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Reflexões sobre a violência e a participação da sociedade nos novos rumos da segurança pública

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01/10/2001 às 00:00
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3. Sistema de Justiça Criminal

A fúria legiferante chega ao cúmulo de em época em que os índices de violência atingem patamares nunca antes vistos, pretender desarmar a população. O objetivo, dizem, está em combater a violência, desarmar o criminoso. A MP nº 2.045-1, de 28 de junho de 2000 que suspende temporariamente o registro de armas de fogo, entre outras providências é de causar hilaridade; o profissional do crime continua adquirindo armas, inclusive de uso exclusivo do Exército, no mercado informal e o cidadão que compra arma para defesa pessoal, de forma lícita se vê impedido de fazê-lo; ora, trata-se de um convite à compra de armas ilícitas por meios ilícitos, acabando com a noção de legítima defesa sem que se altere absolutamente o quadro da violência.

3.1. Polícia

Nossa Polícia obedece aos moldes do Estado paternalista, conforme já vimos. Criada em um regime totalitário com a função de reprimir e não para prevenir a criminalidade, orientada contra o cidadão e não a favor do cidadão, reprime pela violência, utilizando o que combate como arma de combate e não se coaduna com um regime democrático. Para não mencionarmos o fato de que o combate ao crime começa na própria polícia devido à crescente corrupção demandando a necessidade de uma reforma institucional urgente, a velha estória da fruta podre no cesto...

Um dos maiores tiranos da história mundial, paradoxalmente afirmou : "Não pode haver autoridade pública que se justifique pelo simples fato de ser autoridade, pois nesse caso, toda tirania neste mundo seria inatacável e sagrada".(19)

De acordo com o trabalho da pesquisadora da UNESP, Eda Maria Góes todos os grupos sociais, analisados em estudo acerca da imagem da policia pelo exame de reportagens e textos sobre a atuação da polícia no Estado de São Paulo, reconhecem sua face violenta que teria origem na própria história do Brasil e ainda o excesso de autonomia desta em relação ao governo mormente o julgamento daqueles que cometem excessos por seus pares.(20)

No primeiro relatório, enviado tardiamente pelo Brasil a ONU, tendo em vista a ratificação pelo Brasil da Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis e degradantes (adotada pela Resolução nº 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984)(21) são relacionados mais de 150 assassinatos cometidos por policiais e métodos como espancamento, asfixia, choque elétrico em órgãos genitais, interrupção da alimentação por dias, retirada a frio de unhas, etc, em clara ofensa ao art. 5º, III da Magna Carta que, inserido no rol de direitos e garantias Fundamentais proíbe a tortura.(22) Com base no número de Inquéritos Policiais por tortura (200) fornecido pelos estados, número de processos (100) e conhecimento de apenas uma punição o relatório conclui pelo fracasso da Lei nº 9.455/97.(23)

Este é o momento de refletirmos acerca de nossa contribuição não só para a exacerbação da violência, mas também pela falência das instituições responsáveis pela sua prevenção e repressão. Quem vigiará os vigias?(24)

Jean-Pierre Beaulne, Juiz da Corte de Justiça da Província de Ontário e ex-presidente da Comissão de Controle Civil da Real Polícia Montada do Canadá, relatou a experiência canadense que criou uma espécie de supervisão civil do cumprimento da lei - A Comissão de Queixas Públicas da RCMP (Polícia Montada Real Canadense ou Royal Canadian Mounted Police).(25) Por que não pensarmos em algo semelhante para o Brasil, uma espécie de Corregedoria Civil da Polícia? E quanto a uma polícia comunitária? Organizações de bairro e Municipais de cidadãos que exijam da Polícia um bom desempenho, e que cobrem segurança, através de um policiamento ostensivo e preventivo bem como agilidade nos Inquéritos.

