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O ritual do artigo 1.071 do CPC (apreensão e depósito) e sua inviabilidade em face do artigo 526 do Código Civil

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5 – A INADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE APREENSÃO E DEPÓSITO, NO ATUAL CENÁRIO NORMATIVO (COTEJO DOS ARTIGOS 1.071, DO CPC E 521 A 528, DO CCB)

Pelo pacto de reserva de domínio o vendedor é mantido como proprietário do bem até que o preço esteja integralmente pago. Por tal razão, não há sequer a tradição, porque esta é meio de transferência da propriedade móvel[11], o que, no caso da reserva de domínio, não ocorre, senão após o pagamento do preço em sua integralidade, ou, pelo menos, de forma quase completa, como têm decidido os tribunais em acolhimento à teoria do adimplemento substancial[12].

Portanto, o que é passado ao comprador é tão somente a posse direta do bem móvel alienado, ficando o vendedor com a posse indireta e a propriedade do bem. Maria Helena Diniz (2005, p.474), bem pontua que “[...] o comprador tem posse direta, porém precária, enquanto não quitar, integralmente as prestações”.

Ora, ocorrendo a quebra do pacto por parte do comprador (mora debitoris), o Código Civil, artigo 526, faculta ao vendedor solução imediata e incondicional para a retomada do bem, vale dizer, da posse! Enquanto isso, o CPC, artigo 1.071, faculta apenas a apreensão e depósito da coisa vendida.

Aqui está o primeiro ponto conflituoso, porquanto a apreensão e o depósito não se harmonizam com a condição de proprietário da coisa que ostenta o vendedor. Quem é proprietário não precisa e nem pode ser depositário de seu próprio bem, sob pena de exsurgir disso nítida confusão[13], passando o comprador a ser o vigilante e guardador de seu próprio bem, como se terceiro fosse. Certamente, uma incongruência fatal para o direito das obrigações.

A única oponibilidade em relação à coisa de que pode se valer o comprador adimplente, contra o vendedor é a da posse, exercício fático sobre a coisa. Salvo essa possibilidade, estando em mora o comprador, já sendo ele o proprietário por obra da reserva de domínio, só lhe resta a busca da posse, que a esta altura se tornou injusta, pela mora, em prejuízo do comprador. Carlos Alberto Bittar (2006, p.35), sem ressalvas, pontua que, nesses casos, “poderá recuperar a posse da coisa vendida”.

De outro lado a purgação da mora, que é possível pelo CPC, não mais encontra sentido, talvez nunca tenha encontrado, porque a mora faz operar, de plano, a retomada da posse pelo comprador, sem nenhum tipo de ressalva, já que a lei não a fez prever. Destarte, onde o legislador não fez distinções, ao intérprete não é dado fazê-las, razão porque, considerando o texto do artigo 526, não há que se falar em purgação da mora.

Deve ser observado que, ocorrendo a mora, nos contratos com cláusula de reserva de domínio, a resolução da posse é imediata e a consequência desse fato é a resolução do próprio contrato. É o que ressoa claro do artigo 527, do CCB.

Além disso, segundo artigo 1.071, §3º, do CPC, a retomada da posse somente será possível se o réu não contestar, deixar de pedir a concessão do prazo para purgar a mora ou não efetuar o pagamento dentro do prazo concedido para purgação.

Já advertia Vicente Greco Filho (2009, p.272) que a reintegração de posse é etapa que “[...] vem depois, com a sentença que julga procedente a ação [...]"

Claramente é possível perceber que esse ritual não encontra harmonia com o direito material do vendedor em reaver a posse diretamente, sem etapas ou condições outras. A propósito, considerado o conflito aparente de normas aqui presente, a questão resolve-se em prol do direito material, ou seja, do Código Civil, até porque é lei de mesmo calibre que o Código de Processo Civil, porém mais nova e tecnicamente apropriada para tratar do tema.

Sobre isso, Cassio Scarpinella Bueno (2011, p. 169), discorre com bastante acuidade:

“Os arts. 1.070 e 1.071, que integram o Capítulo XIII do Título I do Livro IV do Código de Processo Civil, ocupam-se “das vendas a crédito com reserva de domínio”. Seu sabor de direito material é, a exemplo de tantos outros procedimentos especiais e de diversos dos procedimentos cautelares específicos, irrecusável. Por isso, o exame do instituto não pode deixar de levar em conta o que, a seu respeito, disciplinam os arts. 521 a 528 do Código Civil.”

