INTRODUÇÃO
Em um Estado Democrático de Direito, uma Constituição se caracteriza mais por consagrar direitos individuais e sociais que contemplar poderes do Estado, voltando-se para o mister de efetivar restrições aos poderes estatais em favor dos cidadãos.
Nesse contexto, os valores ou bens jurídicos tutelados pela norma penal – como a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio – passam a ter estreita ligação com os valores fundamentais do homem e da sociedade garantidos pela Constituição; esta se revela como origem e diretriz para o Direito Penal, determinando seus fundamentos e fixando os seus limites. O jus puniendi do Estado, assim, é limitado pelo próprio texto constitucional.
Destarte, é possível constatar uma série de princípios informadores do Direito Penal que, característicos do Estado Democrático de Direito, passam a ter assento constitucional, tais como o da legalidade dos crimes e das penas, o da culpabilidade, o da humanidade, o da personalidade e da individualização da pena, entre outros. Tais princípios, relacionados aos valores constitucionalmente protegidos - liberdade, igualdade, dignidade da pessoa, humanidade, justiça, proporcionalidade -, consagram a dita constitucionalização do Direito Penal.
A partir da constitucionalização do Direito Penal, ganha relevo o valor da dignidade da pessoa humana, alavancando debates acerca da intensidade, proporção e efetividade da intervenção estatal por meio das normas penais e de suas drásticas conseqüências nas vidas dos indivíduos. Das principais críticas ao sistema de justiça penal, destacam-se os movimentos abolicionista e minimalista, que, propondo a radical supressão do sistema penal por outras instâncias de controle social e a máxima redução deste sistema, respectivamente, mostram-se ambos como movimentos deslegitimadores do sistema penal vigente, cujas especificidades serão objeto de breve análise neste trabalho.
I.ABOLICIONISMO
O nascimento do abolicionismo remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, como reação humanista à precedente fase tecnicista. Mas foi nas décadas de 60 e 70 que o movimento abolicionista ganhou força, devido às teorias sociológicas que se afirmavam na época e se dividiam em tendências diversas.
As críticas abolicionistas foram inspiradoras de manifestações e revoltas estudantis e juvenis por toda a Europa Ocidental. O objetivo vislumbrado era buscar uma solução para a violência que não fosse baseada em violência, pacificar os conflitos sociais através de modelos de atuação que pressupõem o princípio do acordo indivíduo-indivíduo, privilegiando o diálogo e substituindo a disciplina.
A proposta abolicionista se desenvolve em torno da criação de alternativas para o processo de Justiça Criminal, de natureza legal ou não-legal, propondo a criação de microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, com vistas à reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos e a criação espontânea de métodos ou formas de composição.
O sistema penal é encarado, em si mesmo, como um problema social, um “mal social” que mais cria problemas que resolve, devendo ser por isso abolido, dando vida às comunidades, às instituições e aos homens1.
É possível, de acordo com o que aponta Vera Regina Pereira de Andrade2, referir-se ao abolicionismo enquanto perspectiva teórica e como movimento social.
Enquanto práxis, o abolicionismo possuiu líderes que fundaram grupos de ação ou pressão contra o sistema penal e que se engajaram em organismos que contavam com a participação de técnicos, presos, liberados, familiares, simpatizantes, pessoas, enfim, com experiência prática no campo da criminalização. Exemplo disso é Foucault, que fundou o Grupo de Informação sobre os cárceres (Groupe d’ Information sur les Prisons); já Hulsman iniciou a Liga Coorhhert, a qual apresentava todos os anos um pressuposto alternativo para o Ministério da Justiça; Mathiesen, por sua vez, fundou del Norsk forening for Kriminal reform - KROM (Associação norueguesa para a reforma penal) (1969), organização que, juntamente aos seus contrapontos escandinavos - o KRUM (Suécia, 1966) e o KRIM (Dinamarca e Finlândia, 1967) – declarou como objetivo estratégico a abolição do sistema carcerário. Há notícias de organizações com os mesmos fins na Inglaterra (RAP – radicais alternativas à prisão) e até mesmo nos Estados Unidos da América.
Como perspectiva teórica, acha-se uma pluralidade de variantes do abolicionismo, as quais contemplam motivações diversas para a abolição. Entre as mais notáveis, podem-se encontrar a variante estruturalista de Michael Foucault; a variante materialista, de orientação marxista, do norueguês Thomas Mathiesen; a variante fenomenológica do holandês Louk Hulsman; e a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie. Destacam-se também Sebastian Scheerer (Alemanha) e Heinz Steinert (Áustria).
Vê-se, assim, que não existiu uma dita essência para o abolicionismo ou mesmo uma teoria única que abarcasse os aspectos de todas as variantes do movimento. O ponto coincidente que se pode distinguir em toda essa diversidade é exatamente a busca, comum a todas as variantes, de caminhos e objeto da abolição, isto é, a extensão, os métodos, as táticas e os conseqüentes impactos sociais.
