O Brasil, no campo da tributação, vive dias angustiantes.
Qualquer documento apontando tributo a pagar - e são muitos - vira confissão de dívida e implica imediata inscrição em dívida ativa, prejudicando a defesa do contribuinte.
Aforada a execução fiscal, ela não pára jamais. É sempre definitiva.
A ausência de efeito suspensivo dos recursos na ação incidental de embargos à execução propicia a realização da garantia e, muita vez, os bens do devedor são excutidos sem que haja coisa julgada em prol da Fazenda Pública. A lesão se resolverá em perdas e danos.
A formação do título executivo da Fazenda Pública, ao contrário dos títulos judiciais que se fazem preceder de cognição e sentença, e ao revés dos extrajudiciais de direito comum, que são construídos pela técnica do consenso entre o credor e o devedor, é feita com AUTORITARISMO E UNILATERALIDADE, em razão das confissões fictas, da eliminação do contencioso fiscal, das falhas no sistema de provas do processo administrativo e da exigência, aqui e acolá, de depósitos e garantias para o exercício do direito de recurso, numa volta execrável do avelhantado costume do solve et repete.
A regulamentação das leis pelo executivo é pletórica e eivada de vícios. A pretexto de interpretá-las e aplicá-las, são gestadas à socapa normas jurídicas não previstas pelo legislador, com ofensa dos princípios da legalidade e da tipicidade.
Mas não nos alarguemos nessas demasias, posto que graves e inadmissíveis no Estado Democrático de Direito.
Estamos reunidos aqui com eméritos luminares do Direito Tributário e excelentes e qualificados debatedores, para discutir temas específicos.
São conferencistas o Prof. Alberto Pinheiro Xavier, o mais importante autor luso-brasileiro na área do Direito Tributário, cuja cultura precocemente haurida em Portugal ilumina as novas gerações daqui e d’além mar. O Prof. Antônio Carlos Rodrigues do Amaral, advogado tributarista e consultor, com formação em Harvard, portanto, conhecedor do "common law", berço do disregard (a desconsideração da pessoa jurídica) e do "Business Purpose" (o teste de finalidade), institutos que forcejam por entrar em nosso sistema jurídico. O Prof. Condorcet Rezende, advogado talentoso e parecerista, sócio do pranteado Dr. Gilberto de Ulhôa Canto, a quem, nesta ocasião, presto homenagens, e não apenas ao jurista, mas à pessoa humana extraordinária que encarnou e que tanta falta nos faz. Dr. Condorcet, apesar do nome, até hoje é lembrado pelos seus colegas em Londres, onde estudou, pela sua bonomia, humor e sabedoria. É portanto, outro conhecedor do "Common Law". O Prof. Paulo de Barros Carvalho, jurista e filósofo do direito, acumula a invejável condição de ser catedrático das Escolas de Direito da USP e da PUC, ambas de São Paulo, o que dispensa maiores apresentações. Saber notório independe de prova.
A Profa. Misabel de Abreu Machado Derzi, jurista profunda, versada nos textos do direito alemão, condição compartilhada pelo Doutor Gilmar Ferreira Mendes e pelo Prof. Alberto Pinheiro Xavier.
O fato carrega importância porque a "interpretação dita econômica" tem seu berço, agora, como antanho, na Alemanha. A Profa. Misabel Derzi veio de ser, até recentemente, Procuradora-Geral do Estado de Minas Gerais, onde alcançou notável reputação como a jurista das causas nobres. Vê assim, o verso e o reverso, as duas faces da moeda com determinada imparcialidade. O Prof. Gilmar Ferreira Mendes, constitucionalista renomado, com estudos na Alemanha, profundo conhecedor das decisões da Corte Constitucional Alemã e, atualmente, Advogado-Geral da União, terá o dever de revelar os aspectos positivos, segundo o seu entendimento, das leis complementares 104 e 105. O Prof. Gustavo Loyola, de formação econômica e jurídica, ex-presidente do Banco Central, cuja opinião incorpora a visão do Estado e da comunidade empresarial. Entre os debatedores temos advogados dos Escritórios Romano e Trocoli de Salvador e Barcelos e Tucunduva de São Paulo, além dos Professores da Universidade Federal da Bahia, Johnson Barbosa, autor de livro sobre a interpretação econômica e Elcônio Almeida, com doutoramento na Espanha. O primeiro é Ex-Procurador da Fazenda Estadual e hoje advogado. O segundo, consultor tributário do Governo do Estado da Bahia, estado cujo solo fundador do Brasil estamos a compartilhar. Como debatedor, igualmente, estão presentes, o Dr..............., representante da FIEB, com o olhar prestante dos empresários e contribuintes e o Dr. Marcelo Leonardo Lopes, Prof. de Direito Penal da UFMG, Presidente da OAB em Minas Gerais e Presidente do Colegiado de Presidentes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Representa, portanto, a consciência dos penalistas e a visão do sodalício mais importante do país.
