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A Seguridade Social e a (des)proteção à família e à adolescência: descompassos entre as leis ordinárias e a Constituição quanto ao salário-família

03/09/2012 às 19:59
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O salário-família, pago apenas aos empregados não-domésticos, avulsos ou aposentados em certas condições – e desde que tenham filhos menores de 14 anos ou inválidos –, é devido a todos os dependentes previdenciários de todos os segurados da Previdência Social.

A Previdência Social é uma instituição fortemente associada, no imaginário brasileiro, à terceira idade. Quando se fala em qualquer questão previdenciária, o que vem à mente da grande maioria das pessoas é o amparo ou desamparo a pessoas de cabelos grisalhos, em geral aposentados ou viúvas. Essa, porém, não é a única função da Previdência, que tem o dever constitucional de amparar pessoas de todas as faixas etárias.

Entre as muitas situações a que se pode recorrer para fins de demonstração dessa assertiva, interessa aqui, particularmente, uma. A Constituição da República, ao tratar da proteção especial que assegura às crianças, adolescentes e – desde a Emenda Constitucional 65 de 2010 – também aos “jovens”, seja isso o que for, diz o seguinte:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 3º - O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

Que direitos previdenciários cabem às crianças e adolescentes? Diversos, que podem ser divididos, para fins didáticos, em duas categorias.

Na primeira – composta por direitos cujo titular é a própria criança ou adolescente – , encontram-se a pensão por morte e o auxílio-reclusão. Essas prestações, como se sabe, são devidas à criança em caso de óbito ou privação de liberdade do(a) genitor(a) ou de irmã(o) de quem ela dependa. No caso dos adolescentes, há direito, ademais – ainda na condição de dependente – , à pensão pela morte de cônjuge ou companheiro(a), em vista do absurdo art. 1.517 do Código Civil, que admite o casamento aos 16 anos. Na condição de segurado, o(a) adolescente pode ser titular de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente, salário-maternidade, salário-família e seguro-desemprego – em suma, todos os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, exceto aposentadorias por idade, por tempo de contribuição e especial, face à óbvia impossibilidade matemática de cumprir os requisitos de acesso a esses benefícios antes da vida adulta. Mas, como não poderia deixar de ser, terão direito ao cômputo do trabalho realizado na adolescência para fins de acesso a essas prestações, com a exceção teórica da aposentadoria especial, face à proibição de trabalhos penosos (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, art. 67, II), perigosos ou insalubres (Constituição, art. 7º, XXXIII) antes dos 18 anos[1].

Na segunda – constituída por benefícios cujos titulares são os pais, mas que são pagos em razão da existência de crianças ou adolescentes e no interesse dos mesmos – , estão o salário-maternidade e o salário-família.

A legislação previdenciária e a prática do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), contêm, no entanto, alguns descompassos com o que na Constituição se estabelece – descompassos que, para fazer apenas mais uma observação situada no terreno da obviedade, só podem ser resolvidos mediante a prevalência das disposições constitucionais e a desconsideração de tudo que as contrarie.


Os vácuos de cobertura do salário-família (1): titularidade

Na redação original da Constituição, datada de 1988, ficava estabelecido como direito dos trabalhadores urbanos e rurais o “salário-família para os seus dependentes” (art. 7º, XII) – ou seja, previa-se a titularidade do benefício pelo dependente, e não pelo segurado. Embora esse inciso tenha sido alterado por meio da Emenda Constitucional 20 (1998), passando a prever “salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei”, a mesma emenda serviu de instrumento à alteração do art. 201, que, em seu inciso IV, passou a prever que a Previdência Social garantirá, nos termos da lei, e obrigatoriamente, “salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda”.

À primeira vista, esta seria uma questão secundária: uma vez que o salário-família, por lei, só é devido até o dia em que o(a) filho(a) completa 14 anos, o pai e/ou a mãe é que teriam, no fim das contas, a prerrogativa de administrá-lo. Uma análise um pouco mais detida do assunto mostra, porém, que o pagamento em nome do segurado se presta a dois objetivos tão inconstitucionais quanto ele próprio: facilitar a sonegação do benefício aos trabalhadores não-empregados e elidir a imprescritibilidade garantida pelo Código Civil às crianças e adolescentes[2].

