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Os limites jurídicos da publicidade nas relações de consumo brasileiras: as manipulações de desejo nas relações pré-contratuais consumeristas.

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12/09/2012 às 10:44
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2 O CÓDIGO DE DEFESA E PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

2.1 Prelúdio

Como se interpreta do seu art. 1º, “o Código de Defesa do Consumidor é uma lei de função social, traz normas de direito privado, mas de ordem pública (direito privado indisponível), e normas de direito público”.[42] Por conseguinte, a hierarquia de suas normas é indisponível como se de direito público fosse, pois trata das relações entre as pessoas (relações civis), mas têm coercividade semelhante às relações do Estado com seus regidos (ordem pública):

Às relações de consumo aplicam-se os princípios gerais do contrato, porém sob a perspectiva de sua função social, já que os interesses socialmente relevantes prevalecem sobre os interesses nitidamente privados, que são, por sua vez, disponíveis, salvo os direitos irrenunciáveis por natureza ou por força de lei (os direitos de personalidade, por exemplo).[43]

O ideal de justiça é a aplicação da igualdade. Para isso, em certos casos, o direito privado tem a intervenção do Estado, visando igualizar os direitos humanos e, assim, limitar a liberdade de uns e assegurar direitos aos mais fracos.[44] É nivelando os pólos de uma relação jurídica a priori desigual que se alcança a igualdade:

Era necessário valorizar as desigualdades, as diferenças de poder, de informação, de especialização e de posição entre os sujeitos livres do mercado de consumo, e aplicar normas e princípios, como a boa-fé e a função social da propriedade e dos contratos, que ajudassem a reequilibrar com equidade as situações diferenciadas, como as de consumo.[45]

Claudia Lima Marques destaca que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC, já que proíbe abusos, e abrange qualquer momento da negociação, seja a pré-contratual, na formação, ou na execução dos contratos de consumo.[46] Além disso, as partes envolvidas para iniciar um contrato têm, desde o primeiro momento, “a obrigação de agir conforme a equidade comercial e a boa-fé”.[47]

Desta feita, a Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4º, CDC) é dirigida para atender os consumidores à respeito de sua dignidade, saúde e segurança, qualidade de vida, e harmonia nas relações de consumo:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo. [grifos nossos]

Nisto, podem ser extraídos diversos princípios consumeristas, com destaque para o princípio da boa-fé objetiva (inc. III), o princípio da harmonização de interesses (inc. III), e o princípio da vulnerabilidade (inc. I).

A igualdade perante a lei e a igualdade na lei só podem realizar-se hoje, no direito privado brasileiro, se existir a distinção entre fracos e fortes, entre consumidor e fornecedor, e se for efetivo um direito tutelar do consumidor, daí a importância desta nova visão tripartite do direito privado, que é centrada na dignidade da pessoa humana e na idéia de proteção do vulnerável, o consumidor.[48] [grifo nosso]

Logo, a presença do Estado nas relações de consumo (art. 4º, inc. III, letra ‘c’) é o que evidencia a força da ordem pública dentro de um direito inicialmente tido como privado.

2.2 Da sua origem nos direitos fundamentais

No ordenamento jurídico brasileiro, a própria Constituição reservou um capítulo[49] para normatizar as atividades da Comunicação Social, que deve ser interpretado a partir dos direitos e garantias fundamentais. Nisso há a necessidade de conhecer o princípio básico constitucional da dignidade para estudar o processo comunicativo, no qual será útil a interpretação de Ingo Sarlet[50].