A perspectiva deslegitimadora abolicionista, nas suas diversas correntes, baseia-se em algumas críticas centrais contra o sistema penal. Uma delas é o descrédito que atribui à prevenção geral, afirmando que o direito penal é incapaz de motivar comportamentos subjetivos a fim de evitar os delitos, uma vez que, a despeito da incriminação, diversos crimes – como o tráfico ilícito de entorpecentes, por exemplo – continuam a se repetir sistematicamente.
A prevenção especial é, igualmente, posta em xeque pelos abolicionistas. A prisão, local onde pretensamente se operaria a ressocialização e a reintegração dos infratores ao meio social, ao contrário, dessocializa, desumaniza e estigmatiza os apenados, relevelando-se sim como um verdadeiro fator criminógeno.
É também contestada a função garantista do Direito Penal, pois a lei, vocacionada a restringir a intervenção do Estado na esfera individual, ao reverso, autoriza e legitima essa intervenção.
Critica-se o sistema penal, ainda, por ser arbitrariamente seletivo, pois, assentado sobre uma estrutura social profundamente desigual, angaria sua “clientela” entre os mais miseráveis, reproduzindo, assim, a injustiça e desigualdade sociais.
Aliado a isso, critica-se o fato de que o sistema criminaliza um número muito superior de condutas do que o que está capacitado para efetivamente lidar, o que sobrecarrega os órgãos incumbidos da repressão criminal e impede que, de fato, funcione. Ademais, o sistema penal somente atua num número muito reduzido de casos, devido às “cifras ocultas” da criminalidade – a soma de crimes praticados no cotidiano e que não são registrados ou sequer chegam ao conhecimento do sistema – o que torna regra a imunização e não a criminalização.
Critica-se também o fato de o sistema penal estereotipar tanto a vítima quanto o delinqüente, tratando todos da mesma maneira, como se todas as vítimas possuíssem as mesmas necessidades e reações, ignorando por completo as singularidades das pessoas. A respeito da vítima, afirma Christie3, ela é, no processo penal, duplamente perdedora, primeiro frente ao infrator e, depois, diante do Estado, que a exclui de qualquer participação em seu próprio conflito, uma vez que este é levado a cabo por profissionais.
Além das críticas supramencionadas, somam-se as direcionadas à atuação reativa e não preventiva do sistema penal, a sua atuação mediata ou tardia em relação à prática do delito e o fato de não ser o sistema penal inerente às sociedades, tendo em vista que, antes da lei penal, havia outras formas de manejar os conflitos e resolver os problemas no meio social.
Nada obstante a amplitude e diversidade dos fundamentos metodológicos que reforçam o movimento abolicionista, não são poucas as críticas que se levantam contra os seus propósitos. Freqüentemente acusado de romântico ao abordar o problema da criminalidade, o movimento abolicionista foi duramente criticado por Ferrajoli4, para quem mesmo numa sociedade em que não houvesse delinqüência, um modelo de auto-regulação social espontânea seria um modelo normativo irremediavelmente utópico, assentado sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa e de um Estado bom, o que representaria, certamente, uma regressão no que concerne aos meios de controle social.
II.MINIMALISMO
O minimalismo toma por base as mesmas críticas que os abolicionistas levantam contra o sistema penal, diferindo destes por apregoar a necessidade do direito penal, embora reduzido sua incidência a um mínimo necessário, restrita a um núcleo absolutamente essencial de condutas particularmente danosas.
Sendo a pena a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado5, a visão minimalista impõe que não se deva recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir proteção suficiente por meio de outros instrumentos jurídicos não-penais.
A adoção da idéia da mínima intervenção penal como guia para uma política penal, afirma Alessandro Baratta6, pretende ser uma resposta à questão acerca dos requisitos mínimos a respeito dos direitos humanos na lei penal. O conceito de direitos humanos assume, nesse caso, uma dupla função: uma função negativa, no que toca aos limites da intervenção penal; e uma função positiva, a respeito da definição do objeto, possível, porém não necessário, da tutela por meio do direito penal. Para o autor, tal conceito de direitos humanos, em sua dupla função, é o fundamento mais adequado para a estratégia da mínima intervenção penal e para sua articulação programática no quadro de uma política alternativa do controle social.
Relacionadas à intervenção mínima se encontram duas características do Direito Penal, quais sejam a fragmentariedade e a subsidiariedade.
A fragmentariedade espelha o fato de, entre as mais diversas condutas, o Direito Penal tipificar apenas uma parcela delas como crime, opondo-se a uma visão onicompreensiva da tutela penal; ela impõe uma seleção, seja dos bens jurídicos ofendidos a serem protegidos, seja das formas de ofensa.
