IV. A jurisdição constitucional no Brasil
O controle de constitucionalidade foi adotado no Brasil a partir da Constituição de 1891, na modalidade difusa, por influência do sistema norte-americano.
Na Constituição de 1934, introduziu-se no sistema a representação interventiva, por meio do qual o Procurador-Geral da República poderia submeter ao Supremo Tribunal Federal controvérsias acerca de violações do pacto federativo ensejadoras de ensejadoras de intervenção.
Na Constituição de 1946 a representação interventiva passou a ser designada de arguição de inconstitucionalidade. A ação era cabível para apurar transgressão de princípios sensíveis, como a forma republicana representativa e a independência e harmonia dos Poderes.
A Emenda Constitucional nº 16, de 1965, instituiu, paralelamente à representação interventiva, a ação de controle abstrato de normas estaduais e federais, também de titularidade exclusiva do Procurador-Geral da República.
Por fim, veio a Constituição de 1988, que ampliou modalidades de ação direta sobre a constitucionalidade de normas e legitimou outros atores para iniciá-la[5].
Ao longo de mais de um século, portanto, o Brasil desenvolveu um sistema misto de controle de constitucionalidade, que combina a aferição de constitucionalidade em concreto do modelo norte-americano com a aferição em abstrato do modelo europeu.
Esse sistema foi intensificado com uma série de mecanismos como a criação da ação direta de constitucionalidade introduzida pela Emenda 3 de 1993, pela admissão de cautelar em ação direta, nos termos da Lei nº 9.868 de 1999, com a regulamentação da arguição de preceito fundamental pela Lei nº 9.882 de 1999, com a instituição de repercussão geral e das súmulas vinculantes a partir da reforma do Judiciário delineada pela Emenda 45 de 2004. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reforçou ainda mais esse processo por meio de expedientes ampliativos como as sentenças aditivas e intermediárias no controle concentrado.
O Brasil ostenta hoje, sem sombra de dúvida, um dos mais compreensivos e intensivos sistemas de controle de constitucionalidade na atualidade. A partir da reforma do Judiciário de 2004 e da mudança de composição do Supremo Tribunal Federal, com indicação de ministros com perfil mais liberal, a corte abandonou sua tradicional moderação.
A intensificação da jurisdição constitucional no país é retroalimentada pelo sucesso de seus resultados perante a opinião pública. Decisões populares como a imposição da fidelidade partidária[6], a cassação da lei de imprensa[7] e a proibição do nepotismo na Administração pública[8] reforçaram a importância da jurisdição constitucional para a evolução da democracia brasileira.
A judicialização da política e das relações sociais, conforme o diagnóstico do professor Luiz Werneck Vianna (1999a e 1999b), desatou nós normativos que resistiam ao processo político decisório. A regulamentação da união homoafetiva pode ser apontada como um desses nós. O relator do projeto de que originou o Código Civil em vigor desde 2003, o ex-deputado Ricardo Fiúza, afirmou que esta era uma das questões que a nova lei deveria ter resolvido[9]. A sociedade brasileira, para ele, já estava madura para aceitar uma moldura jurídica mais consistente para regular as consequências da parceria civil entre pessoas do mesmo sexo (Silva, 2005).
O Parlamento, porém, não enfrentou o problema, que acabou sendo solucionado pelo Supremo Tribunal Federal. A corte equiparou a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a homoafetiva[10]. Prevaleceu uma interpretação que sobrescreveu a literalidade do § do artigo 226 da Constituição[11] (“§3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”). Para o STF, malgrado a clareza desse dispositivo em sentido contrário, a Constituição também reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo em razão do princípio da isonomia. O acórdão levanta dúvidas sobre os limites da interpretação na jurisdição constitucional.
Parte da doutrina assinala que esse tipo de jurisprudência evidencia o fenômeno denominado mutação constitucional, que já foi, inclusive, admitido em alguns acórdãos do STF, no Habeas Corpus 96772:
(...) A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea (...)[12].
O poder judicial de promover mutação constitucional, a depender de sua definição conceitual, torna ocioso o poder constituinte derivado e acaba por transformar o Judiciário em poder constituinte de fato, e implicaria a fusão entre rei-juiz e rei-legislador.
No célebre julgamento da Ação Penal 470, houve menção à mutação constitucional para justificar a atualizar da jurisprudência e juízo condenatório. Pergunta-se: e o princípio da anterioridade penal? Como se pode exigir conduta diversa de quem se conduz conforme a lei interpretada pelos tribunais? A mutação constitucional, em conceituação elástica, coloca em risco um dos maiores valores do estado democrático de direito, que é a segurança jurídica.
A jurisdição constitucional deve ser exercida com moderação porque não tem a mesma flexibilidade do processo legislativo. As soluções jurisdicionais são, normalmente, menos adequadas do que as soluções construídas por via de discussão e negociação no Parlamento. Uma solução ruim, no entanto, é quase sempre melhor do que solução nenhuma.
V. Conclusão
A jurisdição constitucional, como demonstrado na seção anterior, foi ampliada sobremaneira nos últimos anos. Os poderes do Supremo Tribunal Federal de interferir no processo legislativo aumentaram exponencialmente. Contudo, não houve mudanças para incrementar, proporcionalmente, os mecanismos de accountability da corte.