Lembremos que todo homem, pelo fato de ser humano, é considerado pessoa (ou sujeito) de direito[51]. De certa forma, o direito positivo carrega essa noção em toda sua estrutura jurídica. A expressão “dignidade humana” incide do entendimento de que todo ser humano tem um lugar na sociedade e por isso deve ser respeitado. Héctor Valverde Santana afirma que:

A dignidade é um valor interno e absoluto que não admite substituição por outro valor equivalente. Não há preço para a dignidade. Trata-se de um atributo inerente ao ser humano, superior a todos os outros e que se confunde com a natureza do ser racional, que existe como um fim e não apenas como um meio.[52]

Sobrevém da religião, mesmo sem um conceito expresso de dignidade, a concepção de que o ser humano é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.[53] Coube, pois, à Immanuel Kant a secularização desta noção de dignidade, conforme ensina Ingo Sarlet:

[...] concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano (o indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto.[54]

Nossa Carta Magna, em seu artigo 1º, inciso III, logo de início, refere-se aos princípios fundamentais do Estado brasileiro. Nele, proclama, com destaque, como um dos seus fundamentos, a dignidade humana, in verbis:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III – a dignidade da pessoa humana. [grifo nosso]

De tal modo, consagra o direito fundamental da dignidade humana no Estado democrático brasileiro como princípio consagrador, conferindo ao mesmo a  base de todo o ordenamento jurídico nacional. Conforme Tereza Rodrigues Vieira e Érika Silvana Saquetti Martins, a norma do artigo 1º da Constituição “assegura o direito à integridade moral e ao mínimo ético a todas as pessoas apenas por sua existência no mundo”.[55] As autoras arrematam que “a Constituição, ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, não quis proteger somente a integridade física do ser, mas também o aspecto espiritual de que se reveste a vida humana”.[56] A Carta Magna, no § 4º do artigo 220, no intuito de proteger a saúde, claramente aplica restrições quanto à propaganda de tabaco, bebidas alcoólicas e outros itens nocivos à saúde.

Ressalte-se que os direitos fundamentais podem e devem permear também as relações privadas com total eficácia, ponderando as prováveis colisões. A diferença recai somente no fato de que numa relação pública “Estado x cidadão”, o segundo é titular de direitos fundamentais; em uma relação privada “cidadão x cidadão”, ambos são titulares. Nesse caso, então, a autonomia privada é restringida em parte pela aplicação dos direitos fundamentais. Papel assumido pelo CDC.[57]

Assim, é a dignidade o primeiro fundamento do sistema constitucional, podendo ser designada sem erro como um superprincípio.[58] É evidente, então, que deve a Comunicação Social também respeitá-lo. Impõe à Comunicação, nas palavras de Guilherme Fernandes Neto:

o dever de seguir a decência, respeitar o decoro, não expondo ou explorando sensacionalisticamente as mazelas do ser humano, conspurcando qualidade morais de indivíduos. A dignidade da pessoa humana impede, no âmbito da publicidade, a exploração do ser humano, transformando-o em protagonista da publicidade em razão de suas enfermidades, deformações, desgraças. A dignidade da pessoa humana coíbe humilhações, enquanto sua utilização na Comunicação Social evita que estas sejam veiculadas ou exploradas pela mídia.[59]

Entretanto, maioria dos consumidores não percebe que as mensagens publicitárias estão cada vez mais sagazes, atingindo e influenciando seus sentimentos. Extrajudicialmente existe o Código de Autorregulamentação Publicitária, com a finalidade de proteger os valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV, da CF), tendo suspendido várias propagandas de mau gosto e que ferem a dignidade.

Ademais, a maioria da população também desconhece que a Constituição Federal, em decorrência do cumprimento dos princípios constitucionais, exige dos meios de comunicação o respeito ao consumidor por intermédio do acesso à informação, que possibilita a apuração de atos ilícitos que possam ocorrer, concedendo proteção ao consumidor.

