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Substancialismo, formalismo e argumentação jurídica

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4 Do necessário Equilíbrio entre Formalismo e Substancialismo e do papel da argumentação jurídica.

A necessidade de equilíbrio entre substância e forma na construção da norma pelo hermeneuta é questão excessivamente intricada e o debate a e aprofundamento no tema exige espaço muito maior do que aqui é possível.

Entretanto, seria leviano abordar dissertar sobre a necessidade de rompimento com um rigor formal na hermenêutica jurídica, com o objetivo de buscar a concretização dos valores substanciais acolhidos pela sociedade, sem, no mínimo, abordar alguns argumentos no sentido contrário.

Há que se concordar com Horácio Wanderley Rodrigues quando este afirma que a produção do conhecimento na área do Direito se revela “parecerística” buscando sempre comprovar a hipótese proposta, mas em nenhum momento testá-la. Segundo o referido autor, isto ocorre porque ela repete no campo científico a mesma estrutura da pesquisa profissional, qual seja a de buscar e/ou construir argumentos que comprovem a hipótese apresentada, ou seja busca-se “vencer a discussão”[19]. A pretensão de cientificidade exige que se passe pelo crivo da falseabilidade, que segundo Karl Popper, deve consistir em: a) experimentar possíveis soluções para certos problemas; b) tentar refutar a solução imaginada; c) se uma solução foi refutada com sucesso, tentar outra solução; d) se ela resiste à crítica, aceita-se a mesma temporariamente (até que eventualmente venha a ser refutada com sucesso).[20]

Neste sentido, autores como Habermas e Ely já pronunciaram divergências contra a corrente substancialista aqui defendida. Habermas faz severas críticas ao modelo construtivo do Direito sugerido por Dworkin por incorrer no que denomina de gigantismo do judiciário. Contrapõe-se à “leitura moral da Constituição” e recusa o processo hermenêutico orientado por princípios substantivos. Afirma que ainda não foi resolvida a questão de como esta prática de interpretação pode operar no âmbito da divisão dos poderes do Estado de Direito, sem que a justiça lance mão de competências legisladoras. Critica a “jurisprudência dos valores” desenvolvida na Alemanha e afirma que uma interpretação constitucional, orientada por valores e pelo sentido teleológico dos princípios constitucionais, ignorando o caráter vinculante dos sistema de direitos (aqui incluídos, presumivelmente, os formais) constitucionalmente assegurados, desconhece tanto o pluralismo das democracias contemporâneas quanto a lógica do poder econômico e do poder administrativo[21].

O referido autor, que inclusive afastava a auto evidência da necessidade de tribunais constitucionais, entendia que nos locais onde os mesmos eram previstos, não deveriam ser guardiões de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais, mas sim zelar para que a cidadania dispusesse de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza de seus problemas e a forma de sua solução[22].

Trata-se portanto, entre outras, da questão já anunciada linhas acima: delimitação do papel do intérprete na construção dos sentidos normativos, e impossibilidade de ignorar o trabalho do legislador nessa tarefa.

Com efeito, o papel do legislador, eleito, é justamente atuar como representante da sociedade, realizando opções políticas, inclusive no que diz respeito ao conteúdo concreto e alcance que os valores substanciais possuem apenas abstratamente no plano da constituição, bem como priorizando alguns valores em detrimento de outros conforme as circunstâncias  do momento da escolha.

Já o intérprete por excelência[23] da obra do legislador, o juiz, não é democraticamente eleito. Assim, o excesso de discricionariedade para o juízo no momento da construção do sentido da norma pode resultar em decisionismo ou, por assim dizer, num despotismo do poder judiciário.

É neste ponto que cresce em importância o desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica. O controle crítico das decisões judiciais é bastante complicado num contexto onde um dos elementos com maior grau de objetividade envolvido na argumentação, as regras, perderam em grande parte seu caráter determinante nas decisões judiciais.

