1. Introdução
Os recentes progressos da ciência têm trazido grandes modificações nas relações sociais e por conseqüência no Direito. Exames periciais cada vez mais exatos e complexos têm solucionado muitos processos, outrora resolvidos pelos juízes que se baseavam em suposições, indícios e presunções.
Um exemplo claro deste avanço ocorre nas ações de investigação de paternidade. A "certeza quase absoluta" do exame de DNA (99,99 %) permite que processos, antes resolvidos em favor do investigado por falta de provas, sejam julgados em favor do investigante com uma certeza que jamais existiu.
Se para os casos futuros a solução é simples, resta-nos analisar a possibilidade de que o exame de DNA seja utilizado para a resolução de processos que ficaram indefinidos em razão da prova não ser suficiente para a atribuir a paternidade ao réu. A renovação destes processos esbarra na coisa julgada e neste artigo analisaremos a possibilidade da renovação destes processos.
2. Coisa julgada
A coisa julgada é "a decisão judicial de que não caiba mais recurso" (LICC, art. 6o, § 3º). Pela coisa julgada "o direito incorpora-se ao patrimônio de seu titular por força da proteção que recebe da imutabilidade da decisão judicial".(1)
O fundamento da coisa julgada "é a necessidade de estabilidade das relações jurídicas. Após todos os recursos, em que se objetiva alcançar a sentença mais justa possível, há necessidade teórica e prática de cessação definitiva do litígio e estabilidade nas relações jurídicas, tornando-se a decisão imutável".(2)
É a coisa julgada uma das bases do direito e a imutabilidade decorrente dela é uma garantia constitucional (art. 5º, inciso XXXVI), sendo por isso direito fundamental e em razão do disposto no art 60, § 4º, inciso IV, é cláusula pétrea da Constituição.
3. Dignidade da pessoal humana
Ao lado do direito fundamental da coisa julgada, existem outros dispositivos constitucionais que precisam ser analisados para a resolução do problema.
O primeiro deles é o que estabelece entre os princípios constitucionais fundamentais, o princípio da dignidade humana (art. 1o da Constituição), sendo ele fundamento da República Federativa do Brasil.
Inicialmente devemos destacar, seguindo os ensinamentos de José Afonso da Silva, que "a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência e a sua eminência, transforma-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito".(3)
Sendo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade humana na lição de Luiz Alberto David Araujo é "um dos princípios constitucionais que orientam a construção e a interpretação do sistema jurídico brasileiro".(4)
No mesmo sentido é o pensamento de Flávia Piovesan ao escrever que "o valor da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1o, III – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro".(5)
Percebemos, então, que o intérprete terá por obrigação interpretar a Constituição observando este princípio, ou seja, qualquer interpretação que não garanta a dignidade humana, haverá de ser tida como inconstitucional.
O conteúdo axiomático da expressão dignidade humana é difícil de ser determinado, pois contém um dado subjetivo muito forte. No mínimo podemos dizer, amparados pelas lições de Celso Bastos e Ives Gandra Martins que "a referência à dignidade humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico". (6) No mesmo sentido é a conclusão de José Afonso da Silva quando diz que "a dignidade humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do Homem, em todas as suas dimensões".(7)
De qualquer forma, mesmo sendo difícil definirmos o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, saberemos identificar situações em que o princípio está sendo violado e ninguém em sã consciência poderá afirmar que ao impedirmos a busca da paternidade, e por conseqüência uma série de direitos fundamentais, estaremos observando o princípio constitucional. Não permitir que o autor, mesmo com os progressos da ciência, possa descobrir quem é seu pai, é ferir por completo a dignidade da pessoa humana.
A certeza da paternidade é um dos ingredientes da dignidade da pessoa humana.
4. O direito fundamental da criança à dignidade, ao respeito e à convivência familiar (art. 227, caput).
Outro aspecto de suma importância para entendermos a questão posta nos autos é a colisão de direitos fundamentais, no caso entre a direito à segurança jurídica decorrente da coisa julgada (art. 5o, XXXVI) e o direito da fundamental da criança à dignidade, ao respeito e à convivência familiar (art. 227, "caput").
Embora não incluído no capítulo dos direitos fundamentais, não há dúvida de que o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar constitui direito fundamental da criança, pois constituem o mínimo necessário para a garantia de uma vida digna.
Lembramos que a própria Constituição, no art. 5o, § 2o, estabelece que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
É possível, portanto, encontrarmos direitos fundamentais fora do Título II (art. 5º ao 17º), sendo que a enumeração feita pelo constituinte, não exclui outros, ou seja, não é taxativa.
Este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que já teve oportunidade de analisar a questão. Na ADIN 939-7, relatada pelo Min. Sydney Sanches, o Supremo reconheceu como garantia individual assegurada ao contribuinte o princípio da anterioridade previsto no art. 150, III, "b", da Constituição Federal, ou seja, fora do art. 5o, da Constituição.
Trechos do voto do Ministro Carlos Velloso explicita o entendimento acima referido.
Ora, a Constituição, no seu art. 60, § 4o, inciso IV, estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais". Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles inscritos nos incisos do art. 5o. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição" (trecho do voto do Min. Carlos Veloso, RSTF 186/164).
Dessa forma, podemos afirmar com convicção que o direito a dignidade da criança e à convivência familiar também é direito fundamental e de algum modo deve ser preservado.
5. Colisão de direitos fundamentais
Voltando a análise da questão posta nos autos, podemos afirmar que existem dois direitos fundamentais em colisão (8), quais sejam, a garantia da coisa julgada e o direito ao respeito e à convivência familiar da criança.
