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Direito Internacional, Direitos Humanos e Relações Internacionais: uma interação complexa

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04/09/2012 às 18:46
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IV- O Direito no contexto das Relações Internacionais

Assim como o Direito Internacional, as Relações Internacionais encontram na Paz de Westfália o marco de estruturação do sistema interestatal, mas enfocam aspectos distintos. Sobretudo a perspectiva teórica realista que explica a convivência entre Estados por meio dos interesses nacionais e das relações de força e de poder. O Estado é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acumulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados. Essa aparente “ordenação” não segue a semântica convencional. Não há ordem na acepção clássica do termo, mas uma disposição dos Estados, ao mesmo tempo rígida e precária, que necessita da desordem, para que continue se fortalecendo e se perpetuando.

A essência desse comportamento egoístico, muitas vezes contraditório ao sistema de poder cimentado pelo próprio hegemon, não é escolhida, tampouco planejada, é imposta pela estrutura sistêmica, que se consolidou no longo século XVI, marco da exitosa expansão europeia sobre o mundo. A unidade estatal hegemônica convive na lógica do sistema interestatal capitalista, criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, segundo seus interesses mediatos e imediatos (FIORI, 2007). Isso porque, nesse ambiente de constante luta pela acumulação, a ordem leva à entropia e, consequentemente, à perda da capacidade coercitiva do líder.

As evidências históricas apontam para os entes estatais como organismos, em incessante e permanente pressão competitiva, que são levados a defenderem-se e a desenvolverem-se mediante movimentos expansivos. Essa necessidade de transbordamento das fronteiras nacionais norteia a imperiosidade da acumulação interminável de poder e de riqueza, que, em uma perspectiva marxista, seria determinada internamente pela classe detentora do poder político. Aquele organismo estatal, que consegue maior influência sobre os outros, e isso se torna consenso, dita a lógica do sistema, que somente sobrevive com a promoção constante da desordem, ora interrompida, ora ocasionada pelas explosões expansivas, momentos de mudanças sistêmicas. Essa premissa de que a desordem leva à ampliação do poder estatal, dentro da esfera de intensa pressão competitiva, contribui para o entendimento de todo o desenrolar histórico desse processo, desde o período da formação dos Estados nacionais europeus até seus desdobramentos atuais.

A atual configuração da política internacional gravita de dois pilares: um econômico, cujo núcleo é o dólar como moeda internacional, e um político, cujo epicentro é a Organização das Nações Unidas, ambos constituídos pela hegemonia estadunidense no contexto do pós- Segunda Guerra Mundial. A dominação financeira é exercida de forma exclusiva pelos estadunidenses, enquanto a política institucionalizada opera em função de um condomínio que reúne as potências vencedoras do conflito mundial, conhecido como o Conselho de Segurança da ONU, único órgão detentor da prerrogativa excepcional de autorização do uso da força na seara internacional, em nome de uma pretensa segurança coletiva, a qual serve aos desígnios daqueles cinco países possuidores do poder de veto (Estados Unidos, China, Rússia, França e Grã-Bretanha).

Dentro deste contexto, a prática internacional, pautada pela política, contradiz frequentemente sua própria institucionalização, regulada pelo direito, mostrando a simbiótica relação, a qual Malcom Shaw faz referência (SHAW, 2008: pp.67-68):

“Law is not the only way in which issues transcending borders are negotiated and settled or indeed fought over. It is one of a number of methods for dealing with an existing complex and shifting system, but it is a way of some prestige and influence for it is of its very nature in the form of mutually accepted obligations. Law and politics cannot be divorced. They are not identical, but they do interact on several levels. They are engaged in a crucial symbiotic relationship.”.

