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O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sob a égide da Constituição de 1988

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24/06/2012 às 08:23
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Verificada a constitucionalidade do ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental, torna-se necessário fixar padrões que evitem que esse tipo de ensino, instituído com vistas à formação integral das crianças e adolescentes e mantido com recursos públicos, seja utilizado com o propósito inapropriado de proselitismo, catequese ou fundamentalismo.

Resumo: Este artigo buscará expor de forma relativamente sucinta sobre a questão do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, após o advento da Constituição de 1988. Inicialmente, a partir de uma breve digressão histórica, será possível perceber as intensas marcas religiosas que se imprimiram sobre a história ocidental e que ainda hoje permanecem presentes na realidade brasileira, influenciando grandemente as opções políticas nacionais, inclusive quando da elaboração dos textos constitucionais. A despeito do processo de laicização do Estado – para o qual contribuíram alguns autores da teoria política moderna, tais como Locke, Rousseau e Hobbes –, verifica-se também uma impossibilidade de desvencilhamento completo do Estado no que tange aos assuntos concernentes à religião, vez que o princípio da liberdade de crença é matéria de interesse público. O debate acerca do tema, se realizado de forma honesta, estimulará a sadia formação das crianças e adolescentes e valorizará a proficuidade do pluralismo.

Palavras-chave: Ensino religioso. Constituição. Laicidade.

Sumário: Introdução. 1. Breve digressão histórica sobre o processo de laicização do Estado. 1.1. John Locke. 1.2. Jean Jacques Rousseau. 1.3. Thomas Hobbes. 2. Marcas da influência religiosa na história do Brasil. 3. A tensão causada pelos resquícios da religião na atual ordem constitucional laica: o problema do ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental. 4. A conformação a ser dada ao ensino religioso em escolas públicas sob o Estado laico. Conclusão.


Introdução

O Texto Magno do ordenamento jurídico brasileiro consagrou a laicidade[1] do Estado Democrático de Direito como princípio de elementar importância para o exercício do direito fundamental à liberdade de crença[2]. Inserida no contexto moderno de pluralismo religioso, a Constituição Federal de 1988 plasmou a noção de que o Estado não pode se prestar a proteger uma religião ou matriz religiosa específica, principalmente quando em detrimento de quaisquer outras religiões.

É necessário levar em conta, todavia, que a história do Brasil sempre sofreu grande influência do cristianismo, mormente em sua face católico romana. Segundo a disposição constitucional encartada no art. 19, inciso I, é defeso ao Estado formar alianças ou utilizar seu aparato a fim de resguardar qualquer religião, inclusive a cristã. O efetivo entrelaçamento da formação da história do Brasil com a história do cristianismo defendido pela Igreja Católica Apostólica Romana, no entanto, torna impossível ignorar uma realidade religiosa que se subjaz à mentalidade de todo o povo brasileiro.

O Brasil, sendo um país de população religiosa, assume o ensino religioso facultativo em escolas públicas de ensino fundamental, em virtude do dispositivo constante no art. 210, §1º do Texto Magno. Por sua natureza constitucional, o citado dispositivo não pode ser ignorado ou afastado em nome do princípio da laicidade estatal. Ambos são preceitos constitucionais e será necessário encontrar uma interpretação que os compatibilize, muito embora o senso comum acredite que a educação religiosa seja absolutamente inconciliável com o Estado laico, merecendo, por isso, ser desprezada.

Indiscutível, portanto, que a presença desse mandamento constitucional em uma ordem laica é responsável por causar fortes tensões. Apontando o Estado como elemento de importância primária para a realização efetiva da liberdade de crença dos indivíduos, analisaremos como, o debate presente na esfera pública acerca dessa matéria, se realizado de forma honesta, como preconizado na teoria häberliana da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, ensejará a busca pela formação integral do indivíduo em detrimento de propósitos meramente proselitistas, mas com a valorização do caráter profícuo do pluralismo.


1. Breve digressão histórica sobre o processo de laicização do Estado

Estado, Direito e religião são elementos que muitas vezes se interpenetraram ao longo da história da humanidade e continuam a se influenciar mutuamente, embora de modos diferentes e sutis. Nas civilizações primitivas, a organização política e o direito, constantemente, eram permeados por diversos outros elementos de natureza mágica, religiosa, ritualística, moral ou utilitária. Gradativamente, o direito dessas sociedades, além de sua característica religiosa, adquiriu um caráter consuetudinário e tradicional[3].