Assim:

A função social da comunicação de massa ergue-se da Constituição Federal, quando esta, pelo inciso IV do art. 221, exige respeito aos valores sociais da pessoa e família, que defluem da cidadania e da dignidade da pessoa humana.[60]

Para tanto, a própria Carta Magna, no art. 5º, inciso XXXII, estabelece que, como direito fundamental e garantia individual expressos, cabe ao Estado promover a proteção do consumidor.  No art. 170, sobre a Ordem Econômica, também impôs o constituinte a importância de diversos princípios, entre eles, o da defesa do consumidor. Os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) igualmente tratam deste tema, exigindo a publicação da lei. E se tratando de direito fundamental, Claudia Lima Marques assevera que esse deve ser respeitado, nos conformes tanto da lei infraconstitucional (CDC) quanto nas exigências para assegurar a dignidade da pessoa humana.[61] Conclui que:

Efetivamente, no Brasil de hoje, a proteção do consumidor é um valor constitucionalmente fundamental (Wertsystem), é um direito fundamental e é um princípio da ordem econômica da constituição Federal (art. 170, V), princípio limitador da autonomia da vontade dos fortes em relação aos fracos ou vulneráveis (debilis), construindo um novo direito privado mais consciente de sua função social (expressão de Gierke).[62]

Para rematar, o CDC é lei principiológica, pois concretiza princípios e garantias constitucionais em uma norma infraconstitucional.[63]

Sergio Cavalieri Filho assinala que:

Em virtude da origem constitucional do mandamento de defesa do consumidor, o art. 1º desse diploma legal autodefine em suas normas como sendo de ordem pública e de interesse social, vale dizer, de aplicação necessária e observância obrigatória,pois, como de todos sabido, as normas de ordem pública são aquelas que positivam os valores básicos de uma sociedade”.[64]

Assim, os direitos dos consumidores têm procedência nos direitos fundamentais da Constituição Federal, com o primor de seguir o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

2.3 Dos direitos básicos dos consumidores

Com o CDC finalmente vigente, em seu artigo 6º são descritos os direitos básicos dos consumidores:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

 I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

IX - (Vetado);

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. [grifos nossos]

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Destarte, no rol desses direitos básicos, ressalvemos os direitos básicos de proteção à vida e à saúde, educação para o consumo, escolha de produtos e serviços; informação, proteção contra publicidade enganosa e abusiva, indenização, acesso à justiça, e a facilitação de defesa de seus direitos com a inversão do ônus da prova por hipossuficiência (vulnerabilidade do consumidor).

O inciso I do art. 1º protege a vida, a saúde e a segurança do consumidor. De fato, a sociedade, o mercado e suas práticas comerciais podem ser nocivos e perigosos para os consumidores.[65] No inciso VI, os consumidores têm assegurados direito à prevenção e reparação de danos, tanto patrimoniais quanto morais, individuais e coletivos.[66]

Já o art. 31 do CDC trata especificamente do dever de informar do inciso III (art. 1º), incluindo a informação pré-contratual, preparando “o consumidor para um ato de consumo verdadeiramente consentido, livre, porque fundamentado em informações adequadas”.[67] A política geral do CDC é que quem divulga seus produtos ou serviços tem obrigação legal, intransferível, de informar devidamente o consumidor.[68] Afinal, “a informação inadequada ou insuficiente pode causar dano por defeito na mensagem independentemente do produto ou serviço adquirido em seguida”.[69]

Deve a divulgação do produto (ou serviço) ser clara e adequada ao entendimento do destinatário; este é o direito básico de informação do consumidor. Quando o consumidor é vítima de uma propaganda abusiva que manipula soluções abstratas, ele provavelmente não estava devidamente informado. Ou mesmo, não estava consciente em se questionar: “será que eu preciso disso?”, “qual a sua utilidade?”, “isso realmente vai me acrescentar algo?”