A interação entre política e direito é reverberada na relevância que os direitos humanos alcançaram no panorama geopolítico atual. O discurso consensual que envolve a necessidade de proteção dos valores humanos leva Koskenniemi a afirmar o caráter ideológico que os cerca, como se fossem a nova religião da modernidade agnóstica (KOSKENIEMMI, 2004: p.15): “Human rights, it is often said, are the religion of (an agnostic) modernity.”. Com fulcro numa perspectiva que mescla elementos do realismo com outros do marxismo, Fiori escancara a contradição entre teoria e prática, ao explicar a proeminência que valores ditos universais, como os direitos humanos, ganharam no contexto hodierno, como garantias amplas e vagas, passíveis de distorção pelos Estados em prol da efetivação de seus interesses nacionais, que são, na grande maioria das vezes, determinados pelas elites que controlam os governos internos (FIORI, 2011):

“Em última instância, este também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou - depois do fim da Guerra Fria - num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se autoatribuem o “direito natural” de arbitrar e difundir, pela força, a taboa ocidental dos direitos humanos.”.

O autor complementa o pensamento, destacando a política por trás do argumenta da universalidade na aplicação das normas protetoras de direitos humanos (FIORI, 2011):

“Independentemente do que se pense sobre o fundamento e a universalidade dos direitos humanos, não há a menor dúvida que, do ponto de vista das relações entre os Estados dentro do sistema mundial, eles sempre são esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas e geoeconômicas das grandes potencias. Por isto, as decisões sobre este assunto nos foros internacionais são sempre políticas e instrumentais e variam segundo a vontade e segundo os interesses estratégicos destas grandes potências.”

A identificação da presença explícita da política na aplicação do direito leva autores que tendem a valorizar o normativismo (o poder efetivo da norma, independentemente das relações sociais) e, por isso, comparam o direito internacional ao direito interno dos Estados, a encontrar antinomias irresolúveis entre o direito e a soberania estatal, advogando sempre pela mudança dos paradigmas da ordem internacional. Ferrajoli, ao analisar o fenômeno que considera a crise da soberania no mundo atual, chega a esta conclusão (FERRAJOLI, 2010: p. 126):

“Voy a defender la tesis de una antinomia irresoluble entre soberanía y derecho: una antinomia no sólo en el ámbito del derecho interno de los ordenamientos avanzados, donde la soberanía se encuentra en conflicto con el paradigma del Estado de derecho y de la sujeción a la ley de cualquier poder, sino también en el ámbito del derecho internacional, donde ha encontrado en contradicción con las moderna cartas constitucionales internacionales y, en particular, con la Carta de la ONU de 1945 y con la Declaración universal de derechos humanos de 1948.”

Alain Pellet ressalta a incompatibilidade, que entende haver, entre a proteção dos direitos humanos (das vítimas) ante o Estado (violador), haja vista a estrutura westfaliana, que só permite a responsabilização do indivíduo em casos específicos, previstos no Estatuto de Roma (PELLET, 2003: p. 673):

“A proteção internacional do indivíduo acarreta uma grave ameaça à soberania do Estado. (...) Por outro lado, os Estados reconhecem dificilmente a ideia de uma proteção internacional que jogaria em definitivo contra eles próprios. Nestas condições, é previsível que eles, na qualidade de legisladores internacionais, não aceitem sem reticências o estabelecimento de uma intervenção exterior neste domínio ainda que fosse a da comunidade internacional. Sem recusarem publicamente, eles manifestam dúvidas sobre a sua necessidade ou veem aí um risco de manipulação política.”

Ao abordar as contradições que o postulado da soberania gera no direito internacional, o Ferrajoli vai mais longe e atesta o fracasso e a inefetividade das instituições internacionais, pois as considera terceiros impotentes nas relações de poder interestatais (FERRAJOLI, 2010: p.147): “Quiere decir, em otras palabras, que el ordenamiento internacional actual es ineficaz por el hecho de que sus órganos non son ya um tercero ausente, sino um tercero importente.”.

A política que pauta as relações internacionais e, por consequência, reflete no produto deste meio social, o Direito Internacional, ainda é vista por muitos juristas como um defeito, uma imperfeição, uma assimetria. A proclamada ineficácia da institucionalização não é novidade para o Direito Internacional, outrora criticado pelas mesmas razões, que questionam sua efetividade, uma vez que persistem a noção weberiana de coercibilidade e a comparação com o direito interno, que reclamam a existência de um poder hierarquicamente superior dotado do monopólio do poder de coerção, capaz, assim, de dar juridicidade ao direito. Ao contrário, o elemento político, que parece distorcer a efetividade do direito, precisa ser analisado como um aspecto inerente à estrutura que rege o ramo jurídico internacional, cuja lógica é completamente distinta do regime jurídico dos Estados. Dessa forma, a aplicação dos direitos humanos no direito internacional ilustra o raciocínio que concluirá este artigo.