O homem primevo, vivendo em sistemas sociais não tão demasiadamente complexos e sendo um indivíduo dominado pelo temor ante os fenômenos da natureza que não consegue explicar, sana sua angústia com explicações mitológicas e religiosas, que repercutiriam na posterior criação das primeiras regras jurídicas e sociais. Portanto, grande parte dos usos e costumes das sociedades primitivas estava fortemente vinculada à religião. Havia uma relação muito íntima entre os elementos místicos e as primeiras manifestações jurídicas.

Certas unidades políticas elevaram essa relação entre política e religião aos mais altos níveis. Aqui, cabe citar o que o professor Jorge Miranda denomina Estado oriental. Esse tipo de organização política representou, de modo ímpar na história, o efetivo vínculo que era estabelecido entre religião, Estado e direito. Os Estados orientais eram destacadamente teocráticos, isto é, coordenavam os aspectos políticos e sociais de sua sociedade por meio do poder religioso, o que fazia que as garantias jurídicas dos indivíduos fossem um tanto reduzidas, pois não seria possível exigir direitos de Deus ou dos deuses[4].

Jorge Miranda compartilha da opinião de autores como Dalmo Dallari e Jellinek, os quais consideram que essas antigas organizações políticas e sociais já podem ser classificadas como Estados[5]. Em seu livro “Teoria do Estado e da Constituição”, o próprio Jorge Miranda usa os termos Estado oriental, Estado romano, Estado grego, etc.

O contato da religião com o direito e com a organização política ganhou feições diferentes, a partir do surgimento do cristianismo. Essa doutrina religiosa, pouco a pouco, passou a penetrar no “Estado” romano[6], o qual, antes mesmo de Cristo, já era dotado de alguns fundamentos e cultos religiosos herdados dos antepassados. Sob o domínio de Teodósio I, o cristianismo, além de ser tolerado em Roma, chega a ser adotado como religião oficial do Império.

Após o conturbado período de decadência do Império Romano, inicia-se a Idade Média. Durante essa fase, a religião cristã continuou a se incrustar, com crescente veemência, nas relações sociais e políticas da Europa.

Entretanto, com o fim da Idade Média e o advento do Estado Moderno, diversos acontecimentos, como o Renascimento, a intensificação do comércio e do capitalismo mercantil, o surgimento da burguesia, o desenvolvimento das ciências, a centralização do poder nas mãos de reis absolutistas e a Reforma Protestante, alteraram profundamente a Europa. A Reforma teve importância fundamental nesse contexto de criação dos Estados Modernos, uma vez que ela redimensionou os campos de ação da Igreja e os princípios seculares. Ademais, ela proporcionou uma luta da esfera política contra o poderoso controle secular exercido pela Igreja, permitindo que parte desse poder e desse controle se concentrasse na figura de um rei soberano possuidor de uma tropa nacional própria. Desse modo, o rei adquiria o poder de exercer violência nos casos em que julgasse necessário.

Evidentemente, o poder dos reis absolutistas era grande demais para se manter unicamente sob o arbítrio deles. Por isso, o direito passou a regular tal poder, submetendo os reis e fornecendo certas garantias individuais aos súditos.

Apesar dos conflitos pelos quais a Igreja passava em decorrência da Reforma, a religião em si nunca perdeu seu valor perante a sociedade. A justificativa para o poder dos reis era justamente o Direito Divino, ou seja, embora a intermediação da Igreja fosse vista com cada vez mais descrédito, a ideia de que o próprio Deus escolhia o rei ainda se mostrava bastante aceitável.

Em 1517, Matinho Lutero, ao apresentar 95 teses contra as práticas da Igreja Católica, buscou transformar os costumes da Igreja, a qual, àquela época, amealhava boa parcela dos impostos e cargos da administração secular. Dessa forma, inegavelmente, o poder secular recebia grandes influências do poder religioso.

O sucesso da Reforma propiciou, então, a afirmação do caráter nacional dos Estados e a perda de certo poder secular por parte da Igreja, fazendo com que tal poder passasse a ser administrado por outros indivíduos, como os burgueses. Além disso, a Reforma também possibilitou a pluralidade de religiões no interior de um mesmo Estado.

Nos séculos XVII e XVIII, o Iluminismo, avesso à religião, pensou em lançar as bases de uma ciência jurídica cujo caráter fosse puramente racional. O direito ideal para os iluministas corresponderia à expressão da razão humana. Surgia um clima propício à compreensão de que a lei era a expressão racional da vontade coletiva.

Com o desenrolar desse contexto, observa-se que houve uma mudança estrutural entre política e religião. John Locke, Jean Jacques Rousseau e Thomas Hobbes foram alguns dos autores cujas obras se mostram importantes para a compreensão desse fenômeno, ao estimularem a diferenciação e cisão entre a esfera civil e a religiosa.

