Com 22 anos de existência, o Código de Defesa do Consumidor já permitiu à grande maioria da população a absorção de sua principal razão de existir. Exaustivamente repetida nas lições de Direito do Consumidor, a vulnerabilidade é a pedra de toque de todo o microssitema protetivo desses agentes econômicos, seja ela de ordem técnica, econômica ou jurídica. Por definição, todos os consumidores são vulneráveis, conforme consta da Resolução nº 39/248, editada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em sua 106ª Sessão Plenária, realizada no ano de 1985.
Nada obstante o reconhecimento da vulnerabilidade de todos os consumidores, há grupos que demonstram uma fragilidade ainda maior em relação aos fornecedores de produtos e serviços, isto é, pessoas ainda mais vulneráveis à atuação desse sujeito da relação de consumo. São os consumidores hipervulneráveis, isto é, aqueles que, em razão de sua especial condição, como idosos, crianças, deficientes mentais, analfabetos e semi-analfabetos, pessoas sensíveis ao consumo de certos produtos etc., ficam ainda mais expostos às práticas comerciais, à periculosidade e nocividade de certos produtos, enfim, à toda atividade desempenhada pelos fornecedores no mercado de consumo. A esse respeito, o insigne ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, um dos maiores consumeristas do Brasil, e hoje ministro do STJ, já teve a oportunidade de se manifestar, ao proferir voto no REsp 586.316/MG. Destacamos alguns trechos, conforme abaixo:
“Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a ‘pasteurização’ das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna.
(...)
O Código de Defesa do Consumidor, é desnecessário explicar, protege todos os consumidores, mas não é insensível à realidade da vida e do mercado, vale dizer, não desconhece que há consumidores e consumidores, que existem aqueles que, no vocabulário da disciplina, são denominados hipervulneráveis, como as crianças, os idosos, os portadores de deficiência, os analfabetos e, como não poderia deixar de ser, aqueles que, por razão genética ou não, apresentam enfermidades que possam ser manifestadas ou agravadas pelo consumo de produtos ou serviços livremente comercializados e inofensivos à maioria das pessoas.
O que se espera dos agentes econômicos é que, da mesma maneira que produzem sandálias e roupas de tamanhos diferentes, produtos eletrodomésticos das mais variadas cores e formas, serviços multifacetários, tudo em atenção à diversidade das necessidades e gosto dos consumidores, também atentem para as peculiaridades de saúde e segurança desses mesmos consumidores, como manifestação concreta da função social da propriedade e da ordem econômica ou, se quiserem, uma expressão mais em voga, de responsabilidade social.”
No âmbito da proteção civil do consumidor, o CDC prevê no art. 39, IV, como abusiva a prática do fornecedor que “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” (art. 39, IV). Mas há também a previsão de sanções de natureza penal destinadas a garantir especial proteção aos hipervulneráveis, a exemplo da regra do art. 76, IV, b, que traz como uma das agravantes dos crimes tipificados pelo diploma consumerista ser o crime cometido “em detrimento de operário ou rurícola; de menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência mental interditadas ou não”.
A preocupação com esse grupo de consumidores vem mobilizando a sociedade civil. Como exemplo atual, pode-se citar diversos movimentos dedicados ao combate de práticas comerciais que abusam da capacidade de discernimento das crianças. Em âmbito legislativo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é, por excelência, o diploma normativo destinado à ampla proteção e defesa desse segmento social, tutelando diversas situações que cercam seu desenvolvimento, do ponto de vista moral e material. No que se refere especificamente à seara consumerista, está em trâmite o Projeto de Lei nº 5.921/01, objetivando disciplinar a publicidade para a venda de produtos infantis. No momento, o referido PL encontra-se na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI).
Em relação aos idosos, além das normas estatuídas pelo CDC, eles contam com a proteção conferida pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), cujo art. 20 prevê: “O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade”. Além disso, pode-se citar a especial proteção contra o aumento abusivo de mensalidades de seguros de assistência à saúde (planos de saúde), em razão de mudança de faixa etária – matéria exaustivamente espancada pela jurisprudência pátria.
Entre tantos outros exemplos que poderiam ser citados, há, ainda, o caso das pessoas portadoras de alguma enfermidade que demanda cuidados especiais. O exemplo mais recente refere-se aos portadores da Doença Celíaca, os quais apresentam intolerância ao glúten – substância comumente encontrada em diversos alimentos. Nesses casos, avulta para o fornecedor o dever jurídico de informar sobre a presença da substância nos alimentos. Sobre o tema, o STJ já se manifestou, ao julgar o REsp nº 722.940/MG, tendo o eminente relator, ministro Castro Meira, destacado:
“São exatamente os consumidores hipervulneráveis os que mais demandam atenção do sistema de proteção em vigor. Afastá-los da cobertura da lei, com o pretexto de que são estranhos à ’generalidade das pessoas, é, pela via de uma lei que na origem pretendia lhes dar especial tutela, elevar à raiz quadrada a discriminação que, em regra, esses indivíduos já sofrem na sociedade. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador.” (destaque nosso).
Sem pretender esgotar o tema, os exemplos citados acima são apenas alguns, e servem para afirmar a vastidão que envolve a questão, já que uma das principais características dos sistemas protetivos de vulneráveis é a sua construção fundada em cláusulas abertas. Significa que o aplicador do direito, no momento em que se depara com determinada situação, é autorizado a verificar se, naquele caso concreto, a pessoa pode ser enquadrada nas hipóteses previstas pela norma. A razão para tanto reside na dinâmica das relações sociais, que a cada dia é apta a produzir novas situações para as quais o sistema baseado na casuística não possui capacidade tutelar.
Desse modo, garante-se, com mais eficiência, a observância do superprincípio da dignidade humana. Promover a proteção e defesa de todos contra agressões alheias, notadamente contra aqueles que atuam com objetivo de lucro, é um dever do Estado. Mas, esse dever toma proporções ainda maiores quando se trata de proteger os desvalidos; os indefesos; os verdadeiramente invisíveis aos olhos de toda a sociedade, ou seja, os hipervulneráveis.