CAPÍTULO II
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL E A GARANTIA DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ
2.1 Conceito e Noções Gerais
A palavra “princípio” tem significado amplo, carecendo de definição unívoca no seio do direito. Oriunda do latim – principiu –, é definida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como o momento, local ou trecho em que algo tem origem, sua causa primária[61].
No direito, pode-se definir princípio como o mandamento nuclear de um sistema, a disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência[62].
Para o presente trabalho, o que realmente importa é reconhecer o caráter normativo, e não meramente programático, dos princípios. Conforme destaca Paulo Bonavides, somente com o advento do pós-positivismo – responsável pelo que o aludido autor chama de grandes momentos constituintes nas últimas décadas do século XX – os princípios foram tratados como direito, visto que as constituições promulgadas a partir de então passaram a acentuar a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em alicerces sobre os quais se sustentam os novos sistemas constitucionais[63].
Ressalta Marcos Bernardes de Mello que o próprio Supremo Tribunal Federal não admitiu a normatividade dos princípios durante longo período, o que se refletia na ausência de decretação de inconstitucionalidade de norma infraconstitucional por ofensa a princípio, entendimento hoje superado pela jurisprudência do referido tribunal[64].
Foi o jurista inglês Ronald Dworkin o primeiro a admitir com consistência e solidez conceitual a normatividade dos princípios[65]. Para ele, deve-se distinguir regra de princípio, ambos espécies do gênero norma jurídica.
Segundo Dworkin, as regras são aplicadas à maneira do tudo ou nada, de modo que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou a regra é válida e sua consequência normativa, aplicada, ou ela não é válida. No conflito entre regras, só uma delas pode sobressair.
Os princípios, ao contrário, somente contêm fundamentos, que devem ser conjugados com outros provenientes de princípios diversos. Daí afirmar-se que os princípios, diferentemente das regras, possuem uma dimensão de peso, demonstrável na hipótese de colisão entre eles, em que aquele com maior peso relativo se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade[66]. É com base em tal raciocínio que alguns autores aceitam, por exemplo, que provas ilícitas, cuja produção a Constituição Federal veda, sejam admitidas, caso tenham em vista beneficiar o réu e, consequentemente, fazer prevalecer o princípio constitucional da presunção de inocência frente ao princípio da vedação das provas ilícitas.
Fazendo um apanhado dos critérios elencados pela doutrina para diferenciar regra de princípio, José Joaquim Gomes Canotilho[67] aponta os seguintes:
a) Grau de abstração: os princípios são normas dotadas de alto grau de abstração, enquanto as regras possuem abstração diminuta;
b) Grau de determinabilidade na aplicação ao caso concreto: os princípios necessitam de mediações concretizadoras, por serem vagos e indeterminados, ao passo que as regras são suscetíveis de aplicação direta;
c) Caráter de fundamentalidade no sistema de fontes de direito: os princípios são normas que exercem um papel determinante no ordenamento jurídico tanto pela sua posição hierárquica (princípios constitucionais), como pela importância estruturante no sistema jurídico (princípio do Estado de Direito);
d) Proximidade da ideia de direito: os princípios são standards normativos com base nas exigências da justiça, enquanto as regras podem ter conteúdo meramente funcional.
Porém, mais importante que estremar princípios e regras, é conferir-lhes força normativa, de modo que ambos, quando possuírem status constitucional, condicionem a validade do ordenamento jurídico.
2.2 Princípio do Devido Processo Legal
O princípio do devido processo legal tem sede constitucional, estando previsto no art. 5º, LIV, da Constituição Federal. Sua origem remonta à Magna Carta, declaração solene que o rei inglês João Sem Terra assinou, em 15 de junho de 1215, perante o alto clero e os barões de seu reino[68]. Conforme a cláusula 39 do referido documento – que, a rigor, foi redigido sem divisões nem parágrafos[69] – “os homens livres devem ser julgados pelos seus pares e de acordo com a lei da terra”.
Foi nos Estados Unidos da América que o devido processo legal se aperfeiçoou, com as Emendas V e XIV à Constituição estadunidense[70], contribuindo para a prevalência dos direitos fundamentais a partir da segunda metade do século XIX, através do papel desempenhado pela jurisprudência norte-americana após o término da guerra civil[71].