1.1              – John Locke

Locke expõe uma concepção de Estado como fruto do contrato realizado por homens que, insatisfeitos com seu estado de natureza, unem-se sob a égide de um poder político capaz de organizá-los e preservar seus direitos inalienáveis.

Em sua obra “Letter Concerning Toleration”, John Locke aponta Estado e Igreja como esferas distintas. Segundo ele, o Estado não pode interferir nas igrejas porque se encontra no âmbito do bem comum, enquanto aquelas estão no campo do bem espiritual. O Estado não se responsabiliza (e nem pode se responsabilizar) pela alma de quem quer que seja. O que as autoridades estatais dispõem apenas do uso da força física, mas a salvação se conquista com a fé, com a conversão, com a persuasão e o convencimento do espírito.

Tão distintos são os campos de ação da religião e do Estado, que os magistrados só têm o poder de aplicar o direito desse mundo. Do mesmo modo, a máxima sanção que uma igreja pode aplicar é excomungar uma pessoa. Essa excomunhão não afeta os direitos civis daquele indivíduo, pois somente o Estado pode privar alguém de seus direitos civis. Qualquer pessoa, seja um excomungado, um cristão ou um pagão, tem os mesmos direitos civis e não pode ser perseguida em decorrência de suas crenças.

A conclusão de Locke é que não é a diversidade a responsável pelas guerras e conflitos, mas a intolerância. As autoridades estatais, então, têm o dever de promover o bem comum nas bases dessa tolerância.

1.2              – Jean Jacques Rousseau

Rousseau vê as religiões com maior desconfiança. Em sua obra “Do Contrato Social”, no capítulo referente à religião civil, ele diz que os deuses são elementos participantes dos ideais de cada sociedade: cada comunidade apresenta seus deuses particulares. As divisões nacionais geraram o politeísmo (cada unidade política e social tinha sua própria religião) e, consequentemente, a intolerância religiosa e civil.

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Jesus, porém, foi responsável por uma grande cisão entre o reino político secular e o reino dos céus. Essa divisão entre a unidade política e a religião, segundo Rousseau, causa um conflito entre o reino dos céus e tudo aquilo que diz respeito às leis, ao príncipe e à vida civil. Em face disso, o autor acredita ser impossível o desenvolvimento de uma boa política em um Estado cristão.

Em seu livro, Rousseau ainda chama atenção para o fato de que também Hobbes chegou a identificar esse mesmo problema. Todavia, enquanto Hobbes chega a propor uma nova união entre as duas esferas, Rousseau acredita que o caráter dominador do cristianismo arruinaria qualquer esforço nesse sentido.

Estão elencados na obra de Rousseau três tipos de religião: a religião do homem, a do cidadão e a dos padres. A primeira seria limitada ao culto interior do Deus supremo; seria a pura e simples religião dos Evangelhos favorecedora de uma ideia de direito divino natural. Já a religião dos cidadãos seria aquela que se alicerça em um único país e que tem seus dogmas, rituais e cultos exteriores prescritos por leis. Por fim, a religião dos padres seria a que se mostra mais efetivamente prejudicial à sociedade porque, dividindo a política e a religião, daria aos homens duas pátrias, dois chefes (o príncipe e o sacerdote) e dois tipos de leis a serem seguidas, dificultando que seus adeptos fossem simultaneamente devotos e cidadãos.

Dentre as três, a pior religião, para Rousseau, seria, portanto, a religião dos padres, pois ela rompia com a unidade social, opondo-se, assim, ao Estado. Com efeito, existindo uma religião que faça as pessoas pensarem somente na pátria que terão após a morte, corre-se o risco de que haja uma grande indiferença por parte delas com relação à pátria que elas têm em vida.

Outro problema da religião dos padres seria que seus adeptos, geralmente, não se utilizam da violência, nem mesmo quando preciso – fator que inviabilizaria a construção de uma república.

Por conseguinte, Rousseau acredita que cada pessoa pode ter a religião e as opiniões que lhe aprouverem. Ninguém precisa prestar contas de suas convicções ao seu senhor ou rei. O soberano também não pode interferir nas opiniões ou religiões de seus súditos a menos que elas sejam danosas ao Estado. Cada pessoa poderia ter sua religião, desde que ela não prejudicasse o Estado.

Seria assaz oportuna, na opinião do autor, a existência de uma profissão civil de fé. Ela não teria precisamente os dogmas de uma religião, mas seria disseminadora de sentimentos de sociabilidade sem os quais não seria possível ser bom cidadão. Aquele cidadão que não cresse nessa “religião civil” seria banido do território do Estado.