V- Conclusão: A efetividade dos Direitos Humanos no Direito Internacional

Diante do que foi exposto ao longo do texto, é possível chegar a algumas considerações a título de conclusão.

Em primeiro lugar, ao se tratar de direitos humanos no cenário internacional, é imperioso considerar seu histórico processo de construção. Estas garantias do ser humano não lhe são inerentes ou naturais, mas moldadas ao logo da trajetória da luta de classes, inicialmente dentro dos territórios do Estado nação e, posteriormente, refletidos na esfera internacional. Por terem um conteúdo relativo e modulável, que varia no tempo e no espaço geográfico, sua concepção varia de acordo com os interesses das elites que controlam o poder político nos Estados. Internacionalmente, os direitos humanos são a expressão das vontades das potências que detêm o controle do sistema internacional e seu discurso pode justificar tanto a proteção quanto à violação das garantias. Em virtude desta complexidade, sustenta Douzinas que (DOUZINAS, 2009: p. 17): “Permitam-me repetir: os direitos humanos têm apenas paradoxos a oferecer.”.

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Em segundo lugar, após o final da Segunda Guerra Mundial e com a decadência do pensamento positivista clássico, o indivíduo passou a ganhar espaço na ordem westfaliana, tendo sua relevância aumentada exponencialmente com a desmobilização da Guerra Fria. As transformações e as novas tendências incorporadas pelo Direito Internacional contemporâneo seguem a direção da expansão do sistema de proteção do indivíduo. O maior e inédito desenvolvimento normativo e institucional galgado pela matéria não conseguiram, no entanto, evitar as violações sistemáticas das garantias humanísticas dentro dos territórios internos e pelos Estados. As constantes distorções jurídicas, perpetradas na maioria das vezes pelas grandes potências, fazem ressurgir os questionamentos sobre a efetividade do Direito Internacional, tendo em vista que a maior tutela dos direitos humanos não alterou a estrutura regulatória sob a qual reside o postulado da soberania, do qual decorrem o princípio da igualdade jurídica entre os Estados e o da inexistência de um poder central hierarquicamente superior. Assim, surgem indagações revestidas de falsos enigmas, como a de Koskenniemi (KOSKENNIEMI, 2009: p. 271-272): “Como é possível (a aplicação d)o direito entre Estados soberanos?”.

Para respondê-las, portanto, é preciso ter entender que não se pode comparar noções semelhantes de efetividade em ordens jurídicas distintas. Para além da noção weberiana da coerção, cabe analisar o centro para o qual o direito busca atingir. Enquanto que o direito interno tem como objeto a relação entre Estado e sociedade, conjunto de indivíduos; o direito internacional tem como núcleo a relação entre os Estados soberanos, os principais destinatários das normas. Ainda que na perspectiva marxista adotada por este artigo ambos os regimes jurídicos tenham a mesma origem, a luta de classes (dentro de território e o reflexo que tem na formação do interesse nacional, bem como entre os Estados), é imperioso distinguir cada esfera, sob pena do direito internacional ter sua natureza jurídica contestada.

Em terceiro lugar, as normas e as instituições internacionais têm sua efetividade que, entretanto, não se manifesta como aquela nos limites do Estado nacional. A forte e explícita influência que a política internacional exerce sobre a organização das relações interestatais ocasiona uma margem maior do não cumprimento ou de violação do direito por parte dos países dominantes, o que não descaracteriza o valor jurídico das normas. Ulrich Preuss, neste sentido, ressalta a juridicidade da regulação internacional, chamando a atenção para a história do direito, comparada com a do Estado soberano (PREUSS, 2009: p. 73):

