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Transação penal na ação penal privada

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5 DA TRANSAÇÃO PENAL NA AÇÃO PENAL PRIVADA

5.1 JUSTIFICATIVAS

Cumpre repisar, aprioristicamente, que a proposta de transação somente pode ser feita quando se tratar de infração de menor potencial ofensivo (crimes os quais a lei comine pena máxima não superior a dois anos ou multa), após o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos analisados alhures. Note-se que a sua aceitação representa concessões feitas por ambas as partes: o Ministério Público ou querelante cede em relação a sua pretensão punitiva e o imputado a possibilidade de se ver processado e até condenado.

A Constituição Federal, ao regulamentar a matéria, no seu artigo 98, I, não fez qualquer restrição quanto à aplicação do instituto da transação penal em sede de ação penal privada, dispondo apenas que:

a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, providos por juízes togados ou togados e leigos, competentes para a conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitindo, nas hipóteses previstas em lei, a transação penal e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Nesses moldes, como a própria norma constitucional não traz limitações outras que não a de se enquadrar o crime no conceito de infração de menor potencial ofensivo, não cabe ao legislador ordinário ou intérprete, restringir o alcance dos juizados especiais. Essa é a interpretação conferida depois do enunciado 49 do Fonaje (Fórum Nacional de Juizados Especiais).  Assim, na ação de iniciativa privada cabe transação penal, inclusive por iniciativa do querelante.

Esse foi o entendimento adotado pela Segunda Câmara Criminal do STJ (HC 840.156/8-00) que, por unanimidade, em sede de infração de menor potencial ofensivo, determinou a anulação da decisão que recebeu queixa-crime sem oferecer oportunidade para transação penal. Segundo os membros do tribunal, o instituto da transação penal não pode ser tratado como uma exclusividade da ação penal pública, devendo ser compreendido como um direito subjetivo do réu e não uma faculdade do titular da ação penal.

Contudo, assevere-se que o art. 76 da Lei do JECrim, ao tratar da transação penal, nada menciona a respeito de potencial transação penal ser realizada em sede de ação penal privada, o que encerraria o assunto diante de uma interpretação gramatical ou restritiva, senão vejamos:

Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

Malgrado se tenha essa primeira noção, determinado setor da doutrina (majoritariamente), defende a possibilidade da aplicação desse instituto “despenalizador”, também, na ação penal privada. Neste sentido, tem-se Eugênio Pacelli de Oliveira, Ada Pellegrini Grinover, Gomes Filho, Scarance, Luiz Flávio Gomes, entre outros.

É bem verdade que se deve vislumbrar um interesse maior na efetiva realização de uma política criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de se valer, querendo, dessa resposta estatal alternativa.

Adite-se, ademais, por exemplo, que a vítima, além do tradicional interesse na reparação civil do delito, possui interesse na punição do agente.

Neste diapasão, conste-se que a vítima que viu frustrado o acordo civil do art. 74, da Lei do JECrim quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra alternativa lhe for oferecida. Assim, se pode o mais, por que não poderia o menos? Talvez sua satisfação, no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se veem razões válidas para obstar a via da transação que, se aceita pelo autuado, produzirá seus feitos.

Destaque-se que, no STJ (HC 13337/RJ), há entendimento majoritário a respeito do cabimento da transação penal na esfera da ação penal privada. Declina-se, pois, a decisão:

a Lei nº 9.099/95, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permite a transação e a suspensão condicional do processo, inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada. (Precedentes).

Demais, a Ap. n. 390/DF, julgado em 01/06/2005, no STJ:

tratando-se de delito que se apura mediante ação penal privada, a proposta de transação penal deve ser feita pelo querelante (precedentes do STJ).

Porém, há que se frisar que considerável setor da doutrina é dissonante quanto à possibilidade de aplicação da transação penal, como também, da suspensão condicional do processo à ação penal privada. Á guisa de exemplo, insere-se nessa linha: Cezar Roberto Bitencourt (2001, p. 128), Julio Fabbrini Mirabete (2002, p. 137), Marcelus Polastri Lima (2001, p. 63 e 148), Rômulo de Andrade Moreira (2003, p. 237-238), Fernando Capez (2011, p. 122), entre outros.

Os argumentos dessa corrente escoram-se, basicamente, em dois pontos fundamentais: (i) ausência de previsão legal e (ii) o fato da vítima, no processo penal brasileiro, não ter interesse na aplicação de uma pena ao autor do fato, mas apenas na reparação civil do dano.

Ademais, advertem que na ação penal privada, em razão dos princípios da oportunidade e disponibilidade, o ofendido já possui um amplo leque de possibilidades que lhe permitem renunciar ao direito de queixa (renúncia, decadência) ou mesmo desistir da ação ofertada (perdão, perempção), sendo-lhe, portanto, desnecessária a transação e a suspensão.

Nesta esteira, Marcelus Polastri Lima (2003, p. 237-238) afirma:

Ora, a vítima não tem interesse na aplicação da pena, pois [...] tal interesse é do Estado [...]. Caso a parte privada queira beneficiar o agente, o fará mediante renúncia ou perdão, já que vigora aqui o princípio da oportunidade em toda a sua extensão.

É sobremodo relevante assinalar que quanto à alegação de já existir, para as ações privadas, a disponibilidade da pretensão punitiva (renúncia, perdão, etc.), não parece decisivo argumento para impedir a aplicação da transação penal na ação penal privada. Em primeiro lugar, porque a opção pela proposta em sede de transação penal se inseriria no âmbito da mesma disponibilidade, podendo o querelante dela se valer ou não, segundo o seu juízo de conveniência. Em segundo lugar, e isso parece fundamental, não há motivo para não se estender às ações privadas à adoção de medidas “despenalizadoras”, quando deixadas à escolha do seu autor, e não como imposição do Estado.

