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Direito Tributário comparado no Mercosul.

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5. O tratamento tributário dos preços de transferência no Mercosul

O efervescente processo de concorrência global acompanhado pelo inevitável abandono do contraposto fechamento econômico dos Estados, tudo informado pela realidade regionalizada e globalizada das economias e dos mercados, com reflexo direto nas relações entre o Direito e a Economia – Direito Econômico, Direito Comunitário e, principalmente, Direito Tributário Internacional, confere ao tratamento fiscal dos preços de transferência destacada importância no cenário de integração do Mercosul.

O preço de transferência pode ser definido como o preço praticado em operações internacionais envolvendo partes relacionadas, entendendo-se por parte relacionada a matriz, a filial, a sucursal ou a subsidiária localizada no exterior. Nas operações de importação ou exportação praticadas com partes relacionadas, o preço praticado deve ser compatível com o “preço de mercado”. Por preço de mercado entende-se o mesmo preço que seria praticado com um terceiro não relacionado. O tratamento fiscal do preço de transferência pretende evitar subfaturamentos ou superfaturamentos nas operações comerciais, criando barreiras ao processo de migração de riquezas produzidas no território nacional.

Esse é o verdadeiro objeto da legislação sobre preços de transferência, evitar que das transações comerciais internacionais entre empresas multinacionais ou transnacionais, entre empresas do mesmo grupo econômico ou até entre matriz e filial seja praticado o fenômeno da evasão de divisas.

O verbete transferpricing, do International Tax Glossary, publicado pelo Internacional Bureau of Fiscal Documentation, segundo Amaral, traz a seguinte redação:

O Preço de Transferência refere-se à determinação dos preços a serem cobrados entre empresas relacionadas – particularmente pelas companhias multinacionais – relativamente a transações entre vários membros de seu grupo (venda de bens, prestação de serviços, transferência e uso de tecnologia e patentes, mútuos, etc.). Como tais preços não são livremente negociados, os mesmos podem ser eventualmente diferentes daqueles determinados pelas forças livre de mercado, nas negociações entre partes não relacionadas[48].

A legislação pretende evitar, portanto, situações como a seguinte: determinada empresa “A”, com domicílio no Brasil, filial da empresa “B”, domiciliada no exterior, ao praticar negócio comercial com a empresa “C”, também com domicílio brasileiro, vende seu produto por R$ 100,00. O custo do produto é de R$ 60,00, sendo tributado pelo fisco brasileiro o lucro de R$ 40,00. Por meio de um mecanismo de planejamento fiscal, a empresa “A” transaciona diretamente com a empresa “B”, sua matriz no exterior, a venda do mesmo produto por R$ 70,00, que será revendido ao Brasil pelos mesmos R$ 100,00. Com a manutenção do custo em R$ 60,00, o lucro tributável no território nacional será de apenas R$ 10,00, havendo diminuição da arrecadação fiscal e deslocamento de riquezas do Estado onde está domiciliada a filial para o estrangeiro[49].

No que concerne ao tratamento tributário dos preços de transferência pelos Estados-Partes do Tratado de Assunção, há que se reconhecer que somente o Brasil possui legislação específica regulando as transações comerciais entre empresas relacionadas. Por outro lado, muito embora não haja legislação específica sobre o instituto, em todos os Estados-Partes há disposições normativas gerais que possibilitam sua aplicação.

Na Argentina, a aplicação do conceito de preço normal entre partes independentes ou princípio do operador independente (arm’s length principle), no que toca às exportações e importações de bens, já existe há muitos anos. Este princípio, de origem estadunidense, foi desenvolvido a partir de 1935 em uma regulamentação de impostos internos, segundo a qual a norma que deve ser aplicada a cada caso é a de um contribuinte não vinculado que se relacione em condições normais de mercado com outro contribuinte não vinculado. Por este princípio, a transação entre empresas relacionadas deveria ser compatível com o preço de mercado entre partes não relacionadas[50].

O princípio arm’s length foi acolhido, posteriormente, pelo Modelo de Convenções para Evitar a Bi-Tributação, emitido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE em 1963. Essa convenção foi incorporada ao ordenamento tributário argentino pela Ley n° 20.628/73, que estabelece regra geral acerca dos preços de transferência.

A referida legislação vale-se de uma presunção iuris tantum de vinculação entre as partes envolvidas. Não sendo fixado o preço ou sendo o mesmo inferior ao preço de venda no atacado no lugar de destino, considerar-se-á existente a vinculação econômica entre o exportador (argentino) e o importador (estrangeiro). Nestes casos, o preço será determinado pelo preço de mercado no país de destino, quando da venda no atacado. Da mesma forma, para o caso de preço superfaturado em importações, será considerado o preço de atacado no país de origem (estrangeiro), acrescido de gastos de transporte e seguro até a Argentina. Não sendo possível determinar o preço praticado pelo atacadista no exterior, tomar-se-á por comparação o preço praticado por empresas independentes que explorem a mesma ou similar atividade[51].

No Brasil, há legislação específica sobre preços de transferência desde a vigência da Lei n° 9.430/96, que foi regulamentada pela Portaria MF n° 95/97 e pela Instrução Normativa n° 38/97. Entretanto, desde a Lei n° 9.249/95, o Imposto de Renda[52] passou a incidir sobre os resultados mundiais das empresas. Antes ainda, nos termos do Decreto-Lei n° 1.598/77, legislação referente à chamada Distribuição Disfarçada de Lucros – DDL, o Fisco Federal já realizava a análise de eventuais disparidades de preços praticados entre partes relacionadas[53].