O último aspecto é de óbvia percepção e não demanda maiores digressões: se o titular do benefício fosse a pessoa em razão de cuja existência ele é devido (criança, adolescente ou adulto inválido civilmente incapaz), os prazos prescricionais ou não existiriam, ou começariam a correr muito mais tarde, o que aumentaria sobremaneira os valores devidos a título de salário-família porventura inadimplido. Mantendo – contra expressa dicção constitucional, como demonstrado – o pai e a mãe como titulares, o Estado assegura a fluição de prazos decadenciais e prescricionais que o favorecem[3].

O outro não é tão óbvio e envolve algumas sutilezas. Manter como titular do salário-família o(a) trabalhador(a) segurado – e não seus dependentes – permite ao Estado transferir a responsabilidade pelo pagamento[4] do benefício ao empregador ou, no caso dos avulsos, ao órgão gestor de mão de obra ou ao sindicato, procedimentos previstos nos arts. 68 e 69 da Lei 8.213. Se o salário-família fosse pago em nome dos dependentes, isso não seria possível, já que eles não constam da folha de pagamento das empresas e nem seria factível incluí-los nela para esse fim.


Os vácuos de cobertura do salário-família (2): abrangência

Essa transferência de responsabilidade facilita duas práticas inconstitucionais: a cessação do salário-família em caso de desemprego e sua não-concessão aos segurados especiais, contribuintes individuais, facultativos e empregadas domésticas.

Se não existe previsão legal de pagamento do benefício em exame diretamente pelo INSS, o trabalhador que perde o emprego deixa de recebê-lo, mesmo que mantenha o status de segurado. Os que trabalham por conta própria ou em regime familiar nem chegam a ter acesso a ele. Tudo porque onde está escrito segurado, sucessivos governos e legislaturas insistem em ler empregado ou avulso – interpretação até possível quando o benefício em exame estava previsto apenas no art. 7º, dado que, embora seu caput fale em “direitos dos trabalhadores”, trata, em regra, de garantias típicas do trabalho assalariado; mas insustentável a partir de 1998, face ao art. 201, IV.

O que sucessivos governos têm demonstrado, ao contrário, é uma verdadeira obstinação em impedir que essa inconstitucionalidade seja corrigida. A extensão do salário-família aos segurados especiais constava da redação original da Lei 8.213 aprovada em 1991 pelo Congresso, mas o dispositivo que a veiculava foi vetado por Collor. Quinze anos depois, em 2006, o Legislativo votou uma lei (a 11.324) assegurando-o às empregadas domésticas (art. 3º), mas, dessa vez, quem vetou a ampliação do direito foi Lula.

Essa ânsia restritiva se manifesta também na extrapolação do poder regulamentar. A Lei 8.213 determina (art. 65 e parágrafo único) o pagamento do salário-família pelo INSS a todos os aposentados por invalidez e idade e aos detentores de aposentadoria especial ou por tempo de contribuição que tenham mais de 65 (homens) ou 60 anos (mulheres). Todavia, o art. 82, incisos I a IV do Decreto 3.048 limita aos empregados não-domésticos e avulsos o direito à percepção desse benefício independente de idade mínima quando em usufruto de aposentadoria por invalidez, impondo aos aposentados nessa modalidade nas demais categorias os pisos etários de 65(h)/60(m) anos, em mais uma afronta escancarada à Constituição e à própria lei ordinária.

Já onde o constituinte escreveu dependentes, o legislador – como se a restrição por categoria de segurado não fosse bastante – resolveu ler filhos menores de 14 anos ou inválidos. Somente a quem – sendo, como nunca é demais lembrar, empregado não-domésticos, avulso ou aposentado sob certas condições – tenha filhos nessa condição é reconhecido o direito ao salário-família.

No entanto, a própria Lei 8.213 (art. 16) traz um rol de dependentes bem mais amplo. Em seus termos, são beneficiários da Previdência Social na condição de dependentes “ o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente” (inciso I); os pais (ii), se comprovarem que eram efetivamente sustentados, no todo ou em parte, pelo(a) filho(a) segurado(a); e os irmãos, caso satisfaçam a mesma condição e sejam menores de 21 anos, ou inválidos, ou incapazes. Uma vez que a Constituição prevê o pagamento do salário família “para os dependentes dos segurados” ou mesmo “em razão do dependente do trabalhador”, todos eles fazem jus à prestação em análise ou deveriam entrar no cálculo para que o segurado a receba.


