Desde meados de 2009, os sites de compras coletivas se tornaram muito populares dentre os consumidores brasileiros, dada a oferta de produtos e serviços por preço muito inferior ao que comumente se pratica no mercado. O mecanismo funciona da seguinte forma: por um período pré-estabelecido, o produto ou serviço fica disponível para ser adquirido por qualquer um que estiver regularmente cadastrado no site. Sendo de seu interesse, o consumidor realiza a compra online, recebendo em troca um cupom (também chamado de voucher) comprovando a aquisição e que talvez lhe dê o direito de utilizar o serviço ou apropriar-se do produto ofertado com a sua apresentação ao estabelecimento empresarial conveniado com o site de compras coletivas. Talvez porque para que seja realmente efetivada a compra, deverá haver um número mínimo de consumidores interessados na oferta. O administrador do site de compra coletiva, portanto, funciona como um intermediário, angariando clientes para as lojas que se submetem às regras de venda coletiva.
Parece um grande negócio para o consumidor: adquire um produto ou serviço, muitas vezes de qualidade e renome, por um menor preço e no conforto de sua residência. Realmente, quando todo o procedimento corre bem, é bastante vantajoso. E quando alguma coisa dá errado? Aí sim os problemas se iniciam.
De forma didática, serão apresentados os problemas numa ordem cronológica, desde a oferta até após a celebração do contrato. Assim, acreditamos que fique mais fácil compreender todas as dificuldades que envolvem esta relação consumerista.
Esclarece-se, desde logo, que qualquer violação aqui apontada importa em nulidade da cláusula contratual que ela estabeleceu e, caso não seja possível a manutenção do contrato, a sua resolução (que significa dizer que as partes retornam ao seu estado inicial) com a consequente extinção da relação de consumo. Extrai-se tais conseqüências do disposto no artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor.
O primeiro problema já se verifica no momento de interesse pela oferta. Na esmagadora maioria dos casos, o consumidor é obrigado a se cadastrar, inclusive fornecendo seu endereço eletrônico, sem ter acesso aos termos do contrato do serviço (os famosos “Termos e Condições de Usos e a Política de Privacidade”). Esta já é uma grave violação aos direitos do consumidor, haja vista que não se pode impor um serviço sem que o consumidor tenha ciência de suas especificidades. Ainda que seja um contrato de adesão, é direito do aderente de tomar conhecimento de seus termos.
Isto é, nitidamente, de decorrência lógica. Como pode alguém anuir com algo que não sabe? Não faz qualquer sentido. Além disso, em alguns sites a opção de anuência com os termos contratuais já vem selecionada, sem a opção do consumidor de não seleção.
Fere de uma só vez os quatro primeiros incisos do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor: o direito básico de proteção à segurança do consumidor (entendida aqui como segurança da correta prestação do serviço), à divulgação sobre o consumo adequado dos serviços, à informação adequada e clara sobre os diferentes serviços e a proteção conta métodos comerciais coercitivos.
Adicionalmente, viola previsão explícita do artigo 46 do mesmo diploma legal, que assegura ao consumidor o direito de tomar conhecimento prévio do conteúdo do contrato. E estabelece uma penalidade ao fornecedor que descumprir tal dispositivo: a ineficácia do contrato em relação às obrigações do consumidor que a ele estão vinculados.
Passado este ponto, estando o consumidor de acordo com o serviço oferecido, este já encontra dificuldades com a oferta em si. É que em muitos casos o desconto oferecido é falso, pois a maquiagem feita no caso faz parecer que o consumidor está diante de uma enorme promoção. Na verdade, o fornecedor se vale de uma prática abusiva de elevar o preço do produto ou serviço antes de conceder o desconto. Ou pior: diz existir um desconto fantasioso, pois na realidade o valor é o mesmo se contratado diretamente com o fornecedor.
Incorre nestes casos e demais que se assemelham na violação do disposto no artigo 39, X do Código de Defesa do Consumidor, que considera prática abusiva a elevação do preço de produtos ou serviços sem justa causa. Também pode o empresário gestor do site de compras coletivas violar o disposto no artigo 37, pois qualquer informação de caráter publicitário que se mostre inteira ou parcialmente falsa é considerada publicidade enganosa, conduta expressamente proibida. Em ambos os casos, viola o artigo 6º, III, que assegura como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços. No segundo caso, o direito básico do consumidor assegurado no mesmo artigo, mas no inciso IV, que assegura a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva.
