sem dúvida, pela conformação dos sistemas de impostos incidentes sobre o consumo, pela técnica de imposição do valor agregada, usados pelos países signatários do Tratado de Assunção. Como refere Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, este desiderato ensejou a produção do Informe sobre la armonización de los impuestos generales al consumo en el Mercosur, elaborado pela Comissão de Aspectos Tributários, integrada por representantes dos Governos dos países signatários do bloco. Nele são tecidas as seguintes considerações:
Nos processos de integração econômica caracterizados pela fusão dos mercados nacionais mediante a eliminação das barreiras aduaneiras e restrições não-tarifárias, com o propósito de assegurar a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos [pessoas e capitais], a harmonização dos impostos ao consumo – gerais, seletivos ou específicos –, resulta necessária para possibilitar essa livre circulação em relação a bens e serviços, associando-se à formação mesma de um mercado ampliado baseado na livre concorrência dos produtos dos países associados, por sua vinculação direta com os mecanismos centrais do processo.
Dado que tanto os impostos gerais ao consumo como os seletivos ou específicos se desenham de forma que se transportem de forma direta aos preços [pelo método da imposição do valor agregado], com o fim de assinalar a carga tributária que suportam os consumidores finais, resulta evidente que as diferenças que se registre na modalidade técnica adotada por aqueles países para estruturá-los, assim como os critérios e níveis de imposição aplicados, podem distorcer as condições de concorrência que devem imperar no mercado ampliado, ao afetar de forma direta a formação de custos e preços dos bens suscetíveis de intercâmbio[26].
A técnica de imposição do valor agregado nos impostos incidentes sobre o consumo é usada, com maior ou menor extensão, por todos os países signatários do Tratado de Assunção, muito embora com pontos de diferença em determinados aspectos. Na Argentina, Paraguai e Uruguai, a competência para aplicar o IVA é deixada aos Governos centrais, enquanto no Brasil há um amplo imposto seletivo, o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, de competência da União Federal, e um amplo imposto sobre o consumo, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal – ICMS, deixado à competência dos Estados Federados e do Distrito Federal, além de um imposto sobre serviços, o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISQN, cuja incidência se dá em “cascata”, de competência municipal.
Adiante serão analisadas algumas peculiaridades dos sistemas de tributação dos países do Mercosul, quanto à técnica de imposição do valor agregado, a fim de analisar até que ponto o processo de integração passa, necessariamente, pela via da reforma constitucional do sistema tributário brasileiro, ou se uma ampla reforma tributária infraconstitucional possibilitaria a condução do processo de integração regional do Mercosul.
4.1. A estrutura básica do IVA na Argentina
O IVA passou a fazer parte do sistema tributário argentino a partir de 1974, configurando-se em um imposto indireto de ampla incidência sobre todas as transações do processo de produção e circulação de bens e serviços, sendo que a imposição fiscal não alcança o valor total do bem ou serviço, mas sim apenas o valor acrescido por cada etapa de sua fabricação e comercialização.
Neste sentido, o IVA argentino apresenta como traços característicos principais seu caráter indireto, real, não piramidal, plurifásico e não-cumulativo. Trata-se de um imposto indireto porque incide economicamente sobre o consumidor final, sendo típico imposto sobre o consumo; diz-se ser um imposto real porque não considera condições pessoais do sujeito passivo da tributação; não apresenta como efeito comum o aumento do preço final do bem ou serviço superior ao imposto arrecadado pela fazenda pública, como é característico nos impostos indiretos em cascata; trata-se de imposto plurifásico e não-cumulativo, uma vez que a incidência do tributo acompanha todas as fases de fabricação e comercialização dos bens e serviços, incidindo apenas no valor agregado em cada fase[27].