Qual deles deve prevalecer?
A resposta é dada pela doutrina.
Tratando-se de colisão entre direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei, a solução fica por conta da jurisprudência, que realiza a ponderação dos bens envolvidos, visando a resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. (9)
Deve prevalecer, portanto, a interpretação que preserve ambos os direitos, não havendo a possibilidade de que um deles seja totalmente suprimido, sob pena de estarmos descumprindo a norma constitucional.
Voltemos novamente ao caso em discussão. Caso a coisa julgada seja considerada direito fundamental absoluto, estaremos extinguindo por completo o direito ao respeito e à convivência familiar da criança, pois a criança jamais poderá descobrir quem é seu pai e exercer direitos decorrentes disso. Por outro lado, caso seja admitida a rediscussão do caso, estaremos preservando o direito da criança e apenas arranharemos a garantia da coisa julgada.
Aqui vale lembrar o alerta feito por Georges Kalinowski, quando fala da interpretação das normas.
Por outra parte, se a interpretação chamada lógica e os argumentos interpretativos chamados lógicos, terminam em um erro jurídico, desde o ponto de vista da utilidade, de justiça ou outro critério propriamente jurídico, segundo o qual o jurista julga os resultados de seu trabalho de jurista, não é que a lógica traga desgraça e sim porque o jurista elegeu uma má (do ponto de vista jurídico) espécie de interpretação.(10)
E não será o risco para a segurança jurídica que irá impedir a propositura da nova ação de investigação da paternidade. Mais importante que a segurança jurídica é a dignidade da pessoa humana. Trata-se de princípio constitucional e não apenas direito.
Além disso, embora todo o ordenamento jurídico esteja voltado a oferecer a necessária segurança e estabilidade nas relações humanas, o certo é que não é a segurança jurídica o primado último do Direito. Certamente, acima dele encontram-se outros objetivos. Dentre esses, destaque-se, em especial, o princípio da justiça.(11)
Assim, a boa espécie de interpretação é a que relativiza a coisa julgada nas ações de investigação de paternidade.
Lembro, também, para demonstrar que o direito fundamental à coisa julgada não deve ser considerado direito absoluto, que a qualquer momento o pai poderia ir ao cartório e reconhecer a paternidade. Isso demonstra que a coisa julgada, neste caso, é mais tabu do que realidade, não podendo servir para violar direito fundamental do autor.
Frise-se, porém, que a relativização da coisa julgada só ocorrerá nos casos em que não ficou demonstrado que o réu era o pai da criança. Nestes casos, a paternidade não foi excluída e por isso não haveria razão para impedir a rediscussão da questão relativa à paternidade. Diferente será a solução, quando a sentença concluiu pela improcedência da ação em razão do laudo pericial ter excluído de forma absoluta a paternidade. Neste caso há um pronunciamento judicial de certeza no sentido de que o réu não é o pai da criança, não sendo possível a rediscussão da questão. Não há que se falar em colisão de direitos, pois há prova cabal de que o réu não é o pai da criança e por isso não tem a criança direito algum a preservar em relação ao réu.
Também não será possível a rediscussão da causa nos casos em que a sentença, mesmo sem um juízo de certeza, tenha reconhecido a paternidade, pois a atribuição da paternidade a alguém, após o devido processo, não viola o princípio da dignidade humana e muito menos viola o direito fundamental do investigado.
6. Conclusões
O progresso dos exames periciais, especialmente os relativos a determinação da paternidade, permite que ações de investigação de paternidade julgadas em desfavor dos autores possam ser rediscutidas, pois os exames determinam com uma certeza quase absoluta (99,999 %) a paternidade.
A revisão destes processos, porém, esbarra na coisa julgada, que está prevista no texto constitucional como sendo direito individual (art. 5º, inciso XXXVI) sendo por isso inviolável.
O direito individual relativo à coisa julgada não pode ser observado isoladamente. O princípio da dignidade humana (art. 1o, III) é valor supremo da ordem jurídica e deve ser observado na interpretação das normas constitucionais. Também o direito fundamental da criança à dignidade, ao respeito e à convivência familiar (art. 227, caput) deve ser considerado na solução da questão e no conflito entre este direito e o direito à coisa julgada, observando-se o princípio da dignidade humana, a única solução aceitável é a que torna relativa a coisa julgada, permitindo a rediscussão da paternidade nas ações em que não tenha sido excluída a paternidade.
NOTAS
1. Celso Bastos, Dicionário de direito constitucional, p. 20.
2. Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, p. 246.
3. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a Constituição), p. 146.
4. Luiz Alberto David Araujo, A proteção constitucional do transexual, p. 102
5. Flávia Piovesan, Temas de direitos humanos, p. 34.
6. Comentários à Constituição do Brasil, v. 1, p. 425.
7. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a Constituição), p. 149
8. Edilsom Pereira de Farias (Colisão de direitos, p. 155) afirma que ocorre a colisão de direitos fundamentais "quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular".
9. Edilsom Pereira de Farias, ibid, p. 155.
10. Georges Kalinowski, Concepto, Fundamento y Concreción del Derecho, p. 121.
11. Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação constitucional, p. 31.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000.
BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1988.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação constitucional. 2a edição, rev. e ampl., São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro, 2o vol.. 12ª edição, rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1997.
KALINOWSKI, Georges. Concepto, fundamento y Concreción Del Derecho, Buenos Aires: Ed. Abeledo-Perrot, 1982.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8a edição. São Paulo: Atlas, 2000.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.
SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a Constituição). São Paulo: Malheiros, 2000.
________. Curso de direito constitucional positivo. 12a edição, São Paulo: Malheiros, 1996.