O Código de Defesa do Consumidor foi publicado com a intenção de proteger o consumidor brasileiro que, sem educação específica devida, é tutelado pelo Estado. Assim ensina Benjamin:

Os dados objeto do dever de informar são os mais variados, dependendo sempre do produto ou serviço oferecido. De qualquer modo, o Código fixa, de plano, algumas informações que, necessariamente, devem constar de produtos e serviços: características (produtos e serviços), qualidades (produtos e serviços), quantidade (em regra, só produto), composição (mais para produto do que para serviços), preço (produtos e serviços), garantia (produtos e serviços), prazos de validade (produtos e serviços), origem (mais para produtos) e riscos (produtos e serviços). E, recorde-se, qualquer referência ao produto ou serviço deve estar coberta pela correção, clareza, precisão e ostensividade.[70] [grifo nosso]

Ao estar informado sobre seus direitos, o consumidor sabe o que fazer ao comprar um produto estragado ou reclamar quando um serviço foi mal executado, por exemplo. O conceito de informação engloba itens, dentre os quais o dever dos fornecedores de produtos ou serviços de desempenhar seu trabalho com o mais amplo e profundo espírito público, e o direito dos consumidores de exigir essa mentalidade. Mas na prática, nem sempre o sistema funciona:

O consumidor bem informado é um ser apto a ocupar seu espaço na sociedade de consumo. Só que essas informações não estão à sua disposição. Por outro lado, por melhor que seja a sua escolaridade, não tem ele condições, por si mesmo, de apreender toda a complexidade do mercado.[71] [grifo nosso]

Também relevante, o direito básico à liberdade de escolha (art. 6º, inc. II, CDC) refere-se à autonomia da vontade do consumidor:

O Código de Defesa do Consumidor reconhece a importância das novas técnicas de vendas, muitas delas agressivas, do marketing e do contrato como forma de informação do consumidor, protegendo seu direito de escolha e sua autonomia racional, através do reconhecimento de um direito mais forte de informação (arts. 30, 31, 34, 46, 48 e 54) e um direito de reflexão (art. 49).[72]

Paralelamente aos direitos, têm-se os deveres do consumidor, quais sejam: consciência crítica, preocupação social, reclamação, solidariedade, pesquisa, consciência do meio ambiente, boicote, e honestidade. Todos permeados pelos princípios que norteiam as relações de consumo: vulnerabilidade do consumidor, da norma mais favorável, das presunções mais favoráveis ao consumidor, da irrenunciabilidade dos direitos do consumidor, da boa-fé, da identificação e da transparência.[73]

2.4 A relação jurídica de consumo

Para se estabelecer a relação jurídica de consumo bastam as figuras do consumidor e do fornecedor, tendo por objeto a negociação de produtos e/ou serviços.

Nos conformes do art. 3º, caput, do CDC, tem-se a conceituação do fornecedor como:

toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

A figura do consumidor, nos termos do art. 2º, “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” Pela doutrina, o CDC apresenta quatro definições[74] para “consumidor”: em sentido estrito (caput do art. 2º), em sentido coletivo (ou equiparado, descrito no parágrafo único do art. 2º: “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”), “bystander” (descrito no art. 17 como as vítimas do evento, mesmo não tendo participação na relação consumerista), e em sentido amplo (ou virtual, mencionado no art. 29: “equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”). É por esta última definição doutrinária que o efeito da publicidade é aqui aventado. Na inteligência de Paulo R. Roque A. Khouri:

No art. 29 do CDC, justamente por ser equiparada a consumidor, não é exigida a efetiva aquisição de bens e serviços. O simples fato de poder vir a contratar, estando exposto a uma prática abusiva, é suficiente para merecer proteção até mesmo por meio das chamadas ações coletivas, de que trata o art. 81 do CDC. [grifo nosso][75]

Héctor Valverde Santana corrobora esse entendimento, ao ensinar que o consumidor potencial (art. 29, CDC) dispensa o prévio ajuste contratual. A simples exposição das práticas comerciais às pessoas sejam estas físicas ou jurídicas, enseja a prevenção contra danos aos direitos transindividuais: “o operador do direito deve manifestar-se com antecedência à materialização do dano”.[76]

Do mesmo modo, o Capítulo V do CDC cuida da fase pré-contratual (oferta e publicidade). O intuito do legislador é evitar a coletividade da exposição às práticas abusivas. Ao tratar como consumidor quem não consumiu, mas que seja um potencial consumidor, oferece a esta figura a mesma proteção que, pela doutrina clássica, beneficia o consumidor strictu senso do caput do art. 2º.[77] Pode o consumidor ter sua relação de consumo protegida antes mesmo de concretizado o contrato, no início da fase pré-contratual (negociação preliminar), a partir da veiculação da oferta (proposta).