Ademais, conforme sustenta Alejandro C. Altamirano, o IVA argentino se apresenta como um imposto de fácil controle, porquanto possibilita a aplicação de mecanismos aptos à redução considerável da evasão fiscal, constituindo-se, ainda, em imposto que favorece o processo de integração econômica internacional, na medida em que não se aplica em cascata e possibilita quantificar a exata carga fiscal interna, que pode ser restituída pelo regime de crédito em operações de exportação, quando a carga tributária não possa ser repassada para o bem ou serviço exportado[28].
A alíquota do IVA está fixada em 18%, sendo que o Poder Executivo central pode reduzi-la ou ampliá-la em até seis pontos percentuais, por razões de interesse nacional. Suas hipóteses de incidência[29] são as vendas em geral, assim consideradas toda transferência a título oneroso que represente a transmissão do domínio de coisa móvel, as obras, locações e prestações de serviços. Incide, ainda, sobre importações definitivas de coisas móveis, ou seja, aquelas importações destinadas ao consumo, excetuadas as importações temporárias, nos termos da lei[30].
Conforme dispõe o artigo 4° da Ley del Impuesto al Valor Agregado, os sujeitos passivos do imposto são as pessoas físicas e jurídicas que tenham habitualidade na venda de coisas móveis, que realizem atos de comercio casuais, bem como os herdeiros e legatários de responsáveis inscritos quando alienem bens do autor da herança ou testador; aqueles que realizem em nome próprio, compra e venda por conta de terceiros; aqueles que importem definitivamente coisas móveis em seu nome, para si ou por conta de terceiros; empresas construtoras de obras; prestadores de serviços listados; aqueles que pratiquem locações listadas; uniões transitórias, consórcios e associações de empresas que não possuam personalidade jurídica. Em um sentido mais amplo, ressalvadas as exceções legalmente previstas, pode-se dizer que os contribuintes do IVA argentino são os comerciantes, industriais, importadores e prestadores de serviço em geral.
No que toca à configuração do fato imponível que desencadeia o nascimento da obrigação tributária, a legislação do IVA especifica um sistema de regras gerais para cada hipótese de incidência, sendo que estão regulamentadas uma série de exceções, com disposições específicas para a configuração de determinados fatos imponíveis[31].
Ponto relevante na estrutura do IVA argentino se refere às operações de exportação. Em matéria de operações de comércio exterior, a Lei do IVA adotou o sistema do “país de destino”, gravando com o ônus tributário as importações definitivas e isentando as exportações, o que garante aos exportadores créditos fiscais decorrentes do pagamento de impostos por operações ligadas à aquisição de bens e serviços vinculados efetivamente à exportação. No caso de créditos fiscais por conta de exportação, pode haver tanto a compensação com o IVA devido ou com outros impostos, bem como a transferência de créditos, sendo que tais procedimentos são implementados ante a “Dirección General Impositiva”, que corresponde à Receita Federal brasileira[32].
4.2. A estrutura básica do IVA no Paraguai
O Paraguai implementou uma ampla reforma tributária no ano de 1991, sendo que o seu aspecto central foi a incorporação do IVA ao sistema tributário nacional, por meio da Ley n° 125/92, caracterizando-se a exação por ser plurifásica, não-cumulativa, tipo de valor agregado essencialmente econômico, incidindo em cada etapa do processo de produção e comercialização somente no valor acrescido ao bem ou serviço, de modo semelhante ao IVA argentino.
As hipóteses de incidência da tributação em exame, conforme dispõem os artigos 77 e 78 da Ley n° 125/92, são a alienação de bens, entendendo-se por alienação a transferência onerosa do direito de domínio sobre a coisa, bem como a entrega gratuita de bens a terceiros, com poderes de uso e gozo, ainda que não exista efetivamente a transferência definitiva do direito de propriedade; a importação de bens; e, a prestação de serviços, excluídos os de caráter pessoal prestados com relação de dependência.
A alíquota fixada em lei é de 10%, sendo que o Poder Executivo pode estabelecer alíquotas menores que o limite fixado, dispondo para cada atividade o percentual diferenciado da alíquota ou a redução da base de cálculo do imposto. A alíquota diferenciada foi fixada, por exemplo, para o transporte internacional prestado em jurisdição paraguaia, transporte de bens por qualquer meio, transporte de pessoas, importações de determinados produtos, bens usados, transporte terrestre urbano de passageiros[33].