Quais são os temas em discussão? Quais os vários aspectos que ostentam? Que conseqüências podem trazer, contrárias aos cidadãos e a suas organizações econômicas?
É sobre esses temas que doravante falarei. São dois: O SIGILO BANCÁRIO E DE DADOS e a chamada NORMA GERAL ANTI-ELISIVA.
O SIGILO BANCÁRIO E DE DADOS
Todos os países que não possuem os sigilos bancários e de dados, que os eliminaram ou que foram inábeis ao estruturar os sistemas de quebra dos mesmos, sofreram dramáticas fugas de capital, geraram tensões existenciais e regrediram politicamente.
A quebra do sigilo por motivos políticos é inaceitável e odiosa. A quebra por motivos fiscais deve cercar-se dos maiores cuidados e dar-se excepcionalmente, somente quando estejam configurados tipos delituais contra a ordem tributária. A quebra do sigilo para combater o crime organizado admite-se cum modus in rebus, pois a tal pretexto não se pode vulnerar - como tem sido feito - o direito dos cidadãos republicanos, acusados apenas de serem suspeitos. Provas e indícios veementes aos invés de suspeições, freqüentemente imaginárias é o que a sociedade requer, daí a inevitabilidade de uma apreciação judicial prévia e responsável, eis que até mesmo os juízes têm sido levianos. Estão a quebrar o sigilo bancário e de dados em sigilo, obstando aos advogados o inteiro conhecimento das medidas penais cautelares. A regulamentação da quebra do sigilo entre nós, ao meu sentir, deu-se de forma inconstitucional e paradoxal. A Fazenda Pública tornou-se integralmente fiel depositária dos dados relativos aos cidadãos e de suas organizações empresariais. Se auto-impôs, como se isto já não estivesse vedado, o dever de guardar sigilo e não divulgar os dados em que pese, de um lado, as licenças da LC 104 e, de outro, o caráter público dos processos administrativo e judicial, onde a vida dos vulnerados será descalvada. Da atuação do Estado e nossas incursões pela vida privada das pessoas físicas e jurídicas bem poderão advir lesões a direitos fundamentais e protegidos, atraindo a responsabilização civil do Estado, como veremos no decorrer dos trabalhos. Além disso, poderia a LC nº 105 dispor contra a Constituição na parte em que consagra direitos fundamentais insuscetíveis até mesmo de emendas constitucionais?
A NORMA GERAL ANTI-ELISIVA
Combater as fraudes e a sonegação é dever indeclinável da Administração. Os juristas, a sua vez, com elas não devem compactuar. Relembro aqui Gilberto de Ulhôa Canto que, certa feita, comentando uma sentença de minha autoria, quando estive juiz no Rio de Janeiro, escreveu as seguintes palavras: "Até eu que sempre fui conservador e tolerante com o Fisco, estou convencido de que é preciso detê-lo, enquanto há tempo e decisão. Longe de mim pretender nesta breve nota lançar os contribuintes contra ele, pois não tenho apreço pelo "poujadismo" e nem favoreço a sonegação. O que reclamo é a fiel observância da lei."
É como penso também, e esta é a hora para despertar nossas consciências.
A introdução de um parágrafo único ao artigo116 do CTN carrega ou não o caráter de "novità" como diriam os italianos? Inova a ordem jurídica ou apenas reforça uma sistemática já assente em nosso Código Tributário, em harmonia com a Constituição vigente?
Esta primeira questão é de supina importância.
Uma corrente vê no dispositivo a reiteração de que a fraude e a simulação de atos e negócios jurídicos para evitar, retardar ou diminuir o pagamento de tributos, está no campo da evasão ilícita, não sendo, portanto, o novel parágrafo, norma anti-elisiva, certo que a elisão está no campo da licitude. Outra corrente entende que se procura introduzir entre nós a chamada interpretação econômica, com certa dose de razão, e uma terceira corrente, embora sem chegar a tanto, com base na lógica Fuzzy e, na Teoria francesa de abuso de direito, ao tempo em que concede ao princípio da capacidade contributiva uma função demiúrgica, diz caber a Administração, para realizar o princípio da igualdade, descaracterizar os atos e negócios jurídicos indiretos, que eliminam, reduzem ou retardam o pagamento dos tributos, ainda que lícitos, se a intenção for puramente fiscal. Este me parece o ponto nevrálgico da discussão relativamente ao tema, do parágrafo único do artigo 116 do CTN, introduzido pela Lei Complementar nº 104. Três sub - temas haverão de merecer a análise dos especialistas:
Em primeiro lugar cumpre saber se o princípio da capacidade contributiva, penhor da isonomia fiscal, é apenas um limite ao poder de tributar, endereçado aos legisladores das três ordens de Governo que convivem na federação brasileira, daí não desbordando, ou se tem alguma eficácia positiva, capaz de conferir ao Estado-Administração, o poder-dever, no dizer de Santi Romano, de desqualificar os atos e negócios jurídicos subjacentes à tributação, praticados pelos particulares, envolvendo, logicamente a analogia detrimentosa em desfavor do contribuinte.
