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Astreintes: considerações sobre a origem e o desenvolvimento do instituto

30/08/2012 às 21:38
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A multa contemplada nos §§ 4º e 5º do artigo 461 do CPC configura medida de coerção direta aplicável com o fim de estimular o devedor à observância do provimento mandamental que o ordena a cumprir sua obrigação de fazer. Logo, mostra-se impossível compreendê-la enquanto meio típico de execução.

A multa mencionada nos parágrafos do artigo 461 não apresenta a natureza sancionatória frequentemente verificada em outras medidas de mesmo nome que o ordenamento jurídico pátrio contempla. Ao permitir a aplicação de multa em razão da inobservância de provimentos mandamentais ou do embaraço criado à efetivação de determinações judiciais, o parágrafo único do artigo 14 do CPC é um exemplo de norma que prevê a medida em análise como instrumento punitivo.

A medida de apoio aplicável em sede de tutela antecipada, na sentença ou em decisão posterior que ordena o réu a cumprir sua obrigação de fazer tem natureza coercitiva, ou seja, com ela busca-se atuar sobre a vontade do obrigado, na tentativa de compeli-lo à observância do comando judicial. É inconfundível com uma reprimenda[1], pois o objetivo dessa multa consiste em alcançar o cumprimento voluntário da prestação tutelada em juízo e não oferecer uma resposta a ato praticado pelo devedor.

Igualmente descabido falar em providência ressarcitória. Apesar de o respectivo montante poder ser exigido pelo titular do crédito em decorrência da inobservância da decisão mandamental, o valor fixado para a multa não se destina a reparar os prejuízos causados pelo inadimplemento ou adimplemento tardio. O caráter psicológico da medida também a diferencia da prestação tutelada e do eventual quantum indenizatório a ser pago pelo réu em virtude da conversão do bem específico em equivalente econômico.

Visando proporcionar melhor compreensão do instituto, serão, a seguir, tecidas considerações sobre o surgimento e a evolução da astreinte: figura do Direito francês que inspirou a multa em apreço, de forma a delinear seus principais contornos.

Com o advento do Código Civil francês, vigente a partir de 21 de março de 1804, consolidou-se, naquele ordenamento jurídico, o princípio ideológico nemo potest cogi ad factum[2]. Desde então, o emprego de constrições pessoais na execução de qualquer facere estava nitidamente vedado, restando, em consequência, comprometido o alcance da específica prestação devida ao credor.

Na tentativa de minimizar a vulnerabilidade da pretensão formulada, em juízo, pelo titular do crédito – até para que este não precisasse trilhar a tantas vezes insatisfatória via das perdas e danos – deu-se início à aplicação de medidas gravosas em face do devedor. Em termos mais precisos, os tribunais da França passaram a fixar multas de valor extraordinário que teriam seu montante aumentado indefinidamente caso o réu mantivesse a recusa em cumprir a obrigação tutelada no provimento jurisdicional.

A ideia concebida a partir da lei psicológica que proclama a preferência do ser humano por comportamentos demandantes de menor esforço ganhou corpo na jurisprudência francesa, dado o seu frequente êxito em obter do obrigado a exata conduta a que estava adstrito.  

Desse modo, foi sendo desenvolvido e aperfeiçoado o sistema das astreintes: multas de valor exagerado impostas, por unidade de tempo, em decisões judiciais, visando, sobretudo, induzir o devedor a realizar a obrigação de fazer acordada ou devida por força de lei. Note-se, todavia, que o eficiente mecanismo não foi, em seu princípio, bem recepcionado pela doutrina[3].

Muitos juristas do país europeu criticaram a utilização das astreintes em virtude da ausência de fundamento legal que as autorizasse. Ademais, encarado como quantum indenizatório, o excessivo valor da multa contrariava o princípio da correspondência entre dano e ressarcimento.

Essas objeções doutrinárias, no entanto, foram insuficientes para barrar o emprego do mecanismo. Considerando os resultados positivos alcançados por meio dele, os juízes continuaram firmes em dar-lhe uso até que a figura jurisprudencial recebesse o amparo da lei. Com isso, além da sua gradativa positivação, o passar do tempo permitiu o reconhecimento da natureza coercitiva presente nas multas em análise, afastando-as, assim, das medidas ressarcitórias.