A legislação específica procurou traçar critérios objetivos para a aferição dos preços de transferência, inclusive com a fixação presumida de margens de lucro, presunção iuris tantum que pode ser revista por meio de procedimentos próprios junto à Receita Federal, quando caberá à empresa interessada comprovar a adequação dos preços praticados com as partes relacionadas.

Segundo defende Amaral, a questão da fixação normativa das margens de lucro, deixando ao contribuinte o dever de provar em contrário, representa uma inversão do ônus da prova não admissível pelo sistema jurídico brasileiro. Ademais, as margens fixas de lucro reguladas pela legislação nacional se afastam substancialmente da prática adotada pelos países da OCDE e também do modelo estadunidense, constituindo-se em ficção legal que parte da doutrina considera absolutamente incompatível com a sistemática normativa vigente[54].

O Paraguai ainda não conta com uma legislação específica que regule os preços de transferência. Por outro lado, a Ley n° 125/92, que estabeleceu o novo regime tributário nacional, dispõe claramente no sentido de neutralizar os efeitos negativos, do ponto de vista tributário, dos preços de transferência praticados entre empresas vinculadas e não vinculadas, sendo aplicável no âmbito das exportações, importações, atividades agroindustriais, bens retirados para uso particular, etc[55].

Da mesma forma, o Uruguai não logrou regular os preços de transferência por meio de legislação específica, ainda que o artigo 6°, 2 do Código Tributário paraguaio sirva de base normativa para a fiscalização e vedação pela Fazenda Pública de quaisquer planejamentos tributários ilegítimos, procedimentos de evasão fiscal que deverão sofrer as correções pertinentes a fim de reconstruir a realidade econômica do negócio pactuado. Os métodos para o estabelecimento dos preços de transferência no Uruguai são aqueles dispostos nos critérios usados pela OCDE[56].

Como se percebe, não só no âmbito do processo de integração econômica e harmonização da legislação tributária no Mercosul, mas também na regulação interna, há muito que se evoluir no estabelecimento de regras claras e eficazes para a disciplina dos preços de transferência. A complexidade é realmente considerável, sobretudo porque a temática afeta aos preços de transferência não fica adstrita a questões meramente jurídicas – na órbita do Direito Tributário, Financeiro e Comercial –, espraiando-se pelos campos das ciências da economia e das finanças públicas.

Trata-se, certamente, de espaço em que se deve avançar, com o estabelecimento de sistemáticas de controle de operações entre empresas relacionadas, preservando os interesses fazendários, que de resto devem estar vinculados ao interesse coletivo, sem deixar de garantir os direitos fundamentais daqueles que sofrem a incidência da legislação.

Neste sentido, a análise e estruturação conjunta da legislação dos preços de transferência pelos países do Mercosul mostra-se não só de extrema importância, mas também imprescindível, para o fortalecimento do bloco comercial, evitando o indesejável e injusto fenômeno da bi-tributação, em um processo de integração e fortalecimento institucional, político, jurídico e econômico do Mercosul.


6. Considerações Finais

A análise dos sistemas tributários dos países signatários do Tratado de Assunção constitui-se em empreitada sumamente relevante para o processo de integração do Mercosul. O estudo conjugado dos sistemas tributários do Mercosul fomenta não só a integração econômica do bloco, como também pode evitar a implementação de soluções internas para problemas supranacionais.

Neste sentido, a análise da tributação no Mercosul e a consolidação de um efetivo processo de harmonização tributária do bloco, constituem-se em pontos de crucial importância para o êxito da pretendida integração regional. No caso do Brasil, este processo de harmonização passa, primeiramente, por uma reforma tributária focada não somente no plano interno, mas, sobretudo, na preparação para o positivo diálogo entre os sistemas tributários do Mercosul.

A instituição de uma sistemática de um amplo imposto sobre o valor agregado constitui-se, inegavelmente, em instrumento essencial à formação de um mercado comum. Além de ser considerado, no plano interno, um eficaz sistema de tributação, o IVA facilita a integração com o mercado externo, sobretudo no caso de blocos econômicos ou zonas de livre comércio. Este parece ser um dos grandes desafios à ordem tributária brasileira, a instituição de um amplo imposto sobre o valor agregado, sem desfigurar o modelo de federação trazido pela Constituição de 1988, uma federação que assenta grande parcela de sua força no sistema de repartição de competências tributárias entre os entes federados.

A harmonização da sistemática de tributação sobre o consumo no Mercosul, somada à implementação de uma política conjugada de tratamento dos preços de transferência, pautada pela coordenação das administrações fazendárias internas e pela vedação da bi-tributação, são aspectos essenciais e imprescindíveis ao desejado processo de integração do Mercosul. Vencida esta primeira fase, a harmonização da tributação sobre o consumo e do tratamento fiscal sobre os preços de transferências, ainda restaria uma fase mais complexa, a harmonização dos impostos incidentes sobre a renda e o capital, uma fase que somente será alcançada quando o Mercosul estiver experimentando uma verdadeira integração de mercado.

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Direito Tributário comparado no Mercosul.: Aspectos destacados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3247, 22 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21831. Acesso em: 26 dez. 2024.

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