Em artigo dedicado à relação entre o Estado Constitucional e a Argumentação Jurídica, Manuel Atienza afirma que o Estado Constitucional pressupõe a distribuição formal de poder, mas também a existência de certos conteúdos que limitam e condicionam a produção, a interpretação e a aplicação do Direito. Não bastaria a referência à autoridade (competência) e a procedimentos (validade formal), mas se requer também um controle quanto ao conteúdo material do Direito, o que supõe um incremento da tarefa justificativa dos órgãos públicos e uma maior demanda de argumentação jurídica.[24]

Num contexto positivista, a tarefa do juiz, pelo menos em tese, envolvia menos oportunidades em que a solução do caso dependia necessariamente da realização de valorações subjetivas. Como justificar, de forma racional, decisões baseadas fundamentalmente na ponderação de princípios?

Robert Alexy parte do pressuposto de que, no limite, a fundamentação jurídica sempre diz respeito a questões práticas, ou seja, àquilo que é obrigatório, proibido e permitido. O discurso jurídico é, por isso, um caso especial do discurso prático geral, caracterizado pela existência de uma série de condições restritivas, às quais a argumentação jurídica se encontra submetida e que, em resumo, se referem à vinculação à lei, ao precedente e à dogmática[25].

Para Alexy, o conceito de argumentação jurídica consiste na apresentação de um número de regras que devem ser seguidas e de formas que ela tem que assumir para que possa reinvindicar a condição de racional. Se a discussão está de acordo com as regras e formas porpostas seu resultado pode ser chamado de correto. Como caso especial do discurso prático, o discurso jurídico é limitado pelas leis (válidas), pelos precedentes e pela dogmática, ocorrendo num âmbito mais restrito que o discurso prático geral, o que possibilita um maior grau de racionalidade e controle[26].

O próprio Alexy ressalta que a racionalidade não pode ser confundida com objetividade absoluta ou com a noção de certeza. As formas, regras e condições especiais que circunscrevem a argumentação jurídica permite mitigar as incertezas que envolvem o discurso prático geral, mas não permite eliminá-las, o que não retira a relevância do tema ora discutido. Mesmo nas ciências naturais, costumeiramente opostas ao Direito como paradigmas de cientificidade a certeza é inatingível. Assim, não é a certeza, mas a conformação com determinados critérios condições e regras que garantiria à jurisprudência seu caráter racional.[27]

A teoria da argumentação de Alexy envolve um intricado complexo de regras e procedimentos através dos quais defende que seria possível atingir um nível razoável de racionalidade nas decisões judiciais. Não é possível, nem de forma resumida, a reprodução de tais regras no presente trabalho, entretanto é possível ressaltar que a questão da falseabilidade não passou despercebida por Alexy, o que pode ser observado  pelo seguinte trecho:

Se uma norma é apenas discursivamente possível, então mesmo com um consenso não se pode falar de justificação definitiva. Pode haver muitas razões para a rejeição de uma norma que tenha sido geralmente aceita até o momento. As interpretações de necessidade podem mudar. Pode-se revelar que o conhecimento empírico usado até aqui é inadequado. Certas conseqüências diretas e indiretas podem não ter sido levadas em conta. [...] As normas discursivamente possíveis, portanto, só devem ser consideradas justificadas por enquanto. Permanentemente, elas são falsificáveis.[28]


Conclusão

Desta forma conclui-se o presente trabalho, pugnando-se por uma postura hermenêutica que procure sempre visualizar a finalidade que fundamenta a adoção de determinada forma no Direito.

Discorda-se de Habermas quando afirma que não há que se buscar a proteção de uma ordem supra positiva de valores substanciais através de uma interpretação guiada pelos princípios constitucionais, porque se entende que aquela ordem efetivamente existe e deve sim ser protegida.

Entretanto, há que se proceder com cautela a fim de evitar excessos no sentido contrário. Assim como se fala em formalismo excessivo também é possível falar-se em substancialismo excessivo. Até porque o conteúdo substancial dos valores depende da visão subjetiva de cada indivíduo e uma abolição exacerbada da forma terminaria por privilegiar somente os mais fortes, capazes de impor sua visão aos demais indivíduos.

A relativização ou afastamento da forma deverá sempre incorrer num ônus de argumentação pela parte que a pretende. Neste sentido, a construção da teoria da argumentação jurídica ainda carente de desenvolvimento pela doutrina e de aplicação pela jurisprudência pode vir a auxiliar o hermeneuta na tarefa aqui proposta.