Já a subsidiariedade pressupõe a fragmentariedade, derivando de sua consideração como remédio sancionador extremo, o qual deve ser ministrado somente quando outro se revele ineficiente. A utilização do Direito Penal, nas ocasiões em que outros meios ou procedimentos bastem para a preservação ou reinstauração da ordem jurídica, não possui legitimidade social e contraria os fins do direito.
Assim como em relação ao abolicionismo, Vera Regina Pereira de Andrade7 distingue entre uma dimensão teorética e outra pragmática do minimalismo. Enquanto perspectiva teórica, o minimalismo se apresenta profundamente heterogêneo, havendo aqueles que são meios para o abolicionismo, aqueles que são diferentes de minimalismos como fins em si mesmos e ainda aqueles minimalismos reformistas.
Pode-se citar, entre os modelos teóricos mais notáveis do minimalismo, todos com fundamentações diversas, o do italiano Alessandro Baratta, de base interacionista-materialista; o do penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, de base interacionista, foucaudiana e latino-americanista; e o do italiano Luigi Ferrajoli, de base liberal iluminista.
Já o minimalismo em sua dimensão pragmática ou como reforma penal designa um movimento que, no embalo do princípio da intervenção mínima, do uso da prisão como última ratio e da busca de penas que lhes sejam alternativas, desenvolveu-se desde a década 80 do século XX e, no Brasil, a partir da reforma penal e penitenciária de 1984, com marcos como a introdução das penas alternativas (Leis 7.209 e 7.210/84), a edição da atual lei das penas alternativas (Lei 9.714/98) e a implantação dos juizados especiais criminais estaduais (Lei 9.099/95) para tratar dos crimes de menor potencial ofensivo.
Tais reformas têm operado no sentido de uma eficácia invertida, do ponto de vista do sistema penal, contribuindo, paradoxalmente, para ampliar o controle social e relegitimar o sistema penal.
CONCLUSÃO
A partir da década de 70 do século XX, o abolicionismo e minimalismo passaram a ocupar o cenário do controle social e das políticas criminais nas sociedades capitalistas. O contexto em que emergem é o da deslegitimação dos sistemas penais, e, como resposta a ela, o abolicionismo propõe a extinção do sistema penal por completo, substituindo-o por formas alternativas de resolução de conflitos, enquanto o minimalismo defende, associado ou não à utopia abolicionista, sua máxima contração.
Nada obstante a diversidade que ambos os movimentos apresentam no plano teórico, no campo prático, partindo de críticas a situações patentes do cotidiano do sistema penal, o abolicionismo e o minimalismo oferecem ferramentas úteis ao aprimoramento do sistema e à defesa da sociedade, no que concerne à contenção da violência e proteção dos direitos humanos.
Nada obstante o inegável sucesso desses movimentos, sobretudo no âmbito acadêmico e, por vezes, nos planejamentos reformistas do sistema, nota-se que no Brasil, devido às fortes pressões populares contra a disseminada criminalidade, a realidade legislativa não espelha respaldo semelhante.
É o que se pode notar diante da criminalização de infrações contra o meio ambiente (Lei 9.605/98) e de infrações de trânsito (Lei 11.705/08), o que revela uma tendência, na verdade, ampliadora do Direito Penal em relação às condutas por ele abarcadas. Ao contrário de soluções de conflitos sociais ou da aplicação de um processo abrandador de penas, na prática do legislativo brasileiro, vê-se um processo de criminalização com o emprego da via penal, ainda que o caráter punitivo tenha finalidade tão-somente simbólica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Disponível em: <http://www.mp.to.gov.br/cint/cesaf/arqs/040908090302.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009.
BARATTA, Alessandro. Princípios do Direito Penal Mínimo: para uma teoria dos Direitos Humanos como objeto e limite da Lei Penal. Disponível em: < http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Principios%20de%20direito%20penal%20minimo.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
CAMARGO, Roberta Negrão de. Abolicionismo Penal: da utopia à realidade. Disponível em: <http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/300/ABOLICIONISMO_PENAL_DA_UTOPIA_A_REALIDADE>. Acesso em: 15 nov. 2009.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
Notas
1QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.40.
2ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Disponível em: <http://www.mp.to.gov.br/cint/cesaf/arqs/040908090302.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009, p. 463.
3CHISTIE, Nils. Los limites Del dolor. Trad. De Mailuz Caso. Apud QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.46.
4FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria Del garantismo penal. Apud Apud QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.50.
5ROXIN, Claus. Iniciación al derecho penal de hoy. Apud BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p.84.
6BARATTA, Alessandro. Princípios do Direito Penal Mínimo: para uma teoria dos Direitos Humanos como objeto e limite da Lei Penal. Disponível em: < http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Principios%20de%20direito%20penal%20minimo.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009, p.4.
7Op. cit. p.466.