Assim, essas várias definições de consumidor facilitam a aplicação do código consumerista aos vários casos concretos que surgem na prática.[78] A intenção do CDC é também proteger “dos atos ilícitos pré-contratuais, como a publicidade enganosa, e das práticas abusivas, sejam ou não compradores, sejam ou não destinatários finais”.[79] Portanto, em outras palavras, define as relações de consumo tanto as contratuais quanto as extracontratuais.

Sintetiza Nehemias Domingos de Melo que “basta que a relação seja de consumo para que a proteção consumerista se estenda a qualquer pessoa, independentemente da conceituação legal de consumidor.” [80]

Ressalte-se que, para a previsão de consumidor em potencial, há certas características principais que deve ser atestadas: “[...] a) abstração; b) pretensão de amplitude, pois visa abarcar um maior número de casos; c) finalidade preventiva; d) tutela de direitos transindividuais“.[81]

Entretanto, a proposta não pode ser qualquer oferta dirigida ao público. Nas ofertas de compra e venda, “só será considerada uma proposta tecnicamente perfeita se for possível identificar, além do seu proponente, o objeto e o preço da coisa”. Arremata Khouri que “é impossível a formação do contrato simplesmente com base na mensagem”.[82] Só que a mensagem publicitária não precisa ter todos os elementos da proposta (preço, condições, objeto etc) para ser veiculada e convencer o público sobre as qualidades do objeto para uma potencial contratação.[83]

Os objetos dessa relação igualmente são descritos pelo CDC. O produto “é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial” (art. 3º, § 1º), e serviço é apontado como “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3º, § 2º).

Ademais, Rizzatto Nunes não se prende à diferenciação estrita entre fins de consumo (destinatário final) e fins de produção (uso por fornecedor):

Quer se use o produto (ou o serviço) para fins de consumo (a caneta do aluno), quer para fins de produção (a caneta idêntica do professor), a relação estabelecida na compra foi de consumo, aplicando-se integralmente ao caso as regras do CDC. Desta maneira, repita-se, toda vez que o produto e/ou serviço puderem ser utilizados como bem de consumo, incide na relação as regras do CDC.[84] [grifo nosso]

Por isso, de acordo com o caput do art. 2º, o CDC define a pessoa jurídica também como consumidora. Para tanto, esta deve consumir produtos e serviços que lhe sirvam simultaneamente como bens de produção e bens de consumo. O importante é que ao adquirir ou usar, o intuito seja de fruição própria (consumo).[85]

Por esses fatores, a relação jurídica de consumo compreende tão somente um consumidor, não necessariamente final, nem rigorosamente deva ser pessoa física (contanto que use o produto como bem de consumo será um destinatário final), e o fornecedor, que oferece produtos e serviços por intermédio de uma oferta (veiculação).

2.5 A publicidade no Código de Direito do Consumidor

A publicidade faz parte da fase pré-contratual, e também está inserida no controle do direito consumerista. É a mensagem publicitária que leva ao consumidor as informações sobre produtos e serviços antes da formação do contrato.[86]

Nesta fase pré-contratual (veiculação do anúncio, oferta), existe a figura do consumidor potencial (art. 29, CDC). Basta estar exposto a toda e qualquer prática comercial:

O que a lei diz é que, uma vez existindo qualquer prática comercial, toda a coletividade de pessoas já está exposta a ela, ainda que em nenhum momento possa se identificar um único consumidor real que pretenda insurgir-se contra tal prática.[87]