O escopo da religião civil seria justamente excluir a intolerância religiosa. Rousseau percebe que, onde quer que haja intolerância teológica, é impossível não haver algum efeito civil.

Uma vez que não há mais um modo de se fundar religiões nacionais exclusivas, a solução seria a tolerância de todas as religiões que se mostrassem tolerantes com as outras e cujos dogmas não fossem opostos aos deveres dos cidadãos. O Estado não deveria ter um credo específico, mas deveria ter leis para banir quaisquer religiões que fossem socialmente prejudiciais.

1.3              – Thomas Hobbes

O Estado civil, de acordo com o pensamento hobbesiano, seria o ambiente no qual o poder estabelecido coage os indivíduos para que não ajam erroneamente.

Hobbes entende que a religião surge na natureza do homem muito antes da sociedade civil, porquanto, antes mesmo do contrato social, o homem já tinha medo dos poderes de determinados espíritos invisíveis. Tudo o que poderia ser feito entre dois homens que não estivessem sujeitos ao poder civil era um juramento em nome de um deus a que ambos temessem.

Com o surgimento do estado civil, o soberano torna-se o único legislador e o supremo juiz capaz de solucionar casos de controvérsias. Não há mais espaço para a esfera religiosa exercer seus julgamentos, pois o soberano é uma espécie de Deus mortal. A ele deve-se tanta obediência quanto ao Deus imortal.

Para Hobbes, quem obedece ao rei está, necessariamente, respeitando a Deus. Portanto, é dever do bom cristão respeitar seu governante. O rei teria poder sobre a religião e sobre as ações de seus súditos.

Se o Estado preconiza algo e Deus, por meio de seus sacerdotes, disser o contrário, deve-se obedecer ao Estado. Isso porque não se pode saber qual a verdadeira vontade de Deus a respeito das coisas, mas a vontade do soberano manifesta-se com mais facilidade. Em vida, os súditos são responsáveis pelos atos do soberano, dado que o poder de um rei seria oriundo da legitimação popular. Após a morte, o soberano seria culpado, então, por todas as iniquidades que mandou seus súditos cometerem.


2. Marcas da influência religiosa na história do Brasil

Noutro giro, paralelamente aos fenômenos que se desenvolviam na Europa, o Brasil também passava por vários eventos que, notavelmente, entrelaçavam sua história a diversos aspectos religiosos.

Desde o instante em que Pedro Álvares Cabral e os outros tripulantes das caravelas portuguesas pisaram no território que futuramente seria chamado de Brasil, o catolicismo esteve profundamente ligado à história desta terra, influenciando seu povo sob vários aspectos (valores morais, hábitos, linguagem, direito, entre outros). Chamado anteriormente de Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz, um dos primeiros acontecimentos testemunhados pelo solo brasileiro foi uma missa, cuja celebração foi presidida pelo padre Frei Henrique em 26 de abril de 1500[7].

Muitas foram, portanto, as conseqüências sobre a vida política, social e jurídica do Brasil (e de muitos outros países) advindas da doutrina, moralidade e organização da Igreja Católica Apostólica Romana.

O simbolismo católico permaneceu arraigado às concepções da nação brasileira durante séculos, repercutindo em grandes eventos da vida nacional, a exemplo da elaboração das Constituições. É de se ressaltar que as Constituições brasileiras, em virtude da tradição católica do país, desde o Primeiro Reinado, admitem, ao menos em seu preâmbulo, a existência de Deus. A Constituição outorgada por D. Pedro I explicitava de modo ainda mais claro sua influência católica ao referir-se expressamente à Santíssima Trindade, cuja existência é declarada em um dos dogmas da Igreja. Aliado a esse fato, muitas Constituições, como as de 1891, a de 1946, a de 1967 e inclusive a atual (no Art. 210, § 1º), permitiram o ensino religioso facultativo, muito embora os sistemas governamentais de suas épocas não tivessem estritas relações com a Igreja Católica. Em certas Constituições, como a de 1946 e 1967, era citada a colaboração entre Igreja e Estado para satisfação de interesses públicos. Porém, esse fenômeno de interferência religiosa sobre as Constituições não foi unicamente brasileiro. O nome de Deus já fora invocado em Constituições da Argentina (1853), de Cuba (1928), da Iugoslávia (1931) e da Áustria (1934)[8].


3. A tensão causada pelos resquícios da religião na atual ordem constitucional laica: o problema do ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental.