Outro problema na oferta existe em relação ao número mínimo de compradores. Pelo menos em todos os casos que pudemos verificar, não havia a informação acerca do número mínimo de interessados na oferta para que ela se efetive. Ora, novamente, a informação passada é incompleta, defeituosa. Pode induzir o consumidor em erro, novamente configurando uma publicidade enganosa, podendo ele achar que a sua aquisição no site já concretizou totalmente o contrato de consumo, o que não é verdade. A venda fica condicionada a um número mínimo de compradores. O consumidor, portanto, fica na expectativa de adquirir um produto ou ter um serviço prestado até o fim do período de oferta. Há, também novamente, infração ao artigo 6º, III do Código de Defesa do Consumidor.
No próximo estágio, há a efetivação da compra. Ocorre que o consumidor se arrepende de tê-la efetuado, por qualquer motivo. Pode o consumidor exercer um dito direito de arrependimento? A resposta é afirmativa, desde que exercido no prazo de sete dias, conforme o artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. Afinal, a compra foi realizada fora do estabelecimento comercial, é realizada entre ausentes. Neste sentido:
O direito de arrependimento existe per se, sem que seja necessária qualquer justificativa do porquê da atitude do consumidor. Basta que o contrato de consumo tenha sido concluído fora do estabelecimento comercial para que incida, plenamente, o direito de o consumidor arrepender-se[1].
O impasse aqui apresentado se encontra na ausência de adequada informação ao consumidor de seu direito de arrependimento. Principalmente no caso de alguns sites que exigem que o consumidor pague uma multa pelo exercício desse direito. É cláusula flagrantemente abusiva, em descompasso com o artigo 51, II, IV e XV do Código de Defesa do Consumidor. Sendo um direito do consumidor, não cabe ao fornecedor condicioná-lo ao pagamento de multa, se a lei assim não o fez.
Além disso, cabe ressaltar que aqui não cabe a justificativa de que é da essência do negócio a sua celebração fora do estabelecimento comercial. O consumidor tem a possibilidade de contratar diretamente o fornecedor do produto ou serviço no estabelecimento comercial.
Havendo, portanto, o exercício do direito de arrependimento, deverá o fornecedor devolver os valores eventualmente pagos, a qualquer título, de imediato, monetariamente atualizados, nos termos do parágrafo único do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.
Digamos que estamos diante de um consumidor consciente, sabedor do seu direito de arrependimento. Como ele exercerá tal direito? A pergunta parece estranha, mas se revela importantíssima porque em quase todos os sites de compras coletivas está ausente um serviço de atendimento ao consumidor (SAC). Só é possível ter acesso a páginas com perguntas freqüentes (o popular Frequently Asked Questions – FAQ), com respostas genéricas, sem o condão de solucionar qualquer problema específico do consumidor que tiver alguma dúvida ou se sentir lesado. Novamente, outra transgressão ao artigo 6º, III e ao princípio básico da informação atinente a Política Nacional de Relações de Consumo presente no artigo 4º, IV do Código de Defesa do Consumidor.
Pois bem. Agora podemos mudar um pouco o enfoque. O problema deixa de acontecer no momento da aquisição do cupom (ou voucher) e passa a ocorrer no momento da prestação do serviço ou da entrega do produto. O fornecedor, por exemplo, deixa de cumprir sua prestação alegando problemas com os gestores do site de compras coletivas ou até mesmo verifica algum problema no próprio cupom. Quem nesse caso é responsável?
Para responder este questionamento, é preciso compreender primeiramente o conceito de fornecedor no Direito brasileiro. Nos termos do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Note que é um conceito bastante amplo, abrangendo praticamente todas as formas possíveis de contratação entre um comerciante e o destinatário final de sua mercadoria[2].
Sem sombra de dúvidas, o comerciante ou prestador de serviço responderá pelo vício ou fato do produto ou serviço objetivamente, salvo quando se tratar de profissional liberal, que terá sua responsabilidade apurada mediante a verificação da culpa. Estas são as previsões dos artigos 12 a 25 do Código de Defesa do Consumidor. No tocante aos produtos e serviços oferecidos por meio de compra coletiva, a esmagadora maioria não é realizada por profissional liberal (advogado, médico, arquiteto, etc.). Por isso, a existência de um dano para o consumidor independe da prova por este da culpa do fornecedor, bastando demonstrar o nexo causal entre o dano e a conduta do fornecedor. Prescinde, pois, do animus doloso ou culposo de causar o dano.
Exemplo prático para facilitar a compreensão do tema: adquiro através do site de compras coletivas “Kompras” um voucher para uma refeição em um restaurante. Chegando ao estabelecimento, ao invés de me servirem uma refeição, sou surpreendido pela entrega de um mísero café. Houve vício do produto? Evidente que sim. Portanto, independentemente de haver vontade de me lesar ou por mero desleixo, o restaurante responderá pelo dano que me foi causado, isto é, terei direito ao reembolso do que foi pago e, se for o caso, indenização pelos danos morais[3].