Com efeito, Relatório a respeito da falta de controle sobre o abuso policial nos Estados Unidos inclui como um dos problemas mais comuns a falta de controle civil externo- O controle civil externo deveria ser uma parte integrada da fiscalização da polícia e da formulação de políticas, ao invés disso tem sido deixado de lado na maioria das cidades pesquisadas.(26)

O fenômeno altamente descodificante de feudalização em que se encontra nosso Direito é uma inversão aberrante em que o cidadão chama para si deveres do Estado utilizando-se de vigilantes contratados pois não confia na polícia, não confia no sistema. Isto tudo é claro, tratando-se da classe média alta e alta, já que a classe baixa não acredita na segurança posta e tampouco dispõe de recursos para supri-la por uma segurança privada.

O cidadão empobrecido se conforma com um Estado inoperante em lugar de exigir que a Polícia cumpra com seu dever e o cidadão abastado dispensa o Estado, criando o seu próprio feudo.

Neste compasso a lição do Mestre Ricardo Lorenzetti, acerca do tema: O Código surge com o Estado, e este, com a nacionalidade. Este esquema foi justamente, o substituto do feudo e com ele incompatível. Daí porque estes fenômenos de feudalização sejam descodificantes.(27)

3.2. Sistema carcerário - Sistema?

O Departamento Penitencial e o Conselho Nacional de Política Penitenciária e Criminal, por seu turno, estão longe de resolver a situação dos condenados que cumprem penas em estabelecimentos prisionais em condições que fazem com que os relatos do Memórias da Casa dos Mortos pareçam pálidos esboços dos sofrimentos porquê pode passar um presidiário. (28)

De outra parte, como comentado pelo Diretor do Instituto Psiquiátrico Forense gaúcho, Gabriel Camargo: "A Medida de Segurança é ainda pior do que uma condenação na Justiça criminal, porque o apenado tem uma pena estabelecida e direito, no decorrer da condenação, a pleitear liberdade condicional". De fato, as perspectivas de que o paciente retorne do Instituto Psiquiátrico Forense, recuperado, em um lapso razoável são bastante escassas. Na prática o tratamento perdura sem chances de melhora, configurando quase um ergástulo que, de resto é, sabiamente, repelido pela nossa legislação como meio de punição (art. 5º, XLVII, b/CF). (29)

Como muito bem colocado por Paulo S’Antana "Tudo se pode tirar de um homem, menos a esperança. Deve ser por isso que sabiamente a lei penal brasileira recusa-se historicamente a instituir a pena de prisão perpétua. Os criminosos brasileiros podem ser condenados a mais de cem anos de prisão, como muitos o são, mas o Estado instituiu o autodever de libertá-los após 30 anos de pena cumprida. Exatamente porque não se pode tirar do homem a esperança. Pode-se tirar do homem a liberdade, mas não a esperança de voltar à liberdade. Sonhar é o mais sagrado direito do homem. O miserável, o pobre, o marginalizado pode ser privado de todos os seus direitos, menos o de sonhar, de ter esperança." (30)

O alcoolismo e a toxicomania, responsáveis por grande parte dos atos violentos cometidos na célula familiar e fora dela, não são combatidos e uma vez que ocorram, não são tratados devidamente. Os indivíduos portadores destes males são jogados na vala comum de agressores que devem ser apartados da sociedade e confinados sem o tratamento compatível.

Urge que o Estado se manifeste acerca da implantação de programas de terapia-recuperacional e estímulos a entidades comunitárias de apoio a dependentes químicos, a fim de cumprir a norma do art. 9º, da Lei nº 6368/76 que por tratar-se de norma programática depende até o presente momento de implementação sendo a discussão sobre a descriminalização do uso de drogas, ademais inútil, onde não há o mínimo investimento na recuperação dos usuários.(31)

O Judiciário, pouco aparelhado, vê-se em dificuldades para resolver as excessivas demandas que abarrotam os Tribunais e quando profere uma decisão, através de um Juiz; que é um ser humano com limitações como os demais, não pode se indagar sobre todas as questões atinentes à matéria. "O que não está nos autos não está no mundo" e a verdade real, absoluta, buscada dentro do processo muitas vezes não enseja a visualização das circunstâncias sob as quais este ou aquele indivíduo agrediu outro, qual o seu meio social, qual a sua história de vida, ou se foi vítima de violência dentro de seu próprio lar.