Hoje, as astreintes representam um instituto consolidado e de larga aplicação[4] na França.

Encontram-se, basicamente, classificadas em provisórias e definitivas, caso sejam insuscetíveis de revisão. Quando provisória, o valor pode ser modificado ou extinto, adequando-se às circunstâncias da lide; se definitiva, o réu poderá ser exonerado somente em razão de força maior ou de caso fortuito. Outro dado digno de atenção refere-se à possibilidade da multa vir a beneficiar, em lugar do credor, instituições de assistência a pessoas carentes[5].

No Direito anglo-saxão, a efetividade das decisões judiciais que ordenam o devedor a cumprir sua obrigação de fazer é buscada através do sistema conhecido como contempt of court, o qual, não obstante sua proximidade com a astreinte do Direito francês, guarda características que lhe são próprias.

A técnica adotada pelos países da Common Law configura resposta à inobservância das injunctions[6].

Em linhas gerais, o contempt of court pode ser criminal ou cível, de modo a ensejar o emprego de uma sanção em face do ato dolosamente praticado em contrariedade ao comando judicial ou a aplicação de medida (como prisão, multa, restrição processual) destinada a compelir a parte ao cumprimento daquilo que lhe foi determinado. Na primeira hipótese, o mecanismo apresenta finalidade punitiva e refere-se a um fato passado; na segunda, a providência é nitidamente coercitiva, incidindo em razão da relutância do sujeito até que ele cumpra a ordem jurisdicional[7].

A partir dessas observações, é possível, ainda que muito superficialmente, comparar o instrumental francês com o sistema desenvolvido pelo Direito anglo-saxão, chegando-se a concluir pela maior amplitude deste.

Conforme anteriormente exposto, o sistema das astreintes limita-se à esfera cível e autoriza a imposição de medidas pecuniárias destinadas a agir sobre o ânimo do devedor, na tentativa de persuadi-lo a realizar a prestação tutelada pela decisão judicial. O contempt of court, por sua vez, mostra-se mais abrangente, englobando providências de natureza punitiva cabíveis na esfera criminal; ademais, autoriza, no âmbito cível, a utilização de meios que não, necessariamente, traduzem-se na atividade de fixar uma determinada quantia em dinheiro.

Desse modo, chega-se à conclusão de que a multa prevista no artigo 461, parágrafos 4º e 5º, do Código de Processo Civil, apesar de conter semelhanças relacionadas à finalidade coercitiva e à espécie de provimento jurisdicional que se pretende efetivar com a aplicação da medida pecuniária abarcada pelo civil contempt of court, configura instituto absorvido pelo ordenamento jurídico pátrio em razão dos resultados positivos alcançados com o sistema das astreintes.

O mecanismo francês representa, portanto, a grande fonte de inspiração[8] das Leis 8.952/94 e 10.444/02, responsáveis por dotar o processo civil nacional de medida de apoio[9] apta a encaminhar o devedor para o cumprimento do facere.

Com isso, o Direito brasileiro pôde dar um salto qualitativo no que concerne à tutela específica das obrigações de fazer, aumentando as chances, principalmente, do credor de certa abstenção ou de uma prestação personalíssima ver assegurada sua posição jurídica. Ao contribuir para a ultrapassagem do antigo obstáculo encontrado pelos magistrados no momento de garantir o exato bem devido por força das obrigações em apreço, os §§ 4º e 5º do artigo 461 permitem, hoje, aos juízes pátrios, enfrentar problema a longo tempo combatido pelo sistema da Common Law e por outros ordenamentos europeus, como o francês e o alemão[10].

Compreendidas as principais características da multa disciplinada pelo artigo 461 do Código de Processo Civil, passemos às considerações sobre a natureza dos atos relacionados à sua aplicação, a fim de proporcionar um entendimento mais completo acerca do instituto em análise.

Nesse ponto, é de fundamental importância abordar a clássica divisão elaborada por Giuseppe Chiovenda[11] na tentativa de distinguir os meios executivos, ou seja, os instrumentos colocados à disposição dos membros do Poder Judiciário com o propósito de, uma vez utilizados, satisfazerem no mundo fático as pretensões legitimamente aduzidas em juízo.