“Parece que os Estados, mesmo quando não se importam com uma norma jurídica, tratam o fato da violação do direito com tal inteiramente como um ponto de vista importante em suas ponderações. Todavia, isto é menos surpreendente do que geralmente suposto, pois os Estados, desde os primórdios de sua aparição histórica como membros de uma sociedade internacional, ordenaram suas relações preponderantemente por meio do direito. O fato que entre eles não havia, e até hoje também não, um mecanismo institucionalizado de coerção, uma analogia ao soberano poder de coerção intraestatal, não os impediu de ver o caráter de suas relações uns com os outros como algo cunhado, não de forma exclusiva, mas em grandes proporções, pelo direito internacional. De fato, como comentado acima, é também errônea a concepção de que ao conceito de direito pertenceria a coercibilidade através de um soberano. Quando muito, e desprezando-se exceções, isto pode ser afirmado para o direito positivo. Mas, como se sabe, o direito como meio de ordem social existia há muito tempo antes do surgimento do Estado moderno e de seu poder autoritativo legislativo e executivo. Observando-se a história da humanidade, os últimos 350 anos- a era da estabilidade soberana- surgem como exceção que foge à regra.”.

Se o direito internacional pode ser comparado em alguma medida com o interno, caberá fazê-lo em relação a seu fundamento, a luta de classes. O complexo papel do direito internacional, que vai muito além da capacidade de coagir, pode ser ilustrado na transplantação do pensamento de Márcio Bilharinho Naves para a esfera internacional (NAVES, 2012: p. 15). O direito é fruto da dialética entre alienação e resistência, entre opressor e oprimido, e serve, ao mesmo tempo, como instrumento de reprodução da dominação de uma classe, mas também como plataforma, na qual são pautadas as reivindicações de mudanças, de alteração da ordem vigente. Assim com vige na esfera interna, também demonstra seu valor internacionalmente, quer quando utilizado pelas grandes potências para atingir seus interesses, quer quando reclamado pelos outros Estados em caso de violações e de pleitos por mudanças.

Por fim, dessa forma, é imperioso entender a lógica que pauta a aplicação da proteção internacional dos direitos humanos para não subestimá-la nem supervalorizá-la. Os direitos humanos são conquistas dos homens, em meio à luta de classes, cujo conteúdo é determinado pelo momento histórico e pelos valores impostos pela classe dominante. Tendo em vista sua aplicação em um contexto jurídico, regido pelo postulado da soberania e dos princípios dela decorrentes, os quais permitem grande influência da política dos Estados na organização institucional, e em um panorama político, no qual prevalece o equilíbrio de poder, buscando cada ator estatal a materialização de seus interesses nacionais, é perfeitamente plausível admitir sua efetivação peculiar, que pode atender quer à justiça social, quer aos interesses das grandes potências.

O caráter explícito que a política desempenha na disciplina jurídica internacional não reflete uma debilidade institucional, é parte da dinâmica. Em virtude disso, o inédito desenvolvimento normativo da proteção dos direitos humanos precisa ser louvado, sobretudo no tocante à sua juridicização, como expressa a otimista e realista posição de Cançado Trindade (TRINDADE, 1997: p. 176):

Enfim, ao voltar os olhos tanto para trás como para frente, apercebemo-nos de que efetivamente houve, nestas cinco décadas de experiência acumulada nesta área, um claro progresso, sobretudo na jurisdicionalização da proteção internacional dos direitos humanos, – mas, ainda assim, também nos damos conta de que este progresso não tem sido linear. Tem havido momentos históricos de avanços, mas lamentavelmente também de retrocessos, quando não deveria haver aqui espaço para retrocessos.

Diante do que foi exposto, pode-se concluir que análise da efetividade da proteção internacional dos direitos humanos passa pela percepção da lógica peculiar do Direito Internacional, diversa daquela do direito interno. Em um contexto complexo de incessante busca pela acumulação de poder, no qual a política das nações possui um papel explícito na efetivação jurídica, a (des) ordem pode funcionar melhor que um ordenamento jurídico hierarquizado (ZOLO, 2002: p. 443): “In situations of high complexity and turbulence of environmental variables, it is more functional to live with a certain degree of disorder than to seek to impose a perfect order.”.

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Sobre o autor
Luiz Felipe Brandão Osório

Graduado em Direito pela UFJF. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Professor de Direito Internacional na UFRJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. Direito Internacional, Direitos Humanos e Relações Internacionais: uma interação complexa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3352, 4 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22536. Acesso em: 19 nov. 2024.

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