O surgimento da obrigação de pagar o IVA, conforme dispõe o artigo 80 da Ley n° 125/92, ocorre: a) para o caso de alienação de bens móveis, com a entrega do bem, a emissão da fatura ou ato equivalente, para o caso do uso ou consumo de bens, o momento da retirada dos bens; b) para as importações, no momento da abertura do registro da entrada dos bens na Aduana; c) na prestação de serviços, com a emissão da fatura correspondente, o recebimento total ou parcial do pagamento do serviço a ser prestado, o vencimento do prazo para pagamento com a conclusão do serviço.
Como já referido, o IVA paraguaio constitui-se em exação fiscal plurifásica e não-cumulativa, um imposto sobre o consumo em que o único destinatário é o consumidor final do produto ou serviço. Possui, portanto, a particularidade de gerar débitos e créditos, devendo o contribuinte recolher apenas a diferença entre ambos. Os sujeitos passivos do IVA são as pessoas físicas prestadoras de serviços, as empresas que desempenhem atividades industriais, comerciais ou de serviços, as autarquias e empresas públicas, bem como os importadores[34].
No que toca à liquidação, o imposto é liquidado mensalmente e é determinado “pela diferença entre o ‘débito fiscal’ e o ‘crédito fiscal’, a regra geral é a irrecuperabilidade do mesmo e, a obrigação de utilizá-lo nas sucessivas compensações, acumulando os créditos emergentes mês a mês”[35].
À semelhança do sistema argentino, na estrutura do IVA paraguaio as exportações estão livres da imposição tributária, uma vez que a legislação optou pela incidência do imposto no país de destino dos bens ou serviços, motivo pelo qual as exportações estão sujeitas à alíquota zero. Os créditos gerados pela compra de bens incidentes direta ou indiretamente na elaboração do produto de exportação, pelos mecanismos de devolução previstos, devem ser reembolsados em um prazo não superior a 60 (sessenta) dias, a fim de manter a intangibilidade da alíquota zero[36].
Afora o caso das exportações, existe uma série de outros casos de exoneração do IVA, como produtos agropecuários em estado natural, moeda estrangeira, títulos de valores públicos e privados, ações, bilhetes de apostas, combustíveis derivados de petróleo, bens havidos por herança a título universal, várias espécies de importações, livros, periódicos e revistas, entidades educacionais reconhecidas pelo Congresso Nacional ou pelo Ministério da Educação, partidos políticos, entidades de assistência, ciência e cultura em geral, associações, fundações e entidades religiosas reconhecidas pela autoridade competente, empréstimos e depósitos realizados por instituições financeiras compreendidas pela Lei dos Bancos, operações entre as cooperativas e seus associados, etc[37].
Ainda que a legislação do IVA paraguaio cumpra um dos supostos básicos da forma pura dos impostos sobre o valor agregado, qual seja a uniformidade de alíquotas para as hipóteses de incidência tributária, a outra exigência referente à aplicação generalizada da exação a toda alienação de bens móveis e serviços, não vem sendo observada a contento, como resta patente da extensa lista de exonerações. A política das exonerações pode acarretar uma situação de injustiça fiscal e afronta ao princípio da igualdade, sobretudo pela desenfreada acumulação de créditos tributários por alguns segmentos, em virtude do sistema de reembolso dos créditos fiscais decorrentes de alienações exoneradas da tributação.
4.3. A estrutura básica do IVA no Uruguai
Conforme anteriormente frisado, o Uruguai foi um dos primeiros países a instituir um imposto sobre o consumo nos moldes do IVA, inicialmente regulado pela Ley n° 13.637/67, denominado Impuesto a las ventas y servicios, amplamente reestruturado por meio da Ley n° 14.100/72, que continua vigente.