Conforme defendido pelo autor, existem os meios de coação e os meios de sub-rogação. Através das medidas executivas coativas, também chamadas de coercitivas, almeja-se obter o bem reclamado pelo titular do crédito a partir da colaboração do próprio devedor. Em outras palavras, persuade-se o obrigado, na tentativa de impulsioná-lo à prática do exato comportamento a que está adstrito. Já o emprego das medidas sub-rogatórias, ou substitutivas, possibilita ao magistrado satisfazer o direito do credor independentemente da participação do obrigado; a atividade promovida pelo órgão jurisdicional substitui o ato ou conjunto de atos devido em virtude do respectivo vínculo obrigacional.

No âmbito dos meios executivos de coação, cumpre, ainda, diferenciar as medidas de coerção direta das medidas de coerção indireta. Aquelas revestem o comando judicial de força intimidatória destinada a compelir o devedor à observância do respectivo provimento. As últimas, por sua vez, buscam punir a desobediência verificável em face da ordem expedida, para então coagir o obrigado a cumprir a específica prestação jurisdicionalmente tutelada.

Embora as medidas de coerção direta sejam referidas como exemplo de técnica executiva, o seu emprego apresenta-se incompatível com o que se considera execução forçada ou execução propriamente dita[12].

Por intermédio delas, o juiz visa agir sobre o ânimo do devedor e, a partir disso, fazer com que este observe a ordem judicial, conferindo ao titular do crédito o exato bem acordado ou decorrente de lei. A vontade e a conseqüente participação do obrigado configuram, portanto, elementos indispensáveis para que tais medidas promovam a satisfação do credor; absolutamente o contrário do observado na atividade executiva stricto sensu.

A multa contemplada nos §§ 4º e 5º do artigo 461 do CPC configura medida de coerção direta aplicável com o fim de estimular o devedor à observância do provimento mandamental que o ordena a cumprir sua obrigação de fazer. Logo, mostra-se impossível compreendê-la enquanto meio típico de execução[13].

Valendo-se do até aqui afirmado, é possível evidenciar que a utilização da providência pecuniária autorizada pelos dispositivos acima referidos não caracteriza atividade executiva propriamente dita. Ao aplicar a multa, por determinada unidade de tempo, visando constranger psicologicamente o obrigado a realizar a prestação devida, o juiz atinge de imediato a pessoa, e apenas em grau secundário o patrimônio do qual ela é titular, praticando atos que se afastam da execução forçada e vêm a caracterizar a chamada execução indireta.

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Em outros termos, o conjunto de providências tomadas pelo órgão jurisdicional, na adoção da medida pecuniária em análise, busca satisfazer o credor do facere através da colaboração do obrigado, podendo, somente a partir de um conceito mais amplo e menos técnico, ser identificadas como atos executórios. Trata-se, rigorosamente, de atividade intimidatória que antecede, procurando evitar, o início da execução.

Dito isso, restam destacados os principais contornos delineadores do instrumento acessório introduzido no artigo 461 do CPC com o advento das Leis 8.952/94 e 10.444/02.

O entendimento do propósito da multa coercitiva, a ciência do instituto motivador de sua absorção pelo ordenamento jurídico pátrio e a compreensão de como a atividade que lhe concretiza situa-se no processo esclarecem a importância da medida de apoio prevista nos parágrafos 4º e 5º do artigo 461. Com tais elementos em mente, o magistrado pode fazer melhor uso dos provimentos mandamentais, vindo a assegurar, com maior efetividade, o direito material legitimamente aduzido em juízo pelo credor da obrigação de fazer.

Atentos à relevância atribuível ao instrumento em foco, os diplomas legais acima mencionados preocuparam-se em introduzi-lo no processo civil brasileiro, sem, todavia, conferir ao sistema pátrio regulamentação necessária ao seu emprego. A leitura dos preceitos contidos no artigo 461 e a ausência de outros dispositivos que versem sobre o tema comprovam a escassez de detalhamento normativo referente à aplicação da medida pecuniária. Cumpre, também, ressaltar que impasses ligados à exigibilidade e a execução da multa imposta no comando judicial geram, até hoje, posicionamentos discordantes na doutrina e na jurisprudência.

Embora uma resposta adequada à grande parte dessas questões extrapole os limites traçados ao presente artigo, a postura omissiva do legislador é merecedora de alusão.


Bibliografia

ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 10ª ed.. São Paulo: RT, 2006.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2ª ed.. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1965.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução. 3ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1968.