É necessário destacar, então, que, embora alguns entendam a separação entre Estado e religião como um desligamento total entre a esfera pública estatal e tudo que diga respeito à prática religiosa, não é isso que preconiza a ordem constitucional vigente. A Carta Política de 1988 faz opções valorativas que explicitam claramente algumas marcas da realidade religiosa brasileira. A menção a Deus que se apresenta logo no preâmbulo da Carta Maior é uma das mais emblemáticas. Não foi sem motivo que a questão chegou a ser discutida perante o Supremo Tribunal Federal, na ADI 2.076-5/AC, relatada pelo Ministro Calos Velloso, por meio da qual se firmou o entendimento de que a invocação a Deus não tem força normativa e, por esse motivo, não tem que ser obrigatoriamente reproduzida nas Constituições estaduais.

Com isso, vê-se que a Constituição Federal permite a existência de pontos de contato entre a esfera religiosa e a esfera estatal, de modo que, caso haja necessidade, a realização do interesse público seja favorecida mediante a colaboração entre ambas. É o caso da assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, inc. VII, CF), do reconhecimento do casamento religioso na ordem civil (art. 226, §2º, CF), da instituição do domingo como dia preferencial para o repouso semanal remunerado (uma vez que tal dia, na tradição cristã, é de fundamental relevância para o exercício da fé - art. 7º, inc. XV, CF), da isenção de eclesiásticos em relação ao serviço militar obrigatório (art. 143, §2º, CF) e do ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, §1º, CF). Além disso, há outras influências espraiadas por outros níveis legislativos, a exemplo do benefício da prisão especial aos ministros de confissão religiosa (art. 295, inciso VIII, CPP).

Por todos os elementos acima volvidos, nota-se que os legisladores constituintes se depararam com alguns limites imanentes à realidade brasileira que não puderam ignorar quando da elaboração da norma fundante do ordenamento pátrio. De outra feita, teriam mitigado significativamente a eficácia performativa do texto constitucional. Ora, o marco normativo constitucional não é uma invenção de um novo mundo, mas o estabelecimento de uma nova leitura sobre ele.

Em diversos aspectos, o Estado tem se mostrado elemento de importância primária para a realização efetiva da liberdade de crença dos indivíduos. Para que as pessoas tenham condições materiais de exercício de sua liberdade de crença, o Estado, de plano, tutela o sentimento religioso e o resguarda por meio do preceito constante no art. 208 do Código Penal[9]. Além disso, ele tem sido responsável por dar aos cidadãos de determinadas religiões: o direito ao exercício de culto por meio do sacrifício de animais[10]; o direito de fazer provas de concurso aos domingos por causa da sacralidade sabática[11]; a fixação de feriados que possibilitem o exercício da fé por parte do povo; a cessão de espaços públicos para a breve realização de eventos com caráter religioso; a imposição de óbices à profanação de símbolos religiosos[12]; e o oferecimento de aulas facultativas de ensino religioso nas escolas públicas nacionais.

Em nível constitucional, portanto, considerando-se que a Carta Maior é o estatuto jurídico do político, conforme definição de Canotilho, ou um acoplamento estrutural entre direito e política, na concepção de Niklas Luhmann, deduz-se que o processo de construção do texto constitucional passa pela decisão entre elaborar um texto permeado por opções valorativas ou um texto com características mais procedimentais, assim como a Constituição dos Estados Unidos.

No Brasil, os legisladores constituintes fizeram a opção por uma Lei Fundamental cujos preceitos manifestassem diversificadas marcas valorativas. O ensino religioso facultativo em escolas públicas é apenas um deles.

O Supremo Tribunal Federal não aceita a doutrina de que seria possível haver normas constitucionais originárias inconstitucionais. Tal posicionamento consta da ADI 815/DF[13], de relatoria do Ministro Moreira Alves. Nesse julgado, afastou-se a tese do direito supra positivo – a qual poderia levar a uma desconstrução dos padrões objetivos constitucionais de julgamento, em nome de interpretações subjetivas a respeito de determinadas matérias.

Nessa esteira, o mandamento do art. 210, §1º, que institui o ensino religioso facultativo em escolas públicas de ensino fundamental, não pode ser desprezado. Por sua força constitucional, a sociedade precisa aprender a conviver com tal norma. Não é possível invalidá-la em nome de determinada leitura do princípio da laicidade estatal, pois, estando ambos os mandamentos fundamentados na ordem constitucional e gozando eles de igual relevância normativa, há que se encontrar uma compatibilidade entre ambos, ainda que a leitura mais fácil a ser adotada seja a imediata exclusão do ensino religioso.

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Sobre o autor
Bruno Dias Trindade

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRINDADE, Bruno Dias. O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sob a égide da Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3280, 24 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22070. Acesso em: 23 abr. 2024.

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