Os vácuos de cobertura do salário-família (3): limite de idade

Mas o pior aspecto da legislação infraconstitucional relativa ao salário-família talvez seja sua limitação etária. Nos termos do art. 66 da Lei 8.213, ele é pago “por filho ou equiparado de qualquer condição, até 14 (quatorze) anos de idade ou inválido”.

Não fosse pelo acaso de a Lei 8.213 (1991) ser posterior, em um ano, ao ECA (1990), poder-se-ia sustentar a tese da revogação da primeira pelo segundo, tamanha a incongruência entre esse limite etário e o art. 2º do estatuto, que conceitua como criança a pessoa com até 12 anos de idade e adolescente quem tenha entre 12 e 18.

Mas mesmo subsistindo no confronto com o ECA por conta de sua posterioridade, o art. 66 da Lei 8.213 não resiste ao cotejo com diretrizes constitucionais diversas – cada uma delas bastante, por si, a configurar a inconstitucionalidade do limite de 14 anos.

O primeiro deles - que permanece inalterado desde o início de vigência da Constituição – é o já citado art. 229, conjugado com outros dispositivos. Se os pais têm o dever de sustentar os filhos menores (art. 229); se a família tem especial proteção do Estado (art. 226), que deve ser prestada “na pessoa de cada um dos que a integram” (§ 8º); e se essa proteção especial abrange a “garantia de direitos previdenciários” (art. 227, § 3º, II), não há como não concluir que incumbe ao Estado, por meio da Seguridade Social, contribuir para o sustento dos filhos das famílias definidas como de baixa renda não apenas até o dia em que completam 14 anos, mas, no mínimo, enquanto durar a adolescência art. 227, § 3º, II) – ou seja, até os 18 anos (na realidade, até os 21, como se verá).

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O segundo dispositivo constitucional capaz de infirmar, por si mesmo, o limite etário do art. 66 da Lei 8.213 é o art. 201, IV, em sua atual redação. Ali se determina, como já visto, a concessão do salário-família “para os dependentes dos segurados de baixa renda” – ou “em razão” deles, caso se prefira a dicção do art. 7º, XII. E dependentes previdenciários – como também antes visto – são todas aquelas pessoas assim definidas no art. 16 da Lei 8.213 e respectivos incisos, entre as quais os filhos de até 21 anos.

Esses dois fundamentos – independentes entre si, repita-se – não prescindem de remissão à legislação ordinária, uma vez que envolvem conceitos (menoridade, adolescência, dependência previdenciária) que só podem ser encontrados nela – em alguns casos, por expressa determinação constitucional. Contudo, a linha divisória entre o que o legislador pode ou não fazer é clara: cabe a ele a fixação do termo final da adolescência e/ou da menoridade, que bem poderia ser estabelecido aos 17 ou 19 anos, em vez de 18 (certamente, não aos 10 nem aos 13); mas, uma vez estabelecido esse termo, não lhe é permitido criar distinções entre adolescentes para fins de acesso a prestações da seguridade social em razão do critério idade, uma vez que o único critério previsto na Constituição – e mesmo assim apenas para o auxílio-reclusão e salário-família – é o de renda. Da mesma forma com relação ao termo final da dependência para fins previdenciários: o legislador poderia tê-lo fixado aos 20 ou 22 anos (embora não aos 8 ou aos 12) em lugar de 21 mas, estabelecido tal termo, tampouco pode criar, por norma infraconstitucional, distinção etária para fins de acesso a prestação constitucionalmente garantida aos “dependentes dos segurados de baixa renda” ou “em razão” do número deles – e aqui não importa sequer a titularidade do benefício.

A limitação etária contida no art. 66 da Lei 8.213 é inconstitucional, ainda, sob um terceiro prisma, independente, até certo ponto, da remissão a leis ordinárias. Quando do início de vigência da Lei 8.213, o art. 7º, XXXIII da Constituição vigorava com sua redação original, que proibia “qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz”. Inferir daí que a família e o Estado pudessem desobrigar-se de garantir o sustento do adolescente a partir dessa idade seria – é bom que se diga desde logo – uma rematada estupidez, inclusive por força dos já citados arts. 229, 226 e 227, § 3º, II da mesma Constituição. Em todo caso, o trabalho era, a partir dos 14 anos, possível, ainda que não obrigatório nem desejável.