O devido processo legal costuma ser abordado sob duas concepções: a processual e a material ou substantiva.
Dentro da concepção processual, chamada por Canotilho de teoria do processo devido por qualificação legal, tem-se que, para que uma pessoa seja privada de seus direitos de liberdade e propriedade, urge que seja respeitado o processo especificado na lei, em cuja observância repousa o significado da concepção processual do devido processo legal[72].
Por seu turno, a teoria substantiva justifica a ideia material de um processo justo, eis que as pessoas têm direito não apenas a um processo legal, mas, sobretudo, a um processo legal, justo e adequado, quando se trate de legitimar o sacrifício da liberdade e da propriedade. O devido processo legal passa a ser considerado como uma proteção alargada de direitos fundamentais[73].
No processo penal, o princípio em comento geralmente é visto sob o aspecto processual. Assim, Paulo Rangel aduz que com espeque no devido processo legal se devem respeitar todas as formalidades previstas em lei para que haja o cerceamento da liberdade de um condenado[74].
Entrementes, apesar de o aspecto processual do devido processo legal – que diz respeito ao procedimento previsto em lei – merecer acolhida nos processos criminais em uma democracia, essa garantia formal não é suficiente para preservar o devido processo na atualidade. Deveras, o devido processo legal deve ser compreendido, no direito pátrio, por um prisma que pressuponha a adoção do sistema acusatório de processo penal, que foi acolhido pela Constituição Federal de 1988. Atento a tais pormenores, assere Elmir Duclerc[75]:
Devido processo legal, portanto, será, sem dúvida, um processo típico, ou seja, cujos trâmites estejam previstos com anterioridade na lei. Mas, muito além, deve ser também um processo orientado conforme os cânones do chamado sistema acusatório de processo penal, ou seja, um processo composto por um juiz efetivamente imparcial e partes parciais em igualdade de condições. (Grifo do autor)
Também é essa a opinião de Afrânio Silva Jardim, para quem o devido processo legal está vinculado à depuração do sistema acusatório de processo penal[76].
Portanto, o direito processual penal contemporâneo não se satisfaz com um processo que siga regras pré-estabelecidas, sendo imprescindível pautar o procedimento penal pelo modelo acusatório de processo criminal para que o devido processo legal se veja respeitado.
Ressalte-se que a noção de ampla defesa, consistente na garantia de autodefesa (por exemplo, no ato do interrogatório do réu em juízo) e na defesa técnica (prestada por advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil), está inserida no devido processo legal, pois não pode haver um processo penal acusatório devido sem que seja assegurada ao réu a adequada defesa realizada por um advogado.
2.3 Princípios do Contraditório e da Paridade de Armas
Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, contraditório é a ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los[77]. Trata-se de garantia constitucional – prevista no inc. LV do art. 5º da Constituição Federal – inerente à atual noção de processo[78].
O contraditório, para ser efetivo, deve ser observado durante todo o desenrolar da relação jurídica processual. Mas não basta dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los[79].
Nesse sentido é que se pode falar de uma nova formulação do contraditório, conforme pondera Eugênio Pacelli de Oliveira[80]:
Da elaboração tradicional que colocava o princípio do contraditório como a garantia de participação no processo como meio de permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e, assim, para o provimento final almejado, a doutrina moderna caminha a passos largos no sentido de uma nova formulação do instituto, para nele incluir, também, o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma efetiva igualdade processual. (Grifo do autor)
Aroldo Plínio Gonçalves, citado por Pacelli, leciona que o contraditório exige a garantia da participação em simétrica paridade[81]. Na mesma linha, Elmir Duclerc explica que o contraditório implica a paridade de armas entre os litigantes e impõe a existência de mecanismos recíprocos de fiscalização e controle da atuação processual da parte contrária[82].
Desse modo, verifica-se que a atribuição de poderes ao juiz para atuar de ofício, mormente no campo probatório, fere o princípio da paridade de armas, indo, ademais, quase sempre em desfavor do acusado. Ao deixar sua posição de inércia para buscar elementos de prova, pondo-se no lugar que deveria ser da acusação, o juiz perde a pretendida imparcialidade, maculando o sistema acusatório.
Por isso, o juiz criminal deve estar equidistante das partes, não lhe sendo lícito imiscuir-se nas atividades que foram conferidas ao órgão parcial.
