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O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri

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5 A UTILIZAÇÃO DAS CARTAS PSICOGRAFADAS E A SUA AFRONTA AO CARÁTER LAICO DA REPÚBLICA BRASILEIRA

Como visto no decorrer do presente trabalho, as cartas psicografadas representam a exteriorização de um ato de fé, o verdadeiro resultado da comunicação do mundo dos vivos, com o mundo dos mortos. Sendo quase que impossível desvincular a figura destas, da imagem do Espiritismo.

para que se dê alguma validade a um documento psicografado, é preciso, evidentemente, aceitar que um espírito encarnou em uma pessoa e que, portanto, foi este espírito que redigiu o referido documento. Considerando a absoluta ausência de provas científicas de que se trata de um espírito o redator do documento, somente a pura fé religiosa pode atribuir validade ao documento psicografado. (VECHIATTI, 2008).

De certo é que cabe ao Estado brasileiro assegurar a liberdade de religião de todas as pessoas, seja no seu foro íntimo, seja enquanto exteriorizada, entretanto, o conselho de sentença, formado por nossos pares, no momento em que é composto, tem o condão de transformar aqueles cidadãos, ainda que temporariamente, em servidores públicos por designação, atribuindo a estes determinando bônus e ônus, dentre estes os de respeitar os princípios da Administração Pública.

Uma possível utilização pelo conselho de sentença de cartas psicografadas para seu convencimento denota uma afronta ao caráter laico do Estado brasileiro, uma vez que tal medida “implica em inequívoca relação de aliança do Estado com a fé espírita e/ou toda outra que aceite eventualmente dito documento” (VECHIATTI, 2008).

A proibição do uso de tais cartas visa proteger outros princípios que vão além do princípio da laicidade estatal, como o princípio da isonomia, como forma de se evitar a atribuição de determinado privilégio a uma crença religiosa em detrimento das demais, principalmente no caso dos Tribunais do Júri, em que o corpo de jurados não têm a obrigação de motivar os seus votos, o que permite que

Em uma determinada sessão de julgamento pelo rito do Tribunal do Júri, ao ser utilizada a prova psicografada, um jurado possa, conforme sua consciência e os ditames próprios de justiça, absolver o réu justamente pelo simples fato da carta psicografada informar que não se tratou de crime e sim de um acidente. Ou então, outro jurado pode de plano entender pela condenação, visto que não acredita em “vida após a morte”. Da mesma forma como outro jurado pode querer analisar tal psicografia com todas as outras provas constantes dos autos, incluindo, o depoimento do médium que a escreveu, por exemplo. (GALVÃO, 2011, p. 132, grifo do autor.)

A partir do momento em que o Estado, naquela situação representado pela figura do conselho de sentença, admite uma carta psicografada como um meio de inocentar ou condenar alguém, desrespeita a própria liberdade religiosa, pois esta “tem relação com o direito do indivíduo e não com a Administração Pública, devendo esta apenas, respeitar e garantir a contemplação deste direito fundamental” (FERREIRA, 2010, p. 95), “afinal, numa República (res publica) o Estado não se confunde com as pessoas físicas que exercem o poder em seu nome” (SARMENTO, 2008, p. 197).

Como tudo no Direito, posições opostas a anteriormente explicitada se mostram presentes na doutrina pátria e, inclusive, no Congresso nacional.

Ao tratar sobre o tema, quando da análise do projeto de Lei nº 1.075, o qual tem por objetivo vedar o uso de cartas psicografadas como meio de prova no âmbito do processo penal, o deputado Marcelo Itagiba afasta a afronta ao caráter laico do Brasil, ao afirmar que

O resultado da aprovação da proposta será, pois, tirar o regime jurídico posto da condição laica em que está, para, com ela, colocar o Estado brasileiro em oposição expressa a uma crença religiosa. A atitude laica, vale dizer, pelo contrário da via que visa a proposta, “impele os indivíduos a seguirem os ditames da sua consciência (quer no caso em que se acredite que seja divinamente inspirada, quer pela razão, intuição, estética ou qualquer outro processo pessoal), em vez de seguir cegamente as regras, hierarquias e autoridades morais e eclesiásticas de uma dada religião organizada (GALVÃO, 2011, p. 97, grifo ao autor).

Ao contrário do que se possa imaginar, a proibição da utilização das cartas psicografadas com fundamento na “cláusula de separação” existente no Brasil desde o ano de 1890, representaria um avanço no quesito liberdade religiosa, e não um retrocesso, uma afronta.

É com base nessa liberdade que o indivíduo não pode ser submetido a uma crença ou descrença, tampouco uma sociedade e um réu, em um processo no Tribunal do Júri, ficar submetidos a possibilidade ou não de ter o seu julgamento composto por pessoas, representantes do Estado, que professem religião que creia na veracidade de cartas psicografadas, para ter o seu futuro e de outras famílias, definidos.

A atuação do Estado deve ser imune a atuações religiosas.