A partir de 1998, entretanto, por força da Emenda Constitucional 20, a redação do art. 7º, XXXIII foi alterada, proibindo-se “qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. O adolescente entre 14 e 16 anos, desde então, não pode trabalhar para prover seu próprio sustento, já que o contrato de aprendizagem, ao menos em seu conceito legal, não se presta a isso, e sim à formação para o trabalho (CLT, art. 428) – tanto assim que reveste-se de características como duração determinada (art. 428 e §§ 3º e 4º), trabalho em tempo parcial (art. 432) e permissão de pagamento de salário mensal inferior ao mínimo (arts. 428, § 2º e 432).

Existe aí, portanto, um insofismável vazio de cobertura: entre os 14 e os 16 anos, o adolescente não pode trabalhar em condições ordinárias e com vistas a prover o próprio sustento, mas o Estado deixa de pagar-lhe (ou a seus pais) a prestação previdenciária que tem nesse sustento sua razão de existir.

De tudo isto, conclui-se que, se o salário-família não fosse devido até os 21 anos por força do art. 201, IV da Constituição, sê-lo-ia até os 18 em razão do que dispõem os arts. 229, 226 e 227, § 3º, II. E se estes dispositivos não existissem, precisaria ser pago, no mínimo, até que o filho completasse 16 anos de idade, como corolário do art. 7º, XXXIII. Em qualquer caso, é inconstitucional o limite de 14 anos completos[5].


Em conclusão

O salário-família, pago, conforme a Lei 8.213, apenas aos empregados não-domésticos, trabalhadores avulsos e a quem tenha se aposentado sob determinadas condições – e desde que tenham filhos menores de 14 anos ou inválidos – , é devido, nos termos da Constituição, a todos os dependentes previdenciários de todos os segurados da Previdência Social. As prestações inadimplidas em decorrência da inobservância do que dispõe a Constituição são exigíveis em juízo e devem ter sua prescrição aferida com norte na titularidade do benef

Notas

[1] Teórica porque, se, apesar da proibição que visa protegê-lo, um adolescente chega a ser submetido a essas condições de trabalho, isso, evidentemente, não pode ocasionar-lhe um prejuízo previdenciário que viria somar-se ao prejuízo consistente na sujeição a condições nocivas à saúde ou integridade física.

[2] Ali ainda chamados menores.

[3] Na realidade, mesmo que a Constituição permitisse o pagamento do benefício aos pais, sua prescritibilidade seria discutível, uma vez que ele existe no interesse das crianças e adolescentes, como depreende-se de toda a doutrina e jurisprudência que versam sobre qualquer tema relativo à infância e à adolescência, mais ainda quando envolve prestações pecuniárias.

[4] “Pagamento”, aqui, não é sinônimo de custeio, que permanece a cargo da Previdência. Nos termos da Lei 8.213, as empresas deduzem da contribuição previdenciária a seu cargo os valores pagos a título de salário-família.

[5] É de se notar que na Assistência Social – outro ramo do macrossistema Seguridade Social, de que é parte a Previdência – , os limites etários já foram adaptados, nesse ponto, à nova realidade constitucional, ainda que com problemas de outra espécie, que serão tema de outro trabalho. O art. 2º, II da Lei 10.836 de 2004, que rege o bolsa-família dispõe que os benefícios devidos em razão da existência de adolescentes devem ser pagos até a véspera do dia em que estes completem 16 anos. Mais recentemente (2008, com a Lei 11.692), foi inserido no artigo em questão o inciso III, criando um outro segmento de benefícios, devidos até a véspera do aniversário de 18 anos.

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Sobre o autor
Henrique Júdice Magalhães

Advogado (OAB/RS 72.676), ex-pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Cursa atualmente o doutorado em Direito na Universidad de Buenos Aires.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Henrique Júdice. A Seguridade Social e a (des)proteção à família e à adolescência: descompassos entre as leis ordinárias e a Constituição quanto ao salário-família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3351, 3 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22548. Acesso em: 25 abr. 2024.

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