De fato, o CDC não obriga o fornecedor a anunciar, mas uma vez que ele fizer uso da publicidade, estará vinculado à lei no que se refere ao direito da informação, boa-fé e transparência na divulgação de seus produtos e serviços.[88]

Nisto, dois pontos são cruciais. Primeiramente, deve-se analisar se a publicidade é uma oferta que vincula o anunciante. E em seguida, qual o grau desta provável vinculação.[89]

Ao anúncio, por nem sempre trazer todos esses requisitos (em particular, por não ser, ordinariamente, nem completo, nem inequívoco nem, muito menos, dirigido a destinatários identificados), negava-se o caráter de oferta e, a partir daí, a possibilidade de vinculação contratual, sendo sempre apontado como pura (e contratualmente inofensiva) invitatio ad offerendum ou “convite a contratar”, com seus exageros equiparados a dolus bonus. A perspectiva da publicidade como simples convite à apresentação de ofertas era – e ainda o é – largamente aceita no contexto do direito contratual tradicional, apesar da evolução doutrinária já referida.[90]

O que vincula é a declaração publicitária, o anúncio em si. Com efeito, “para que uma propaganda seja considerada falsa a ponto de caracterizar a publicidade enganosa, a informação deve ser recebida como verdadeira pelo consumidor”.[91]

Deste modo, enquanto a doutrina civilista tradicional não reconhece a publicidade em si como fase pré-contratual; para o direito consumerista, ela tem sido aceita, porque integra a própria sociedade de consumo (consumidores), titulares da proteção do CDC:

Não há sociedade de consumo sem publicidade. Como decorrência de sua importância no mercado, surge a necessidade de que o fenômeno publicitário seja regrado pelo direito, notadamente pela perspectiva da proteção do consumidor, o ente vulnerável da relação jurídica de consumo.[92]

De acordo com Rizzatto Nunes, a publicidade não pode violar os vários princípios garantidos na Carta Magna:

O anúncio publicitário não pode falta com a verdade daquilo que anuncia, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do anúncio.[93]

Uma vez que, no exame dos elementos da oferta, esta seja precisa, completa, com informações sobre seu objeto e dirigida ao consumidor, é admitida a vinculação do fornecedor. Conceituado como princípio da vinculação contratual da mensagem publicitária, este se encontra implícito em dois dispositivos no Código de Defesa do Consumidor[94], quais sejam, os arts. 30 e 35:

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

(...)

Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

O instituto jurídico da oferta é regulado nos arts. 30 e 31 do CDC, num rol de características meramente exemplificativas[95]. O interessante é que o art. 30 abrange quaisquer formas de manifestação mercadológica. Nisto, inclui toda manifestação do fornecedor que não somente a oferta, mas tudo que tenha o propósito de induzir a decisão do consumidor. Vejamos:

A vinculação do fornecedor que veiculou publicidade suficientemente precisa é matéria pacífica no Judiciário, que vem condenando o fornecedor ao cumprimento da oferta publicitária nos termos em que foi veiculada.[96]

Para tanto, bastam dois pressupostos básicos: veiculação e precisão da informação. Tome-se veiculação como a ação de informar, de chegar ao conhecimento do consumidor. E por precisão, dados completos, “com um mínimo de concisão”.[97] Benjamin afirma ainda que o princípio da vinculação da mensagem publicitária “é a resposta que o direito dá ao relevantíssimo papel que este fenômeno assume na sociedade de consumo. O princípio encontra sua justificativa, pois, no potencial persuasivo das técnicas de marketing”.[98]

(...) visando a acomodar as prementes e irresistíveis necessidades sociais criadas pela publicidade, os requisitos essenciais da policitação tornam-se menos exigentes, enquanto o caráter vinculante da promessa fica mais rígido.[99]

Por derradeiro, o consumidor é vulnerável às mensagens. Daí a acuidade em se priorizar esta diferença entre o fornecedor e o consumidor nas relações de consumo.