Conclui acertadamente afirmando que:

“Ademais, tratando-se de normas jurídicas mais recentes, elas têm o aptidão de revogar ou derrogar, no que incompatível, as normas processuais civis mais antigas ( art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil).”

O CPC, enquanto norma instrumental (artigo 154) deve ser aplicado para operacionalizar o direito substantivo presente no artigo 526, do CCB, situação impossível de se realizar a partir do uso das ferramentas do artigo 1.071, do CPC.

Mesmo assim, insiste a doutrina: Marcus Vinícius Rios Gonçalves (2012, p.386) afirmando que “A segunda opção é a reintegração na posse da coisa, tratada no art. 1.071 do CPC.”, Jones Figueirêdo Alves (2008, p.526), como via do credor, manifesta-se por “recuperar a posse da coisa vendida, mediante apreensão liminar (art. 1.071 do CPC), Maria Helena Diniz (2005, p.475), que todo o desenrolar processual dar-se-á “[...] de conformidade com a lei processual (CPC, arts. 1.070 e 1.071).”.

A clara dissonância entre as normas e, principalmente, o não despertar da doutrina e da própria jurisprudência sobre o tema, é motivo de insegurança jurídica e de prejuízo para a atividade jurisdicional, no que se incluem as partes.


6 - CONCLUSÃO

A saída processual para a retomada da posse, tendo em vista o novo regramento do tema ditado pelo CCB, está na utilização do processo de conhecimento tendo como pedido imediato (liminar) a retomada da posse e como pedido final a rescisão do contrato de compra e venda em ação de rescisão contratual com pedido de reintegração de posse.

A retomada imediata da posse está lastreada no artigo 273, do CPC, na medida em que trouxer aos autos a prova escrita do contrato e do pacto da reserva de domínio, além, é claro, da prova da mora (protesto, interpelação judicial ou extrajudicial).

Com isso, seguindo diretriz material do artigo 527, do Código Civil, o credor poderá reter as prestações até então pagas pelo devedor no intuito de fazer face ao valor das despesas processuais e extraprocessuais, aí incluídos os juros, correção e demais acréscimos. Se houver saldo, considerando o cotejo do valor da avaliação e das despesas, este será restituído ao devedor.

Alguns recentes lampejos jurisprudenciais indicam este caminho, o que se traduz em alento aos que cultuam a boa técnica jurídica na solução dos conflitos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO. COMPRA E VENDA DE EMBARCAÇÃO COM RESERVA DE DOMÍNIO. INADIMPLEMENTO. CONTRATANTE. TUTELA ANTECIPADA. BUSCA E APREENSÃO DO BEM. PEDIDO DE REVOGAÇÃO. OBSERVÂNCIA. PRINCÍPIO DA UNICIDADE RECURSAL. NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO NO ASPECTO. ABSTENÇÃO. UTILIZAÇÃO DO BARCO. LEGÍTIMO DIREITO. NÃO-CABIMENTO.

-[...]

- Há óbice instransponível ao conhecimento do agravo de instrumento, relativamente ao pleito de revogação da tutela antecipada concedida à autora, visto que já foi objeto de outro recurso, cujo seguimento foi negado em face de sua manifesta extemporaneidade.

[...].

- Não procede o pedido do recorrente de determinar à agravada que se abstenha de utilizar a embarcação reavida, na medida em que, ao deixar de adimplir o contrato de compra e venda com reserva de domínio, permitiu que a vendedora reavesse a coisa vendida, à luz do que preconiza o art. 526 do CC/02.

- A partir do momento em que houve o deferimento da tutela antecipada, com a consequente busca e apreensão da embarcação, a posse do bem litigioso retornou à vendedora, daí advindo o seu legítimo direito de usar e gozar da coisa conforme bem lhe aprouver.

