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O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sob a égide da Constituição de 1988

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24/06/2012 às 08:23
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4. A conformação a ser dada ao ensino religioso em escolas públicas sob o Estado laico

No que diz respeito à ordem constitucional inaugurada em 1988, percebe-se, então, de pronto, a possibilidade do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental. A conformação a ser dada a ele, no entanto, passa precipuamente pela percepção de que o atual estágio histórico e civilizatório não se coaduna com o apego a uma determinada matriz religiosa, ainda que a esmagadora maioria dos brasileiros se declare cristã. Caso contrário, um ensino religioso de cariz univocamente cristão representaria desvelada tirania da maioria sobre os indivíduos adeptos de outras religiões. Vê-se pelos dispositivos constitucionais que, uma vez destinados a privilegiar a liberdade de crença, a eficácia destes será direcionada a um ensino religioso que não se preste à confissão de determinada crença, mas à valorização do direito de toda criança e adolescente à formação integral.

Peter Häberle, por meio de sua teoria da Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, rende homenagem ao pluralismo na medida em que propicia que diversos grupos sociais concorram para formação de determinada leitura das normas e princípios constitucionais. Concatenando-se com uma Constituição que preconiza a eliminação de toda espécie de preconceito e discriminação (Preâmbulo c/c art. 3º, inciso IV), constata-se que a abertura constitucional deve ser ampla e sem preconceitos. Todos os grupos sociais devem ser capazes de participar desse processo recebendo dos demais o devido respeito e consideração. Isso inclui a Igreja Católica Romana.

Em 2009, um acordo assinado entre Brasil e Vaticano regulamentou a presença da Igreja Católica Romana no Brasil, não fazendo mais do que apenas consolidar normativamente determinadas práticas que há muito tempo já eram exercidas, em virtude das relações diplomáticas travadas entre Brasil e Santa Sé desde 1826. O art. 11 do referido acordo, entretanto, causou amplo debate social, na medida em que, tendo disciplinado a questão do ensino religioso no país, dividiu opiniões quanto à constitucionalidade da matéria[14].

A redação do art. 11 acima referido apresenta grande proximidade com o art. 210, §1º da Constituição Federal[15]. Ambos deixam a abertura para a adoção de um ensino não catequético. Mesmo que o senso comum tenha dificuldades em absorver isso, as declarações oficiais da Igreja de Roma desde a década de 1960 têm denotado um maior interesse na formação integral do ser humano do que no mero proselitismo religioso. É o que se extrai de documentos tais como as Declarações Gravissimum Educationis (Sobre a Educação Cristã), Nostra Aetate (Sobre a Igreja e as Religiões Não-Cristãs) e Dignitates Humanae (Sobre a Liberdade Religiosa). O mesmo se pode dizer das dezenas de textos do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos e do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, os quais buscam um diálogo respeitoso com as mais diversas religiões, tais como o judaísmo, islamismo, budismo e hinduísmo. Nesse sentido, as recomendações de conduta do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso para o “Testemunho Cristão em um Mundo Multi-Religioso”:

 (...)

6. Rejeição da violência. Os Cristãos são chamados para rejeitar toda forma de violência, seja ela psicológica ou social, incluindo o abuso de poder ao testemunhar. Deve-se também rejeitar a violência, a discriminação injusta ou repressão por parte de qualquer autoridade religiosa ou secular, incluindo a violação ou destruição de locais de adoração, símbolos ou textos sagrados.

7. Liberdade de religião e de crença. A liberdade religiosa incluindo o direito de professar publicamente, praticar, propagar e de mudar de religião, parte da própria dignidade do ser humano que está fundamentado na criação de todos os seres humanos à imagem e semelhança de Deus (cf. Gênesis 1:26). Assim sendo, todos os seres humanos têm direitos e responsabilidades iguais. Onde a religião é instrumentalizada para fins políticos, ou onde a perseguição religiosa acontece, os Cristãos são chamados para se envolver como testemunhas proféticas, denunciando tais ações.

8. Respeito e solidariedade mútua. Os Cristãos são chamados para se comprometerem a trabalhar com todas as pessoas em respeito mútuo, promovendo juntos a justiça, a paz e os bens em comum. A cooperativa inter-religiosa é uma dimensão essencial de tal compromisso.

(...)

10. Renunciando aos falsos testemunhos. Os Cristãos devem falar de maneira sincera e respeitosa; eles devem ouvir a fim de aprender e compreender as outras crenças e práticas, e eles são encorajados a reconhecer e apreciar aquilo que é verdade e bom neles. Qualquer comentário ou abordagem crítica deve ser feita de maneira que haja um respeito mútuo, assegurando-se que não haja falso testemunho com respeito às outras religiões.

11. Assegurando o discernimento pessoal. Os Cristãos devem reconhecer que o ato de mudar a religião de alguém é um passo decisivo e deve ser acompanhado de tempo suficiente para uma reflexão e preparação adequada, através de um processo que assegure uma liberdade pessoal plena.

