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Presos ao pescar: ironias de um estado (in)eficiente

30/05/2012 às 08:55
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Eis uma notícia que nos parece estarrecedora. Uma notícia que, nem nos países mais rigorosos do mundo, ou tampouco naqueles mais comprometidos com as questões ambientais, deveria ser lida com tom de aprovação.

Pedimos ao leitor que considere a seguinte manchete: “Presos ao pescar: 26h na cadeia. E acorrentados. Desempregados foram detidos com 2kg de peixe em Vitória”.[1]

Do corpo da notícia, extraímos o seguinte: “Os desempregados Valmir Santos, 45 anos, e Rodrigo Dantas de Almeida, 27, deixaram a prisão, ontem à noite. Eles ficaram 26 horas atrás das grades, algemados e sem comer, acusados da pesca ilegal de dois quilos de peixe. Os dois foram flagrados pela Polícia Ambiental na área da Estação Ecológica do Lameirão, na região da Ilha da Pólvora, na Baía de Vitória, na tarde de terça-feira. [...] Algemados pelos pés e presos por correntes a uma barra de ferro, Valmir e Rodrigo permaneceram no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) da Capital, sem comer, até as 18h50. Nesse horário, chegou o alvará de liberdade provisória.”

Eis uma notícia que nos parece estarrecedora. Uma notícia que, nem nos países mais rigorosos do mundo, ou tampouco naqueles mais comprometidos com as questões ambientais, deveria ser lida com tom de aprovação.

Em um país com políticas criminais tão absurdamente hipócritas, como o Brasil, o fato mais parece uma piada de mau gosto. Se quisermos amenizar, para fugir da sensação de que tudo se deu pela mais pura maldade, acabaremos enxergando, no mínimo, uma grande ironia. Uma ironia que pede uma resposta irônica.

Em um país com esse tipo de prática, temos ainda grande sorte de que os meios de comunicação não estejam subjugados ao controle total do Estado, como já vimos acontecer nas épocas das “propagandas” e “agendas” impostas pelo governo em alguns dos períodos mais obscuros da história da humanidade. Fosse esse o caso do Brasil, atualmente, cremos que a notícia seria dada mais ou menos assim:

“Recentes episódios policiais demonstram que o estado do Espírito Santo está altamente comprometido com a preservação do meio ambiente. Dois perigosos infratores foram presos em flagrante, no dia 22 de Maio, enquanto praticavam grave crime contra a fauna aquática.

Atuando descaradamente, os delinquentes foram surpreendidos com quase dois quilos de peixe em plena Baía de Vitória. Ambos alegaram tratar-se de pesca para consumo pessoal, mas a polícia, fazendo uma inteligente analogia com a lei de drogas, considerou a grande quantidade da substância apreendida, as circunstâncias do crime e as circunstâncias sociais e pessoais, e descartou a desculpa esfarrapada. Até mesmo porque foram apreendidas ferramentas do crime que indicam maior lesividade e certo profissionalismo (molinete). A esposa de um dos detidos, tentando amenizar a gravidade do ato e dramatizar a situação, declarou que "Quando a gente não tem condições, não tem uma carne ou um ovo para dar a nossa filha de cinco anos para comer, ele vai pescar. Eu acho isso uma injustiça”.

A polícia se revelou altamente eficaz na condução dos meliantes, que tiveram a oportunidade de repousar nas instalações da delegacia. A despeito da elevada periculosidade dos agentes, foi-lhes conferida a regalia de não pernoitar em cela superlotada, adotando-se, como medida de natural precaução, apenas o acorrentamento pelos pés. Por não terem efetivamente ficado presos, foi-lhes justificadamente negado o direito à refeição. Por uma lastimável brecha do sistema, porém, voltou a imperar a impunidade.

Fazendo uso de estratagemas e aproveitando-se da brandura da lei, advogados conseguiram devolver às ruas os meliantes, que não poderão ser considerados culpados até o trânsito em julgado de uma sentença condenatória.

A atuação policial foi um exemplo de diligência para todo o Brasil. Estima-se que apenas cerca dez por cento dos homicídios ocorridos na Grande Vitória sejam objeto de apuração, mas a aparente ineficiência se vê, agora, plenamente justificada, já que as forças do Estado estão concentradas na importante tarefa da preservação do meio ambiente. Enquanto no estado do Amazonas são desmatadas áreas equivalentes a cem campos de futebol por dia, o Espírito Santo mostrou-se implacável na repressão do massacre daqueles quatro peixes.

Indagadas as autoridades sobre se o trânsito e a permanência de transatlânticos no local não seriam bem mais danosos àquele bioma, prontamente responderam que não há comprovação científica de que o óleo e os dejetos ali deixados sejam prejudiciais à saúde dos animais aquáticos, tampouco que os motores impeçam ou perturbem a reprodução de várias espécies (diferentemente do que já se provou ocorrer com canoas e pequenos barcos com motores de popa, altamente ofensivos ao equilíbrio daquele habitat marinho).

Especialistas indicam que a defesa dos criminosos deve tentar beneficiá-los com alegações da espécie "erro de tipo", "erro de proibição" ou outras falácias jurídicas. É que os infratores disseram não conhecer a vedação da pesca no local, questionando a falta de advertência por meio de placas. Mas deve prevalecer a orientação de que "todos devem conhecer as leis" (por mais que sejam incompletas e dependam da consulta de diversas resoluções, portarias e provimentos avulsos, espalhados por órgãos públicos federais, estaduais e municipais).

Pode ser, também, que seja arguido o Princípio da Insignificância, mas rechaçam de plano a possibilidade de sua incidência porque nem mesmo um único ser vivo deve ser considerado insignificante. Trata-se de dever do Estado tutelar todos os animais, segundo a clara e objetiva lei dos crimes ambientais. Discute-se, agora, se essa tutela não deveria estender-se, também, aos animais racionais.

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Nota

[1]Fonte: Portal Gazeta Online. Disponível em

http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/05/noticias/a_gazeta/dia_a_dia/1246202-presos-ao-pescar-26h-na-cadeia-e-acorrentados.html. 23/05/2012 - 22h49 - Atualizado em 23/05/2012 - 22h49. A Gazeta. 

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Sobre o autor
Israel Domingos Jorio

Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Vitória e da Escola do Ministério Público do Espírito Santo. Advogado criminalista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORIO, Israel Domingos. Presos ao pescar: ironias de um estado (in)eficiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3255, 30 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21896. Acesso em: 22 dez. 2024.

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