MESQUITA, José Ignacio Botelho de. Breves considerações sobre a exigibilidade e a execução das astreintes in Revista Jurídica, Ano 53, n.º 338.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 23ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

SALLES, Carlos Alberto de. Execução judicial em matéria ambiental. São Paulo: RT, 1998.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de Execução. 21ª ed.. São Paulo: Leud, 2002.

_________ Curso de Direito Processual Civil. 40ª ed.. vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


Notas

[1] Embora a finalidade da multa em análise seja objeto de consenso entre a maioria dos autores, há quem lhe imprima caráter semelhante ao do contempt of court norte-americano, defendendo que, na verdade, ela visa ressaltar a autoridade do Estado, emanando, portanto, do dever de observância dos provimentos judiciais. Sobre tal posição dissonante, vide José Ignacio Botelho de Mesquita, Breves considerações sobre a exigibilidade e a execução das astreintes, in Revista Jurídica, Ano 53, n.º 338, p. 24.

[2] Ou princípio da intangibilidade do executado, conforme Araken de Assis, p. 496.

[3] A definição de astreinte e as críticas com as quais a medida conviveu, inicialmente, no âmbito jurídico-doutrinário francês são explicitadas por Enrico Tullio Liebman, p. 169.

[4] Conforme noticia Araken de Assis, p. 538, “... a Corte de Cassação, em 29.05.90, aplicou astreinte para constranger o devedor ao adimplemento de obrigação pecuniária. O precedente constitui notável avanço e ampliação do campo de atuação da técnica executiva.”.

[5] As situações nas quais isso é possível estão disciplinadas pela Lei francesa n.º 91.650 de 09.07.1997.

[6] Medidas judiciais típicas da chamada jurisdição de equity que consistem na “imposição da obrigação de praticar um determinado ato por força de uma determinação judicial, diferenciando-se, portanto, de outros remédios destinados à recomposição de danos através de valores pecuniários recolhidos do patrimônio do réu. Dessa maneira, em uma colocação funcional do problema, as injunctions são medidas de tutela específica, colocando-se em oposição àquelas meramente compensatórias ou indenizatórias, em que o remédio judicial consiste na recomposição do dano sofrido pelo autor.” Cf. Carlos Alberto de Salles, p. 197.

[7] Para explicações mais detalhadas sobre o instituto, vide também Carlos Alberto de Salles, p. 209 e ss..

[8] Além de determinante para a adoção da multa enquanto meio capaz de agir sobre a vontade do sujeito passivo da obrigação de fazer, a evolução da astreinte em seu país de origem continua a influenciar, ainda que tardiamente, o ordenamento jurídico nacional. Conforme registrado na nota n.º 19, a Corte de Cassação aplicou, em 1990, o instrumento em foco para compelir o réu ao adimplemento de obrigação pecuniária. Diverso não é o propósito da multa trazida pelo caput do artigo 475-J, a partir da Lei n.º 11.232/05, in verbis: “Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de 15 (quinze) dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de 10% (dez por cento)...”.

[9] No entender de Carlos Alberto de Salles, o instrumento em análise não configura medida de apoio, mas sim medida de execução propriamente dita. pp. 284 e 286.

[10] Cf. Enrico Tullio Liebman, p. 170.

[11] Contida na obra Instituições de Direito Processual Civil, 2ª ed., vol. I, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 288.

[12] “A execução forçada, em sentido técnico, tem como característica a virtude de atuar praticamente a norma jurídica concreta, satisfazendo o credor, independentemente da colaboração do devedor, e mesmo contra a sua vontade, que se despe de qualquer relevância.” Cf. José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil brasileiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 218.

[13] Chegando ao mesmo entendimento, Humberto Theodoro Júnior, p. 251: “... as multas, como meios coativos, não têm propriamente caráter executório, porque visam conseguir o adimplemento da obrigação pela prestação do próprio executado, compelindo a cumpri-la para evitar as pesadas sanções que o ameaçam. Não há nelas a presença da sub-rogação estatal que configura a essência da execução forçada.”.

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Sobre a autora
Marcela Pricoli

Advogada em São Paulo. Graduada pela Faculdade de Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRICOLI, Marcela. Astreintes: considerações sobre a origem e o desenvolvimento do instituto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3347, 30 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22522. Acesso em: 28 mar. 2024.

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