À semelhança dos modelos argentino e paraguaio, o IVA uruguaio constitui-se em imposto indireto incidente sobre o consumo, sendo que a exação fiscal recai integralmente sobre o consumidor final dos bens e serviços prestados. Da mesma forma, trata-se de exação plurifásica, não-cumulativa, gravando o valor agregado em todas “as etapas do circuito econômico e que se liquida pelo método de subtração, sobre a base financeira, fazendo-se as deduções pelo sistema de imposto contra imposto”[38].
O sistema de alíquotas do IVA foi fixado, primeiramente, em 10% enquanto alíquota única. Com as reformas introduzidas em 1972, passou-se a impor uma alíquota básica e outra mínima, sendo que, atualmente, a alíquota básica está fixada em 23% e a mínima em 14%.
A legislação específica enumera como hipóteses de incidência do IVA a circulação interna de bens, a prestação de serviços e a introdução de bens. Por circulação interna de bens deve-se entender toda operação a título oneroso de entrega de bens com a transferência do direito de propriedade ou com a transferência da faculdade de dispor economicamente dos mesmos, como ocorre nas compras e vendas, permutas, cessões de bens, expropriações, arrendamentos de obra com entrega de materiais, promessas com transferência da posse, afetações, etc. Os serviços podem ser definidos como toda prestação onerosa que, sem constituir alienação, proporcione uma vantagem ou proveito que constitua a causa da contraprestação, como no caso de arredamentos de coisas, concessões de uso de bens imateriais, seguros, transportes, empréstimos e financiamentos. No caso das introduções de bens há que se considerar toda importação definitiva de bens para o mercado interno. Neste sentido, estão exoneradas as importações temporárias, bem como os bens que ingressam em zonas francas, depósitos francos e recintos aduaneiros, porquanto “mercado interno” deve ser entendido enquanto conceito aduaneiro e não político[39].
Uma questão que tem gerado certa controvérsia doutrinária se refere à natureza jurídica dos sujeitos passivos do IVA, se contribuintes – responsáveis por dívida própria, ou responsáveis – legalmente obrigados a pagar dívida alheia. O contribuinte é aquela pessoa, física ou jurídica, sobre a qual se verifica o fato gerador da obrigação tributária, ao passo que o responsável é aquela pessoa que, não estando na qualidade de contribuinte, está obrigado legalmente a pagar a exação e cumprir os deveres formais do contribuinte, restando-lhe os direitos de repetição[40].
Neste sentido, há que se considerar contribuintes do IVA uruguaio os comerciantes, industriais, importadores, prestadores de serviços em geral. No regime geral dos responsáveis estão incluídos, entre outros, os representantes legais e voluntários (responsabilidade tributária solidária), limitada a responsabilidade ao montante dos bens administrados, ressalvado o dolo; os sucessores comerciais e industriais (responsabilidade tributária solidária), limitada ao valor dos bens recebidos, salvo caso de dolo; os agentes de retenção ou de percepção assim designados por lei ou pela Administração Pública.
Com similaridade aos modelos argentino e paraguaio, o IVA uruguaio segue o critério de onerar os bens no país de destino, pelo que as exportações não se encontram gravadas pela imposição tributária, sendo gravadas à alíquota zero, o que garante a dedução do imposto correspondente aos bens e serviços que integram direta ou indiretamente o custo do produto exportado[41].
Uma peculiaridade estrutural do IVA uruguaio é a ausência da imposição fiscal sobre os serviços exportados, diferentemente daqueles sistemas tributários que alcançam resultados similares por meio do critério da extraterritorialidade, considerando localizados os serviços no lugar de sua utilização.
Outro ponto que deve ser ressaltado se refere ao fato de o IVA uruguaio ser um imposto de caráter nacional, estando, portanto, fora das potestades tributárias dos Governos Departamentais. Segundo sustenta Nelly Valdes, o fato de os Governos Departamentais não disporem de competência para estabelecer este tipo de imposição tributária evita uma série de percalços que vêm sendo sentidos em países como o Brasil e a Argentina, no que toca à circulação de bens e serviços no território nacional[42].