2.6 A vulnerabilidade do consumidor

A princípio, se acreditava que o consumidor tinha plena consciência na escolha de produtos e serviços oferecidos no mercado:

A economia criou também a figura ilusória de que este ser livre e racional, que seria o consumidor, o “rei” do mercado, aquele cuja vontade decidiria soberanamente a compra ou a recusa de um produto (...). No Brasil, a tendência é também radicalizar esta visão econômica do homem, como sujeito de mercado livre, sem sequer considerar o marketing, os efeitos da publicidade e da moda, dos métodos agressivos e sentimentais de comercialização e da contratação, e chega-se mesmo a usar esta expressão, que não deixa de ser uma falácia, de “rei do mercado” para os consumidores.[100]

A vulnerabilidade do consumidor é requisito obrigatório para a caracterização do consumidor. Ela pode ser técnica (desconhecimento técnico do objeto), econômica (desigualdade econômica entre o fornecedor e o consumidor final) ou jurídica (falta de conhecimento jurídico sobre as normas que envolvem a relação de consumo).[101] Claudia Lima Marques inclui uma quarta espécie de vulnerabilidade, a informacional:

[...] a vulnerabilidade informacional, que é a vulnerabilidade básica do consumidor, intrínseca e característica deste papel na sociedade. Hoje ela merece uma menção especial, pois na sociedade atual são de grande importância a aparência, a confiança, a comunicação e a informação. Nosso mundo de consumo é cada vez mais visual, rápido e de risco, daí a importância da informação.[102]

Na mesma obra, Antônio Herman V. Benjamin afirma que “o consumidor, em todo o processo publicitário, é a parte vulnerável e contratualmente alheia ao anúncio”.[103]

Essa vulnerabilidade tem presunção absoluta, dentro do mercado de consumo:

A vulnerabilidade, conforme consta do Código de Defesa do Consumidor, não se submete ao critério da razoabilidade para ser identificada no caso concreto, uma vez que o legislador presumiu iuris et de iure a sua existência em uma relação de consumo, fixando-se que o destinatário final de produtos e serviços é a parte que necessita ser amparada de forma mais favorável pela legislação (art. 4º, I, da Lei 8.078, de 1990).[104]

Logo representa “o reconhecimento da ordem jurídica de que existe desigualdade real entre os protagonistas da relação de consumo que se desenvolve necessariamente no mercado”.[105]

De tal modo, a inversão do ônus da prova, previsto no inciso VIII do art. 6º do CDC é decorrente do princípio da vulnerabilidade do consumidor. Todavia, nem sempre essa inversão no direito consumerista é ato discricionário:

A inversão estabelecida no § 3º dos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, específica para a responsabilidade civil do fornecedor, é ope legis, vale dizer, não está na esfera da discricionariedade do juiz. É obrigatória, por força de lei.[106]

Importa notificar que hipossuficiência e vulnerabilidade não são termos sinônimos. Pode assim dizer que todo consumidor e vulnerável, mas nem sempre é hipossuficiente. Enquanto a vulnerabilidade decorre de ordem técnica, econômica ou jurídica, a hipossuficiência não envolve a ordem econômica. Esta deriva tão somente do fato de o consumidor não ter conhecimento técnico sobre os produtos e serviços oferecidos no mercado.[107] Portanto, é exclusivamente a hipossuciência que motivará o juiz se o caso concreto permite a inversão do ônus da prova em favor do consumidor.

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Sobre a autora
Luciana Gomes Bittencourt

Profissional graduada em Direito, com habilitação em Civil (UniCEUB, 2008) e pós-graduada em Contratos e Responsabilidade Civil (IDP, 2012). Advogada pela Seccional do DF (OAB/DF), atua em Direito Contratual (elaboração/análise/revisão de contratos diversos) e Direito do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTENCOURT, Luciana Gomes. Os limites jurídicos da publicidade nas relações de consumo brasileiras: as manipulações de desejo nas relações pré-contratuais consumeristas.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3360, 12 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22585. Acesso em: 22 dez. 2024.

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