2.4 Princípio da Imparcialidade do Juiz e sua Relação com o Sistema Acusatório
Como exposto anteriormente, a adoção do sistema acusatório implica a existência de três personagens no processo penal: o réu, o acusador e o juiz. A figura do acusador – em grande parte dos ordenamentos jurídicos, materializado no Ministério Público – tem como finalidade precípua a preservação da imparcialidade do juiz, a quem cabe processar e, ao final, proferir julgamento, sem intrometer-se na acusação. No modelo inquisitório, tal diferenciação não ocorria.
A imparcialidade do órgão jurisdicional configura um “princípio supremo do processo[83]”, constituindo verdadeiro alicerce sobre o qual assenta a legitimidade da função jurisdicional. Aduz Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[84] que “o princípio da imparcialidade funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da jurisdição, razão por que se busca criar mecanismos capazes de garanti-la”.
A doutrina mais tradicional usualmente relaciona a imparcialidade do juiz às disposições legais referentes à suspeição, às incompatibilidades e aos impedimentos[85], bem como às garantias que lhe são conferidas, com vistas a assegurar-lhes independência no exercício de suas atividades.
Assim, Mirabete[86] assevera que, para que o juiz seja competente e possa julgar com imparcialidade, é necessário que estejam excluídas relações com as partes, com outros juízes ou que ele não tenha julgado anteriormente o caso (em primeira instância).
Tourinho Filho[87], por sua vez, reza que a imparcialidade exige, antes de mais nada, independência, pois nenhum juiz poderá ser efetivamente imparcial se não estiver livre de coações que turbem seu trabalho. É por isso que a Constituição Federal, no art. 95, prevê as garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídios aos magistrados, as quais conferem ao juiz a certeza de que, decida como decidir, contrariando os interesses dos poderosos, continuará ele no cargo, sem poder ser removido arbitrariamente, e seu subsídio não será reduzido.
Contudo, superando-se essa visão de garantia da independência e da ausência de vínculos com as partes, é necessário dar outro enfoque ao princípio em tela. A imparcialidade do juiz no processo penal tem nítida ligação com o sistema acusatório, que retirou daquele as atividades de acusar, conferindo-lhes a um terceiro, que, atualmente, é representado, nas ações penais públicas, pelo Ministério Público. Pode-se, então, afirmar, juntamente com Paulo Rangel, que
A imparcialidade do juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois exatamente visando retirar o juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais[88].
Enfrentando a matéria no mesmo sentido, embora sem aludir expressamente ao sistema acusatório, disserta Ferrajoli[89]:
O juiz não deve ter qualquer interesse, nem geral nem particular, em uma ou outra solução da controvérsia que é chamado a resolver, sendo sua função decidir qual delas é verdadeira e qual é falsa. [...]
Chamarei eqüidistância ao afastamento do juiz dos interesses das partes em causa; independência à sua executoriedade ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes; naturalidade à determinação de sua designação e à determinação das suas competências para escolhas sucessivas à comissão do fato submetido ao seu juízo. Esses três perfis da imparcialidade do juiz requerem garantias orgânicas que consistem do mesmo modo em separações: a imparcialidade requer a separação institucional do juiz da acusação pública [...]. É supérfluo acrescentar, por fim, que a imparcialidade, além das garantias institucionais que a suportam, forma um hábito intelectual e moral, não diverso do que deve presidir qualquer forma de pesquisa e conhecimento.
Nesse diapasão, a atribuição ao magistrado de prerrogativas que melhor se afinam com a atividade acusadora viola a imparcialidade do órgão julgador. Aury Lopes Jr. sustenta que a imparcialidade cai por terra quando se conferem poderes instrutórios ao juiz, pois a atuação de ofício do magistrado é característica essencial do princípio inquisitivo, que leva, por consequência, a fundar um sistema inquisitório[90].
Cumpre observar, assim, o princípio da imparcialidade do juiz no processo criminal não apenas sob a luz da ausência de perturbação no ânimo do julgador devido a uma relação próxima com uma parte ou da independência no exercício da jurisdição, mas, sobretudo, no seu posicionamento equidistante das partes, para que ele não venha a se apoderar das funções que cabem ao órgão acusador.