4.4. O sistema tributário brasileiro e a necessidade de reforma
O debate acerca da harmonização tributária no Mercosul, inevitavelmente, traz à baila a questão da instituição do IVA no Brasil, nos moldes dos outros Estados-Partes do Tratado de Assunção. Como já se disse, o sistema tributário brasileiro já possui uma tributação semelhante ao IVA, como são exemplos o IPI, um amplo imposto caracterizado pela seletividade, e o ICMS, o mais amplo imposto sobre o consumo.
Conforme sustenta Misabel Abreu Machado Derzi, os principais “obstáculos à instituição do IVA, no Brasil, à moda européia”, são a forma federativa de Estado e a unidade político-econômica do território nacional. Não que a forma federativa seja, de antemão, incompatível com a estrutura de um amplo imposto sobre o valor agregado, até porque é adotado por Estados federados como a Argentina e a Alemanha, muito embora a competência legislativa esteja outorgada à Federação[43].
Não se pode olvidar que o Estado brasileiro alberga uma forma federativa bastante peculiar, com três esferas de entes federados, todos gozando de autonomia administrativa, política, financeira e gerencial, com competências legislativas específicas, inclusive no que toca à tributação. Estas peculiaridades conferem ao Estado brasileiro o verdadeiro status de Federação, sobretudo com a atribuição de competência tributária a cada um dos entes federados.
A fim de satisfazer as necessidades político-econômicas das distintas ordens políticas, o que poderia ser a hipótese de incidência do IVA foi partilhado entre a União, a quem compete o IPI, os Estados-Membros e o Distrito Federal, que dispõem do ICMS, e os Municípios, com a competência tributária sobre o ISQN, “de suma relevância à economia dos principais e maiores municípios brasileiros”[44].
Muito embora seja perfeitamente possível, do ponto de vista jurídico, a estruturação de um IVA a partir do somatório das hipóteses de incidência do IPI, do ICMS e do ISQN, deixado à competência da União, não se pode negar que, tanto política como economicamente, uma reforma com este perfil apresenta-se impensável. Neste sentido, Derzi defende que a unidade político-econômica do território nacional deva ser respeitada, mantendo-se, nas operações entre diferentes Estados-Membros da Federação, a tributação na origem, “única forma adequada a uma verdadeira comunidade, por isso mesmo chamada de tributação comunitária (ou de origem)”[45].
Discutindo acerca da necessidade, ou não, de inclusão dos serviços no campo de incidência do IVA, Ozíres Lopes Filho se coloca frontalmente contrário a esse tipo de proposta de reforma tributária, que poria em risco a própria estrutura federativa introduzida na ordem constitucional brasileira a partir da Constituição de 1988, um sistema federativo que confere autonomia e competência tributária aos Estados-Membros e Municípios, portanto, incompatível com o centralismo tributário enfeixado em algumas propostas de reforma[46].
Defendendo a tributação na origem como mecanismo de vedação ao retrocesso, Derzi assegura que a manutenção de um ICMS ou mesmo um IVA estadual, com a incidência da exação no Estado de origem nas transações interestaduais, não impedirá a integração dos países do Mercosul. A manutenção da política tributária brasileira não se mostra incompatível com o processo de integração do Mercosul. Apenas numa fase mais evoluída do Bloco “é que Paraguai, Argentina ou Uruguai teriam de aceitar uma tributação no estado de origem para uma verdadeira integração de mercado”[47].
Neste sentido, a reforma tributária necessária à harmonização fiscal do Mercosul, com a criação de tributo semelhante ao IVA europeu, não passa, impreterivelmente, por uma ampla reforma constitucional, até porque uma reforma no sistema constitucional tributária para a adoção do IVA, provavelmente, deverá manter o ICMS na competência estadual e o ISQN na competência municipal, por conta de fortes questões políticas e econômicas.