12. Construindo relacionamentos inter-religiosos. Os Cristãos devem continuar a construir relacionamentos de respeito e confiança com as pessoas de diferentes religiões para facilitar uma compreensão, reconciliação e cooperação mútua e profunda para o bem em comum.

(...)

Recente Homilia do Papa Bento XVI ressalta bem a preocupação com a formação integral do homem, em detrimento da simplória questão proselitista:

(...)

Com efeito, a verdade é um anseio do ser humano, e procurá-la supõe sempre um exercício de liberdade autêntica. Muitos, todavia, preferem os atalhos e procuram evitar essa tarefa. Alguns, como Pôncio Pilatos, ironizam sobre a possibilidade de conhecer a verdade (cf. Jo 18, 38), proclamando a incapacidade do homem de alcançá-la ou negando que exista uma verdade para todos. Esta atitude, como no caso do ceticismo e do relativismo, produz uma transformação no coração, tornando as pessoas frias, vacilantes, distantes dos demais e fechadas em si mesmas. São pessoas que lavam as mãos, como o governador romano, e deixam correr o rio da história sem se comprometer.

Entretanto há outros que interpretam mal esta busca da verdade, levando-os à irracionalidade e ao fanatismo, pelo que se fecham na «sua verdade» e tentam impô-la aos outros. São como aqueles legalistas obcecados que, ao verem Jesus ferido e ensanguentado, exclamam enfurecidos: «Crucifica-o!» (cf. Jo 19, 6). Na realidade, quem age irracionalmente não pode chegar a ser discípulo de Jesus. Fé e razão são necessárias e complementares na busca da verdade. Deus criou o homem com uma vocação inata para a verdade e, por isso, dotou-o de razão. Certamente não é a irracionalidade que promove a fé cristã, mas a ânsia da verdade. Todo o ser humano deve perscrutar a verdade e optar por ela quando a encontra, mesmo correndo o risco de enfrentar sacrifícios.

Além disso, a verdade sobre o homem é um pressuposto imprescindível para alcançar a liberdade, porque nela descobrimos os fundamentos duma ética com que todos se podem confrontar, e que contém formulações claras e precisas sobre a vida e a morte, os deveres e direitos, o matrimônio, a família e a sociedade, enfim sobre a dignidade inviolável do ser humano. É este patrimônio ético que pode aproximar todas as culturas, povos e religiões, as autoridades e os cidadãos, os cidadãos entre si, os crentes em Cristo com aqueles que não crêem n’Ele.

Ao ressaltar os valores que sustentam a ética, o cristianismo não impõe mas propõe o convite de Cristo para conhecer a verdade que nos torna livres. O fiel é chamado a dirigir este convite aos seus contemporâneos, como fez o Senhor, mesmo perante o sombrio presságio da rejeição e da Cruz. O encontro pessoal com Aquele que é a verdade em pessoa impele-nos a partilhar este tesouro com os outros, especialmente através do testemunho.

(...)

De acordo com o exposto, vê-se que o ensino religioso não proselitista, também admitido pela Igreja Católica Romana, encontra proximidade não apenas com o texto constitucional, como também com as normas que da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996)[16]:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997)

§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Observa-se, portanto, que um ensino preocupado, em primeiro lugar, com a formação humana integral é a chave para a superação da intolerância religiosa (preocupação já expressa por autores como Locke e Rousseau há alguns séculos). Essa medida será apropriada para evitar casos como aquele ocorrido recentemente no Estado de São Paulo, no qual “[A] professora evangélica de história Roseli Tadeu Tavares de Santana, da Escola Estadual Antônio Caputo, de São Bernardo do Campo (Grande São Paulo), ameaçou no ano passado dar zero a quem não orasse na classe”[17].

Buscando evitar interpretações fundamentalistas sobre como deverá ser o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, a ADI 4439/DF, proposta pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, foi enviada ao Supremo Tribunal Federal visando firmar uma interpretação conforme segundo a qual esse ensino só poderá ter natureza não-confessional, inadmitidos professores que sejam representantes de confissões religiosas.


Conclusão

Verificada a constitucionalidade do ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental, torna-se necessário fixar padrões que evitem que esse tipo de ensino, instituído com vistas à formação integral das crianças e adolescentes e mantido com recursos públicos, seja utilizado com o propósito inapropriado de proselitismo, catequese ou fundamentalismo.

Para isso, faz-se necessário que, no seio do Estado laico, o ensino preconizado pela Constituição da República e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional homenageie igualmente o pluralismo religioso e o respeito pela dignidade humana.


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Arestos

ADI 815/DF, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 28-03-1996, Plenário, DJ de 10-05-1996.

ADI 2.076-5/AC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 8-8-2003.

RMS 16107/PA. Ministro PAULO MEDINA. SEXTA TURMA. Julgado em 31/05/2005. DJ 01/08/2005 p. 555

STA 389 AgR / MG - MINAS GERAIS, Rel. Min. GILMAR MENDES, julgamento em 03-12-2009, Plenário, RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135)

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Sobre o autor
Bruno Dias Trindade

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRINDADE, Bruno Dias. O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sob a égide da Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3280, 24 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22070. Acesso em: 3 mai. 2024.

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