- Agravo de instrumento conhecido parcialmente e, no aspecto, improvido. Unânime.(TJDFT. Acórdão n. 347153, 20080020164945AGI, Relator OTÁVIO AUGUSTO, 6ª Turma Cível, julgado em 02/03/2009, DJ 18/03/2009 p. 113)

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No mesmo trilho:

RESCISÃO DE CONTRATO POR INADIMPLEMENTO DO PROMITENTE COMPRADOR. CONTRATO DE VENDA A CRÉDITO COM RESERVA DE DOMÍNIO. ALEGAÇÃO PELO COMPRADOR DE PAGAMENTO DA DÍVIDA. NÃO COMPROVAÇÃO. É lícito ao comprador a rescisão do contrato de venda a crédito com reserva de domínio, ensejando a possibilidade de reintegração do credor na posse do bem em litígio. Os cálculos apresentados na inicial visam, tão-somente, ao resgate do pagamento pelo devedor, evitando-se desta maneira a rescisão e os danos advindos da sentença a ser proferida. Verificando-se não se tratar de feito executivo, mas sim rescisório, inexiste a possibilidade de se discutir os valores apresentados na exordial. (TJMG. Apelação 2.0000.00.367293-7/000(1), Relator: Domingos Coelho, 12ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 14/09/2002)

Assim, é possível operar na prática o direito do credor expresso em lei de retomar imediatamente a posse da coisa vendida, sem necessidade das emaranhadas etapas ditadas pelo CPC, artigo 1.071, não mais harmônicas com o artigo 526, do CCB.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES,  Jones  Figueirêdo.  In: FIUZA, Ricardo (coord).   Código  Civil  Comentado.  6.  ed.  São Paulo: Saraiva, 2008.

BDINE JR., Hamid Charaf. In: PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 6.  ed.  Barueri, SP: Manole, 2012.

BITTAR, Carlos Alberto. Contratos Civis. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2006.

SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2011. V.2, tomo II.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

FILHO, Misael Montenegro. Código de Processo Civil Comentado e Interpretado. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2010.

GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. V.3.

MAZZILLI, Hugo Nigro; GARCIA, Wander. Anotações ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005

RIOS GONÇALVES, Marcus Vinícius. Novo Curso de Direito Processual Civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. V.2.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. V.3

SIDOU, J.M. Sobre o Novo Código Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2004.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5. ed. Atlas. São Paulo: 2005. V.3.


Notas

[1] Art. 1º O contrato de compra e venda de bens, de natureza civil ou comercial, com a cláusula de reserva do domínio, para valer contra terceiros, deverá ser transcrito no todo ou em parte, no registro público de títulos e documentos do domicílio do comprador.

[2]CCB,  Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

[3] Art. 333. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;[...]

[4] Art. 283. A petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação.

[5] Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

[6] Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

[7] Art. 1.071. Ocorrendo mora do comprador, provada com o protesto do título[...]

[8] Art. 525. O vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial.

[9] Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sôbre alienação fiduciária e dá outras providências.

[10] Alfredo Buzaid, Em 30 de outubro de 1969, foi nomeado Ministro da Justiça, tendo exercido as suas funções até 14 de março de 1974. Foi autor do Projeto de Código de Processo Civil que, discutido e votado no Congresso Nacional, converteu-se em Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. BRASIL, Supremo Tribunal de Federal. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=18> Acesso em: 15/05/2012.

[11] Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição.

[12] [...]Assim, considerado o adimplemento substancial da obrigação (94% do valor do bem), dando-se o pagamento, ao que tudo indica, de 169 prestações do total de 180, como admite a autora, ora apela da, não é hipótese de resolução do contrato” (TJ/SP; Apelação 4018634600; Rel: Des. Jesus Lofrano; 3ª Câmara de Direito Privado; Julgamento: 06/10/2009).

[13] CCB, Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

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Sobre o autor
Sérgio Augusto Pereira Lorentino

Advogado, Professor de Direito do Consumidor e de Prática Processual Civil da Universidade Federal do Tocantins e Direito do Consumidor e Direito Processual Civil da Faculdade Serra do Carmo. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/TO. Especialista em Direito Civil e Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LORENTINO, Sérgio Augusto Pereira. O ritual do artigo 1.071 do CPC (apreensão e depósito) e sua inviabilidade em face do artigo 526 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3273, 17 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22015. Acesso em: 20 abr. 2024.

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