Nas palavras de Greenawalt (2011, p. 21)

Qualquer que seja a exata mistura do racional, não racional e do irracional nas interpretações religiosas, nenhuma perspectiva é compartilhada por todos os cidadãos, nenhuma perspectiva se baseia em métodos de justificativa e determinação de fatos que seriam acessíveis da forma necessária. Até certo ponto, a crença religiosa depende da fé, da experiência pessoal e da tradição característica; e as perspectivas religiosas podem enriquecer nossa compreensão cultural. Mas ao menos quando os cidadãos são coagidos, o Estado age injustificadamente, exceto se ele dispuser de razões que tenham poder sobre todos os outros cidadãos. As motivações religiosas não se encaixam nessa categoria. Elas não pertencem à democracia política. (...) Ninguém tem a intenção de que as pessoas sejam totalmente não influenciadas pelas interpretações religiosas. Qualquer pretensão nesse sentido seria absurdamente ingênua. O que se afirma é que as pessoas devem discutir questões políticas em público sem se basear em premissas religiosas e devem tentar tomar decisões de acordo com isso.

Como bem lembrado por FERREIRA (2010, p 96) “a idéia de liberdade religiosa não é para o Estado influenciar ou deixar ser influenciado por crenças religiosas”, mas uma forma de permitir que seus cidadãos possam crer ou não crer em qualquer religião, bem como a possibilidade da exteriorização de tal crença, sem que, para tanto, o Estado se deixe interferir por tais, o que alcança os jurados que compõem o conselho de sentença, verdadeiros espelhos do Estado.

Deste feita,

sendo a função jurisdicional, eminentemente estatal e pública, regida pelos princípios instituidores de um estado democrático de direito, qualquer manifestação de crença religiosa que venha a influenciar nesta função deve ser repudiada.(FERREIRA, 2010, p. 96)

Repudiada e proibida, como uma forma, sim, de manutenção da democracia estatal, dos princípios da laicidade e da isonomia, uma vez que não haveria privilégios de uma religião sobre determinada outra, e, sobretudo, a proteção às liberdades de crença e culta, por tanto tempo almejadas pelo homem.

 


6 CONCLUSÃO

Quando dá leitura deste trabalho de conclusão de curso, percebe-se a importância de um País, uma nação, manter as questões estatais em um lado, e as questões religiosas no lado oposto. A própria história do homem se encarrega em evidenciar tal necessidade.

O povo brasileiro era carecedor de tal condição e sentia isso, de modo que ao tomar o governo dos nossos colonizadores, logo trataram de instituir o Decreto nº 119-A, no ano de 1890, cujo intuito era o de oficializar a separação do Estado brasileiro de qualquer instituição religiosa, possibilitando uma maior liberdade religiosa, uma vez que quando do Governo do Império a liberdade de crença se mostrava limitada àqueles que professavam a religião Católica Apostólica Romana, a religião oficial do Brasil.

Assim como a “cláusula separatista” ganhou relevância constitucional, paralelamente, nossa Constituição também trouxe o Tribunal do Júri, onde os acusados seriam julgados por seus pares.

Apesar do julgamento no Tribunal do Júri ser feito pelos pares do acusado, os quais compõem o conselho de sentença, há de se recordar que, naquele momento, enquanto jurados, são considerados agentes públicos por designação, e por tal motivo, estão sujeitos a determinados ônus inerentes ao servidor público, como o de submeter-se aos princípios que regem a Administração Pública, bem como deverão, com equilíbrio, obedecer ao juramento realizado, utilizando-se, dentre outros aspectos, da imparcialidade.

Com a popularidade de uma nova religião, o espiritismo, e suas cartas psicografadas, estas chegaram ao respeitado Tribunal do Júri, onde a votação pelo conselho de sentença se da de forma imotivada, com simples “sim” ou “não”, influenciando os jurados, ao ponto de condenar ou absolver réus.

De certo é que a utilização das cartas psicografadas no âmbito do Júri, seja pela defesa ou pela acusação, representa verdadeiro retrocesso em uma liberdade há muito deseja e há pouco mais de um século conquistada.

Ao se permitir que tais cartas, as quais, como se viu no decorrer do texto, podem ser escritas com total interferência do médium escrevente, modifiquem a vida do acusado e de uma sociedade, temos uma limitação na liberdade religiosa, pois, frise-se aqueles sorteados a compor o conselho de sentença, apesar de nossos pares, naquele dado momento representam o Estado, são agentes públicos por designação, e, como qualquer outro agente público, não podem tomar sua decisão tendo por base seus preceitos religiosas.

 Desta maneira, com base em princípios basilares, como o da isonomia, imparcialidade, do estado laico, não se pode permitir que a sociedade fique à mercê da convicção religiosa do jurado. Isso sim representaria uma afronta do princípio da laicidade estatal e da liberdade religiosa dos cidadãos.


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Notas

[1]Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[2]Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[4] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[5] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[6] Disponível em http://www.cacp.org.br/censo%20religioso.htm. Acesso em 08 de março de 2012.

[7] Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Psicografia. Acesso no dia 05 de março de 2012.

[8] Disponível em http://www.100anoschicoxavier.com.br/biografia-de-chico-xavier. Acesso no dia 06 de março de 2012.

[9] Disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17, MI97055, 11049-TJ+RS+Mantida+a+absolvicao+de+acusada+que+apresentou+carta. Acesso em 06 de março de 2012.

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CALADO, Maria Amélia Giovannini. O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3309, 23 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22273. Acesso em: 26 nov. 2024.

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