A Corte Constitucional da Alemanha, cuja jurisprudência tem influenciado profundamente o STF, tem um processo de controle de constitucionalidade muito mais restrito.
Os integrantes daquele tribunal não são vitalícios como seus homólogos brasileiros. São eleitos para mandatos de 12 anos, possibilidade de recondução. O Parlamento alemão, um aproximado equivalente funcional da Câmara dos Deputados brasileira, elege metade dos integrantes da corte. A outra metade é eleita pelo Conselho Federal, uma espécie de Senado alemão. Dessa forma, o processo de escolha é mais democrático que no Brasil, onde a indicação de todos os ministros é prerrogativa do Presidente da República.
Nos Estados Unidos os juízes da Suprema Corte são vitalícios e indicados pelo chefe do Poder Executivo. Em compensação, não há jurisdição constitucional por meio de ação direta no sistema americano, que apenas interpreta a constituição no controle incidental, e as sabatinas pelo Senado dos indicados são rigorosas, e não meramente protocolares como no Brasil.
Além do mais, a Suprema Corte americana julga cerca de 100 processos por ano, ao passo que, no Brasil, apenas no primeiro semestre de 2012, foram julgados 42 mil processos pelo STF, o que, por si, só evidencia a baixa funcionalidade de jurisdição constitucional do sistema brasileiro. Esse problema pode interferir com o processo de maturação da democracia no país.
Rui Barbosa teria afirmado, há mais de 100 anos, que “ao brasileiro falta apenas uma lei: aquela que o obrigue a cumprir as leis existentes”. O fato é que nunca se levou muito a sério a legislação no Brasil e, conforme relato acima, a introjeção da lei como regulador efetivo da conduta social é pré-requisito essencial ao funcionamento adequado da democracia.
Receio que o abuso de decretos-lei durante a ditadura militar e de medidas provisórias já na Nova República atrasa a necessária dignificação do instituto lei e da socialização da sociedade brasileira para o cumprimento das leis.
Esse mesmo efeito deletério tem o abuso de decisões constitucionais, tomadas mesmo liminar e monocraticamente. O Poder Judiciário precisa acautelar-se para, com intuito de acelerar a democratização, não acabar perturbando e retardando o processo de maturação política da cidadania.
A jurisdição constitucional não é indispensável à democracia. O Reino Unido, o berço da democracia contemporânea e onde vige a soberania popular, nunca adotou o instituto. Por outro lado, a jurisdição constitucional não assegura a efetividade da democracia. O caso da Venezuela é emblemático. Não se pode esperar que o controle de constitucionalidade solucione todas as mazelas sociais.
Conforme a lição de Kelsen, a compatibilidade entre a democracia e a jurisdição constitucional depende de uma engenharia institucional que assegure o controle recíproco entre os três poderes do estado. É preciso pensar inovações institucionais tornem o controle de constitucionalidade uma garantia de efetividade dos direitos fundamentais, sem que se produza, como externalidade, a supremacia judicial. A judicialização da política é prenúncio do falecimento da democracia.
Um dos problemas a serem corrigidos no modelo de jurisdição constitucional brasileiro é a baixa accountability dos ministros do STF, em razão da indicação virtualmente monocrática pelo Presidente da República e da regra de vitaliciedade. Os ministros poderiam ser eleitos pelas duas Casas do Parlamento, e a indicação submetida à sanção do Presidente da República, o que aproximaria a escolha da vontade popular.
Para assegurar a expertise e a idoneidade dos candidatos, a escolha deveria recair sobre juízes, membros do Ministério Público e advogados, todos com, pelo menos 40 anos, mais dez anos de carreira e ilibada reputação. O escolhido poderia ter um mandato fixo de oito anos, sem direito à recondução.
A corte deveria ter competência exclusiva para o exercício da jurisdição constitucional. As demais atribuições deveriam ser redistribuídas a outros órgãos judiciais.
Quanto ao regime jurídico da jurisdição constitucional em si é preciso restringir a um mínimo a possibilidade de liminar em controle de constitucionalidade. A Casa Legislativa competente deveria ser, previamente, notificada a tomar providências, e as liminares deveriam ter um curto prazo de vigência.
O rol de legitimados precisa ser abreviado. A legitimação das Mesas de casas legislativas, por exemplo, é claramente ociosa. Apenas os partidos que, de fato, participam do jogo político no Congresso deveriam ter prerrogativa de provocar a corte constitucional.
A legitimação de confederação sindical e de entidade de classe de âmbito nacional poderia ser transferida para as centrais sindicais e para as confederações patronais.
Uma reforma do sistema de jurisdição constitucional nesse sentido pode parecer a alguns o cerceamento de uma instituição vital à democracia brasileira. Na verdade, essa racionalização, a meu ver, promoveria um controle de constitucionalidade com mais qualidade e eficiência e abriria margens para o desenvolvimento do Poder Legislativo, que está sufocado no sistema atual.
Uma reforma nesses moldes só seria viável, contudo, se sincronizada com uma reforma política profunda, que revigore os partidos e que melhore a representatividade dos mandatários.
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