Em segundo lugar, cumpre responder se a adoção do negócio jurídico indireto menos oneroso, de forma lícita, sem desconchavo entre o "intentio facti" e o "intentio juris", sinal da simulação, caracteriza o denominado abuso de direito. No Brasil, Ricardo Lôbo Torres, a quem chamo, a título de brincadeira, de Richard Wolf Towers e Marco Aurélio Greco, acham que sim.
Segundo o Professor Alberto Pinheiro Xavier, a quem seguimos, ambos parecem basear-se em TIPKE, que em 1978, na Alemanha, passou a crer na Teoria do abuso de direito em sede de tributação. Às fls. 102 do precioso livro de Pinheiro Xavier denominado: TIPICIDADE DA TRIBUTAÇÃO, SIMULAÇÃO E NORMA ANTIELISA, colhe-se que TIPKE, virando a folha, baseia a sua Teoria no fato de os princípios da isonomia e da capacidade contributiva serem hostis a que sejam tratados de modo discriminatório atos ou negócios jurídicos de efeitos econômicos equivalentes, e que justificaria o recurso à integração por analogia na seara do Direito Tributário.
Dá-se que o Direito Tributário, como o Direito Penal, é feito por um catálogo de tipos, não se permitindo além deles o fechamento da ordem jurídica através de técnicas integrativas, ao suposto de que os casos não previamente previstos em lei venham a ser tributados como se estivessem previstos, em função de seus efeitos econômicos.
Em terceiro lugar, haveremos de examinar se é possível mesmo, a sério, existir em Direito Tributário, na estruturação do fato jurígeno típico, quando se tratar de situação jurídica, a Teoria do ABUSO DE DIREITO. Mais uma vez leciona Pinheiro Xavier que essa doutrina malsã, quer é restringir a função protetora da Tipicidade, aparentando respeitá-la. A conseqüência é que estraçalhada a função protetora do catálogo de Tipos, a capacidade contributiva extravasaria o TIPO LEGAL para atingir a situação extratípica, teoricamente praticada com abuso de direito, com a agravante de ser o Fisco o senhor da primeira palavra de acusação com espeque no ABUSO DAS FORMAS DE DIREITO PRIVADO, a que se referia em 1921 o nazista Enno Becker. Ora, não somos ingênuos a ponto de negar a utilização dissimulada de formas jurídicas alternativas para esconder dolosamente fatos geradores, mas paramos por aí, na área do ilícito, da simulação absoluta ou relativa, sem desmerecer os princípios da legalidade formal e material, ou seja, da tipicidade, garantias da segurança jurídica, da certeza e da previsibilidade da tributação. A isonomia é o princípio constitucional dominante, mas cumpre distinguir entre IGUALDADE NA LEI, função do legislador e pretensa igualdade de todos perante a lei, a juízo do Estado-Administração. Este último tipo de igualdade é fraudado pelo lobo esperto revestido com peles de cordeiro ou, o que seria um tanto patético, pelo Leão travestido de carneiro, cuja lã, como alega, vem sendo roubada pelos contumazes sonegadores. Sim, porque esta é a toada justificatória de mais poderes para o Fisco, que já os tem até em demasia. Deveras, os carneiros são os tosquiados contribuintes. Que os contribuintes possam, por opção do sistema jurídico, economizar custos fiscais, não se discute! (leasing em lugar da compra-e-venda). Que os contribuintes possam também, por ausência de proibição e inexistência de tipificação, pagar menos impostos, é não apenas conduta jurídica lícita, como dever gerencial irrenunciável. O mesmo ocorre no campo do direito do Trabalho: salários e impostos são custos empresariais, idênticos e, sem dubitação, a proteção do direito ao emprego é mais humanística e louvável que a proteção do direito do Estado, o grande moloch, ao tributo.
Estamos, no entanto, de acordo que há uma forma abusiva de economizar impostos. Ocorre quando há fraude ou simulação (contrato de sociedade dissimulando compra-e-venda de imóvel para fugir ao ITBI). Há nessa espécie a dissimulação de um negócio jurídico, a compra-e-venda imobiliária, por outro, contrato de sociedade, cabendo ao fisco desconsiderar o negócio simulado e a tentativa de evasão. Houve divérbio entre a realidade e a forma jurídica. Mas o caso é de evasão ilícita e não de elisão ou elusão, sempre lícita.
Aí precisamente o busílis da questão. O conceito de simulação, fingir fato jurídico inexistente, abrange o conceito da dissimulação, ou seja, esconder fato jurídico existente.
Portanto, o Parágrafo único do artigo 116 do CTN, a todas as luzes, diz respeito aos casos de dissimulação de negócios jurídicos normalmente tributáveis, com sede na Teoria dos vícios dos atos e negócios jurídicos em geral. Não se lhe dê interpretação lata, a menos que queiramos viver sob a tirania do Fisco e sob o arbítrio do Estado-Administração.