No contexto atual da ciência do Direito, e partindo dos pressupostos de que se vive em um Estado Constitucional de Direito e de que ordenamento jurídico é composto tanto de regras quanto de princípios, o desenvolvimento da teoria da argumentação jurídica e, quiçá, sua normatização, se revelam como instrumentos necessários para a redução das possibilidades de arbitrariedades provenientes das decisões judiciais. Merece especial atenção o uso pela jurisprudência do princípio da proporcionalidade, a fim de evitar que o mesmo se converta em instrumento de legitimação do decisionismo por parte do poder judiciário.

Enfim, deve-se buscar privilegiar a substância sobre a forma, mas mantendo-se o equilíbrio para não incorrer em arbitrariedades ou decisionismo. Mas para que tal objetivo venha a se concretizar faz-se necessário passar da teoria para a prática com a incorporação nas decisões judiciais das regras discutidas no debate teórico acerca da argumentação jurídica.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


Notas

[1]OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Formalismo-valorativo no confronto com Formalismo excessivo. In: Leituras complementares de processo civil. Fredie Didier Jr. (ORG.). Salvador: Podium, 2007. P. 351-373.

[2]LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p.297-299.

[3] BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Disponível na internet: <www.camara.rj.gov.br/setores/proc /revistaproc/ revproc2003/arti_histdirbras.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2010.

[4] Abstém-se este texto de realizar esta análise histórica. Para tal fim remete-se o leitor, entre outras obras, para: CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional.  Salvador: Juspodium, 2008; PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed. Madrid: Tecnos, 2005.

[5] BARCELLOS. op. cit.p.11.

[6]Ibidem.p.11. O conceito de ordenamento como sistema aberto também pode ser encontrado em: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. Malheiros: São Paulo, 2008.p. 544.

[7]ATIENZA, Manuel. Argumentacion Juridica y Estado Constitucional. In: Novos Estudos Jurídicos. v. 9. n.1. jan/abr. 2004. p.13.

[8]Reflita-se, por exemplo, em quão grave é a questão de uma decisão inválida e injustificada que se consubstanciou em uma súmula vinculante ou mesmo em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

[9]ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador,  Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 12, nov-jan, 2008. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/redae.asp>. Acesso em: 12 de novembro de 2010. p. 2.

[10] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 46-50.

[11]Ibidem.

[12]Ibidem.

[13]Ibidem.

[14]Exemplo: ADI - MC nº 896; RE 493234 AgR / RS; AI 360461 AgR / MG.

[15]ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador,  Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 12, nov-jan, 2008. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/redae.asp>. Acesso em: 12 de novembro de 2010. p. 20.

[16]Ibidem..

[17]OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Formalismo-valorativo no confronto com Formalismo excessivo. In: Leituras complementares de processo civil. Fredie Didier Jr. (ORG.). Salvador: Podium, 2007. P. 351-373.

[18]Ibidem.

[19]RODRIGUES, Horácio Wandeley. Karl Popper e a Ciência do Direito Revisitada. Disponível na internet: <http://aprenderdireito8.blogspot.com/2010/02/karl-popper-e-ciencia-do-direito.html>

[20]POPPER, Karl. A Lógica das Ciência Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. p.16-17

[21]HABERMAS, Jürgen. APUD STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 43-46.

[22]Ibidem.

[23]O judiciário não é o intérprete exclusivo da lei. A construção de sentido das normas é operada no âmbito dos três poderes, bem como pela sociedade civil. O operador do direito, principalmente, também atua neste processo, mas é fato que a interpretação realizada pelo judiciário opera reflexos com uma carga particular de imediatismo e efetividade.

[24]ATIENZA, Manuel. Argumentacion Juridica y Estado Constitucional. In: Novos Estudos Jurídicos. v. 9. n.1. jan/abr. 2004. p.11

[25]ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. Malheiros: São Paulo, 2008.

[26]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p. 275.

[27]Ibidem. p. 272.

[28]Ibidem. p.116.

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Sobre o autor
Luciano Roberto Bandeira Santos

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Luciano Roberto Bandeira. Substancialismo, formalismo e argumentação jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3311, 25 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22259. Acesso em: 17 abr. 2024.

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