A sociedade contenta-se em encarcerar o autor da violência, como se este nunca mais fosse retornar à sociedade, como se condená-lo a uma subvida, tal qual uma besta enjaulada fosse nos livrar do seu potencial agressivo, que, entretanto, remanesce para aflorar em um novo momento, quando livre, poderá vingar-se da sociedade. Como? Com violência.

"Aqueles terríveis baluartes com que a organização estatal se protegia contra os velhos instintos da liberdade -os castigos fazem parte, antes de tudo, desses baluartes -acarretaram que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre, errante, se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o gosto pela perseguição, pelo assalto, pela mudança, pela destruição -tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: essa é a origem da má consciência"(32)

No Brasil a pena é ainda vista como um castigo, punição, vingança da sociedade contra o agressor e os novos rumos do Direito Penal preconizados por Hungria estão longe da concretude. Nelson Hungria em obra de 1977 mencionava o art. 37 do Código Penal Suíço que preceituava de modo expresso que as penas privativas de liberdade deveriam ser executadas de modo a exercer sobre o condenado uma ação educadora e a prepará-lo para a vida livre.(33)

Podemos, acaso, supor que somente a coerção estatal, a coação psicológica pelo medo da punição podem refrear a violência? Não. É preciso recuperar o agressor, evitar que ele volte para o seu meio social apenas castigado, humilhado e porquê não, agredido pelo próprio sistema.

A adoção de medidas que dêem efetividade à Lei de Execuções Penais, tais como a criação de casas do albergado, colônias penais e industriais, presídios com alas de trabalho, amparo ao egresso do sistema penitenciário, apoio psicológico e psiquiátrico, não rendem votos e, portanto, são menoscabadas pelos políticos. Fala-se em privatizar muita coisa, mas pouco se comenta sobre a possibilidade de privatização das cadeias ou a criação de um sistema misto de cumprimento da pena que seria, porque não, uma medida razoável diante da falência do sistema prisional tal como está posto hoje.

Acerca do trabalho do preso, relata o Médico que atuou no maior presídio do país que "Algumas empresas empregam mão de obra local para costurar... Teoricamente, os presos deveriam receber pelos serviços prestados, o que poderia ajudar a família desamparada ou servir de poupança para quando fossem libertados. Na prática, porém, a burocracia para retirar o dinheiro recebido é tanta que muitos aceitam pagamento em maço de cigarros..." ·.

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Calamos sobre os direitos humanos, quando uma parcela considerável da população tem seus direitos humanos desprezados, dentro de cárceres para os quais nós, os civilizados, os remetemos sob o pretexto de conter a violência, de reprimir a criminalidade e, entretanto, invocamos estes mesmos direitos humanos, para levantar a voz contra a violência que sofremos.

A defesa dos Direitos Humanos no Brasil como anteriormente mencionado transformou-se em sinônimo de defesa do crime, pois diante da grave crise enfrentada por toda população que sofre a violência estrutural, a defesa de direitos de infratores soa como um ultraje; por essa razão episódios lamentáveis como a chacina na Casa de Detenção do Carandiru em outubro de 1992 caem no vazio, sendo alvo de notícias por algum período após o qual são relegados ao esquecimento.

As penas corporais (açoites, mutilações e pena de morte) são repelidas por nosso sistema penal, salvo a pena de morte prevista expressamente na Constituição Federal em casos de guerra. (34) E paradoxo dos paradoxos, as penas privativas e restritivas da liberdade são cumpridas em estabelecimentos que longe de preservarem a incolumidade física do apenado, o expõem a sevícias, ambientes infectos e promíscuos, em evidente desrespeito ao art. 5º, XLIX da Magna Carta que formalmente assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. (35)

Nunca é demais lembrar a posição de Evandro Lins e Silva contrária à prisão À humanidade tem que encontrar formas mais civilizadas, capazes de manifestar a reprovação da sociedade contra o crime, que não sejam a prisão. Por exemplo, a multa, a prestação de serviços gratuitos à comunidade, a interdição de direitos: o cidadão não pode mais praticar tais atos, não pode morar em tal lugar, tem que dar satisfação da sua vida, periodicamente em tal repartição. Mas não a cadeia. A cadeia é monstruosa. Cada dia mais eu me convenço de que a prisão é uma coisa infame e devastadora da personalidade humana. E hoje ela ainda vem com a perspectiva da contaminação pela Aids. (36) Conquanto não compartilhemos de sua posição que simplifica o problema sem solucioná-lo, ponto que abordaremos mais adiante, temos de forçosamente concordar que o sistema prisional como está é desumano.