A questão agora se volta ao site de compras coletivas. Pode ser considerado fornecedor, isto é, integrante da cadeia de consumo? A resposta é sim. O primeiro argumento favorável é a decorrência lógica de todas as violações que já foram apontadas acima. Se não fosse fornecedor, não poderia ser-lhe aplicado o Código de Defesa do Consumidor e todo o esforço de reconhecer as nulidades contratuais e práticas abusivas teria sido em vão.
Além disso, é considerado fornecedor aquele que participa da distribuição do produto ou serviço. E este termo deve ser entendido de forma ampla. O site de compras coletivas, como se pôde conferir, atua na oferta, publicidade e aquisição do produto ou serviço. A sua atividade é regular, visa através dela à obtenção de lucro. Inegável, desse modo, que também se trata de fornecedor.
“Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo[4]”. E segue essa corrente de pensamento José Geraldo Brito Filomeno:
Nesse sentido, por conseguinte, é que são considerados todos quantos propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante, isto sim, a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de fornecedor nos casos de responsabilização por danos causados aos consumidores, ou então para que os próprios fornecedores atuem na via regressiva e em cadeia da mesma responsabilização, visto que vital a solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa a oferecer aos mesmos consumidores[5].
O problema é notado na postura de grande parte dos sites de compra coletiva, que alegam estar isentos de qualquer responsabilidade pelo fato ou vício do produto ou serviço. Cabe, nesse caso, requerer judicialmente a nulidade destas cláusulas, por serem abusivas, nos termos do artigo 51, I e III do Código de Defesa do Consumidor.
Ademais, na defesa de seus interesses, é assegurado ao consumidor demandar contra todos os fornecedores da cadeia de consumo de forma solidária, isto é, todos respondem pelo total da obrigação, e independentemente da verificação da culpa, salvo no caso dos profissionais liberais como já explicado acima, pelo vício do produto ou serviço[6].
No tocante ao processo judicial, vale ressaltar uma nova barreira que o consumidor deverá ultrapassar. A maioria desses sites não divulga suas informações, como sede, nome empresarial, endereço e demais dados. Ou se fazem, constam em locais de difícil acesso, sendo necessários inúmeros “cliques” do mouse para consegui-las. Referida conduta atinge indiretamente a garantia constitucional do acesso à justiça, prevista no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal e no artigo 6º, VII do Código de Defesa do Consumidor, pois impede que o consumidor tenha oportunidade de se voltar contra quem lhe causou dano, já que este não pode indicar o endereço pelo qual o fornecedor deva ser citado.
Por fim, o último e não menos importante problema que pode ocorrer é quanto ao mau uso das informações do consumidor pelos sites de compras coletivas. Muitos, sem qualquer autorização do consumidor, compartilham dados pessoais destes com seus parceiros ou demais fornecedores com o objetivo de encaminhar-lhes publicidade direcionada (o famoso spam). Esta é uma violação gravíssima à intimidade do consumidor, garantida pela Carta Magna em seu artigo 5º, X e ao artigo 6º, I e IV do Código de Defesa do Consumidor. Na sua ocorrência, pode ser pleiteada pelo consumidor indenização e cessação imediata da lesão, com base no próprio texto constitucional, bem como do artigo 6º, VI do Código de Defesa do Consumidor.
Portanto, esses foram alguns dos possíveis problemas que esta nova prática comercial poderá causar aos consumidores. Este artigo, obviamente, não tem o condão de esgotar o assunto, até porque a criatividade e as relações jurídicas de que dela advém são infinitas, dada a imprevisibilidade típica do ser humano como ser cultural. Assim, muitos outros problemas ainda irão surgir, devendo cada caso ser analisado pormenorizadamente, buscando a maior proteção possível do consumidor, em respeito ao espírito da legislação que o tutela.
Notas
[1] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 560.
[2] Cumpre salientar que aqui estamos utilizando o conceito mais singelo de consumidor como destinatário final da comercialização de produto ou da prestação do serviço, sem ignorar a existência das demais correntes doutrinárias. Todavia, para que este estudo não se estenda além do seu objeto, ficaremos com esta simples definição que, inclusive, é a textualmente prevista no artigo 2º caput do Código de Defesa do Consumidor.
[3] É certo que o parágrafo primeiro do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor traz alternativas à escolha do consumidor: substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso, restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos e abatimento proporcional do preço. Por questões didáticas, já foi escolhida no exemplo dado a opção que pareceu mais conveniente ao consumidor. No entanto, isto não impede que outra seja escolhida, pois, como dito, são alternativas.
[4] NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor: com exercícios. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 86.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 47.
[6] Quanto ao fato do produto, só serão solidariamente responsáveis o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, o importador e, em determinados casos, o comerciante, nos termos dos artigos 12 e 13 do Código de Defesa do Consumidor.