Ora, se o próprio Estado, titular da maioria das iniciativas penais, entende politicamente conveniente e adequada a utilização de critérios processuais não punitivos, por que não permitir a mesma via em todos os crimes, para os quais a reprovabilidade seja equivalente?

Como suscitado, a jurisprudência brasileira comunga esse mesmo entendimento. O STJ, através do Ministro Felix Fischer, em julgado já citado (vide pág. 22), proclamou que a Lei n. 9.099/95, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permite a transação penal, inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada.

Neste ínterim, a Ministra Laurita Vaz (STJ, HC n. 34.085/SP) deixou estabelecido que a terceira seção do STJ fixou pensamento no sentido de que, preenchidos os requisitos autorizadores, a Lei do JECrim aplica-se aos crimes sujeitos a ritos   especiais,   inclusive    àqueles   apurados   mediante   “ação  penal exclusivamente privada”. Ressalte-se que tal aplicação se estende aos institutos da transação penal e da suspensão do processo.

Ainda nesse sentido, o Ministro Gilson Dipp (STJ, HC n. 33.929/SP), asseverou que a Lei do JECrim incide nos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, “permitindo a transação” e a suspensão condicional do processo, “inclusive nas ações penais exclusivamente privadas”.

Traço importante e determinante da doutrina se manifesta a respeito da aplicação analógica do art. 76 da Lei do JECrim à ação penal privada, em especial, Ada Pellegrini Grinover (2002, p. 142-143), logo, deve-se permitir que a faculdade de transacionar, em matéria penal, se estenda ao ofendido, titular da queixa-crime. Isso porque como somente deste é a legitimidade ativa à ação, ainda que a título de substituição processual, somente a ele caberia transacionar em matéria penal, devendo o MP, nesses casos, limitar-se a opinar.

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Entretanto, por raciocínio concludente, depreende-se que as infrações de ação penal privada admitem os institutos da transação penal, o qual pode ser proposto pelo MP, desde que não haja discordância da vítima ou seu representante legal, o que impõe considerar que o ofendido é quem detém discricionariedade para a propositura.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se, então, a partir dos julgados e dos argumentos doutrinários atualmente considerados majoritários no seio da comunidade jurídica, que a transação processual ou penal prevista na Lei do JECrim decorre essencialmente da política criminal que informa o referido diploma e, sendo disposição benéfica, nada impede que o recurso à analogia permita sua aplicação no âmbito das ações penais exclusivamente privadas, mesmo diante da literalidade lacônica do art. 76 do suscita diploma legal.

Ademais, diante do silêncio constitucional e legal a respeito de outro critério distintivo que não os limites máximo e mínimo da pena, respectivamente, na transação penal, não há como abandonar a política criminal de solução consensual de litígios que inspirou a Lei do JECrim (Justiça Restaurativa) para, em nome de meras questões linguísticas, deixar de aplicar seus institutos “despenalizadores” nas ações penais exclusivamente privadas.

O caráter benéfico de tais normas marcadamente híbridas (processuais-penais), autoriza recurso à analogia in bonam partem (admitida em nosso ordenamento), muito bem lançado pela jurisprudência, permitindo, sim, a aplicação do instituto da transação às ações penais exclusivamente privadas.

Desta forma, o papel da vítima no modelo de justiça do JECrim é revalorizado. Proporciona-se ao ofendido maior relevo na cena processual e se admite seu interesse não só na formação do título executivo judicial, mas também, na própria punição penal do autor do fato, cujas possibilidades são aumentadas e incrementadas.

Portanto, não se pode opor a disponibilidade da ação penal privada como óbice à aplicação dos institutos do JECrim num contexto legal em que a própria obrigatoriedade da ação penal pública é flexibilizada, com a técnica da discricionariedade regrada.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão Condicional do Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 128.

CAPEZ, Fernando. Legislação Penal Especial. Ed.,10ª, São Paulo: Saraiva. 2011.p. 122-123.

_________, Fernando. Curso de processo penal. 8. ed. rev. atual. Saraiva: São Paulo, 2002.p. 124 e 125.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. Ed., rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 201-209.

LIMA, Marcelus Polastri. Novas Leis Criminais Especiais. Vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 63 e 148.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 17. Ed., São Paulo: Atlas, 2005. p. 129.

_________, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5ª Ed.,São Paulo: Atlas, 2002, p. 137.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 175.

PACELLI, Eugênio de Oliveira Curso de Processo Penal. 11 Ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 585-586.

PELLEGRINI, Ada [et al.]. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei n.º 9.099/95. 4. Ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 56-78.

SILVEIRA, José Joerlan Holanda. Ação Penal e o Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. Natal: RN/UnP/BSRF, 2010. 117f.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 se dezembro de 1940. Código Penal In:______. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de outubro de 1941. Código de Processo Penal In:______. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995. Juizados Especiais Cíveis e Criminais In:______. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2011.

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Sobre o autor
José Joerlan Holanda Silveira

Advogado e Consultor Jurídico No Estado do Rio Grande do Norte, Assessor Jurídico do Legislativo Municipal de Francisco Dantas/RN, Especialista em Direito e Processo Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, José Joerlan Holanda. Transação penal na ação penal privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3354, 6 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22567. Acesso em: 23 abr. 2024.

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