Some-se a todo este panorama dantesco de desrespeito aos direitos humanos à fina ironia de chamarmos Instituições responsáveis pela recuperação de adolescentes infratores, como a que temos de Fundação para o Bem Estar do Menor. No que tange a esta Instituição, a Sessão Sul do Tribunal Permanente dos Povos, em seu libelo acusatório apontou que: nos anos de 1996 a 1998, a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) tem sido palco de tristes acontecimentos: 31 rebeliões, média de uma por mês; nove adolescentes de 14 a 18 anos mortos, sendo cinco queimados, três enforcados e um de causa ignorada, após sofrer uma queda misteriosa.(37)

A Human Rights Watch, em relatórios anuais baseados no exame de estabelecimentos penais nos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e em Brasília condenaram o Brasil reiteradamente pela grave superlotação nas prisões, condições de detenção horríveis e execução sumária de detentos. A mesma organização, baseada em dados do último censo penitenciário de 1997, no Brasil, revela que enquanto as prisões brasileiras tinham capacidade para 74.000 detentos, nelas eram mantidos mais de 170.000. (38)


Conclusão

A violência, chamada de este fenômeno misterioso pelo Ministro da Justiça, como visto, não pode ser atribuída somente a um ou alguns fatores específicos, mas pode-se estimar sem medo que a falta de perspectivas, o desemprego, o consumismo desenfreado, o consumo de drogas, entre outros já comentados criam o ambiente ideal para o desenvolvimento deste monstro que poderá ter nascido por outros fatores tais como psicológico. Suas causas que são objeto da sociologia, psiquiatria, psicologia, etc.(39) dão margem a estudo à parte, complexo e trabalhoso, mas fica a mensagem de que suas conseqüências podem ser eficazmente combatidas e mesmo refreadas a tempo com medidas práticas e que não estão apenas a cargo do governo.

O misterioso fenômeno não pode mais ser utilizado como argumento em discursos políticos e jurídicos ou devo dizer jurídico-políticos, como instrumento de manipulação da população para acrescentar mais fios à teia de aranha legislativa que possuímos. Cidadãos comuns podem e devem contribuir para a mudança no cenário de violência urbana em que vivemos sem que se espere apenas por um Estado provedor. Nunca é demais recordar que a Segurança Pública é posta como direito e responsabilidade de todos pela própria Constituição Federal em seu art. 144, caput.(40)

É preciso que os criminosos sejam persuadidos a não reincidirem e os cidadãos estimulados a não violarem os preceitos legais postos administrativa e judicialmente pois a pressão é necessária, a violência não, devendo o Estado, assumir a sua parcela de responsabilidade, com a adoção de Políticas Sociais adequadas para combater a miséria, desemprego, e também o fornecimento de uma Segurança que haja persuadindo os cidadãos a cumprirem leis cujo conteúdo fático reconheçam, dando-lhe legitimidade e efetividade social plenas e não o mero obedecer pelo medo, pois o que se teme nem sempre é o que se respeita.

A esperança de reintegração social é um forte mobilizador da melhora, enquanto a desesperança é fonte de desistência. O criminoso não é só um criminoso, mas antes de tudo um ser humano que não apenas tem seus direitos garantidos na Magna Carta como têm direito natural de viver em sociedade, produzir e retomar sua posição após ser punido.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAZ, Mirele Alves. Reflexões sobre a violência e a participação da sociedade nos novos rumos da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2269. Acesso em: 26 abr. 2024.

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