Fenômeno por demais curioso é que no caso de falta disciplinar também prevista como crime começa a correr o prazo prescricional do momento do fato. Todavia, no caso de falta disciplinar não prevista como crime, o prazo da prescrição começa a fluir da data em que a autoridade pública tomar conhecimento do fato. E eis a contradição. No caso de infração mais grave, simultaneamente prevista como crime e como ilícito disciplinar, a prescrição começa a correr da data do fato. Já no caso de infração menos grave, a prescrição corre da data em que o fato se tornar conhecido da autoridade competente para aplicar a pena disciplinar.
Para nós, o dispositivo da lei administrativa que hospeda um tamanho absurdo deve ser tido como não escrito, aplicando-se, sempre, a boa doutrina que sempre inspirou a legislação penal. No direito penal, conta-se a prescrição do momento da consumação do crime, apenas excetuando a hipótese de falsidade de assentamento de registro civil.
Na obra coletiva "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", Alberto Silva Franco e outros, 5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1995, vol. I, p. 1.336-7, em nota ao art. 111 do Código Penal, encontra-se o seguinte entendimento sobre o assunto:
"O início do prazo prescricional é contado da data do conhecimento do fato criminoso por parte da autoridade pública, apenas na hipótese de falsificação de assentamento de registro civil e não em toda e qualquer hipótese de falsum. Não seria difícil verificar, gramaticalmente, que a palavra "falsificação" está referida, alternativamente, com alteração, ao assentamento do registro civil, idest: não se cogita de qualquer falsificação, mas da falsificação limitada ao assentamento do registro civil. Não é difícil perceber que o legislador visou abarcar as duas modalidades fundamentais da produção material do falsum: a formação e a alteração, designando a primeira, com certa infelicidade, por "falsificação" (RDP 13-14/160)."
Ora, tendo o Código Penal, independente da gravidade do crime, e assim, tanto no homicício, como no latrocínio, no seqüestro, no tráfico ilícito de drogas, como nos crimes de menor relevância, fixado como o marco inicial da prescrição o momento consumativo da infração – e não a data do conhecimento do fato pela autoridade pública –, não há como admitir-se que a data do conhecimento da falta disciplinar seja a regra em sede de direito administrativo disciplinar, se esta é a exceção em direito penal.
Na monografia "O Ilícito Administrativo e seu Processo", Editora Revista dos Tribunais, 1994, obra com a qual Edmir Netto de Araújo conquistou o título de Doutor, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, lembra o ilustre Professor – a propósito das hipóteses em que não havia previsão legal expressa quanto à prescrição no processo disciplinar – que no RE 78.917, o Supremo Tribunal Federal assim decidiu:
"Aplicam-se às penas disciplinares as normas de prescrição do Direito Penal. O direito administrativo não é infenso à analogia penal".
"... o recurso ao Poder Judiciário, como em tantas outras oportunidades tem ocorrido, poderá forçar até mesmo a modificação do direito positivo, firmando o entendimento de que o dies a quo deve ser o dia da infração. Ressalte-se que a União já adotou este entendimento pelo menos quando da promulgação da recentíssima Lei da Defensoria Pública da União, Lei Complementar nº 80, de 12.01.94, que em seu artigo 50, § 7º, declara que o prazo prescricional para a penalidade de advertência, suspensão e remoção compulsória é de dois anos contados da data em que foram cometidas as faltas." ("O Ilícito Administrativo e seu Processo", p. 248).
A seguir, lembra Edmir Netto de Araújo a existência de
"... certas aberrações decorrentes dos dispositivos estatutários, especialmente federais, como se acham em vigor, mesmo cumprida a determinação constitucional (art. 37, § 5º) para fixação, por lei, dos prazos de prescrição de ilícitos administrativos.
"1) A primeira delas: a prescrição da ação disciplinar do ilícito administrativo que ocasiona demissão, mesmo agravada, tem seu termo inicial da data do conhecimento da infração, ao passo que a falta-crime a tem na data do fato. Ou seja, é provável que, muitas vezes, a infração mais grave deixe de ser punível antes da infração menos grave.
"2) A fixação do dies a quo na data do conhecimento da autoridade, e interrupção da prescrição pela instauração do respectivo procedimento administrativo levam a outros absurdos: será quase impossível ao servidor, especialmente federal, na prática livrar-se da ameaça de punição ("O Ilícito Administrativo e seu Processo", p. 249).
Um exemplo prático poderá melhor elucidar o absurdo a que pode conduzir a norma administrativa que fixa o marco inicial da prescrição na data do conhecimento do fato: uma falta ética supostamente praticada em 1971, veio a ser punida em 1995, isto é, quase 23 anos depois, com a cassação do registro profissional de um profissional da medicina. A falta por ele cometida era apenas de natureza administrativa, isto é, o fato não correspondia igualmente a uma falta criminal. Se fosse o crime mais grave que se pode imaginar, o prazo máximo da prescrição, segundo o Código Penal (art. 109, I) seria, como é, de 20 anos. A prescrição vintenária em sede criminal atinge qualquer crime cuja pena máxima seja superior a 12 anos de privação da liberdade.
Coerente com nosso entendimento, pode ser vista ainda a lição do Professor JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, na obra "Prática do Processo Administrativo", Editora Revista dos Tribunais, 1988, em que, se bem que também cuidando apenas da infração administrativa praticada por servidor público, o que não é o caso de profissional liberal, igualmente censura a legislação administrativa a propósito do tema prescricional, apontando-lhe equívocos.
Efetivamente, o Professor JOSÉ CRETELLA JÚNIOR – após classificar as infrações disciplinares em ilícito administrativo puro e ilícito administrativo crime, ou seja, em infrações puramente administrativas e em infrações ao mesmo tempo administrativas e criminais – tece as seguintes considerações:
"Ora, se a sanção, como categoria jurídica, é sempre ligada à prescrição e esta é vinculada ao tempo, o princípio informador do instituto prescricional não pode deixar de ser senão este: a prescrição começa a correr "a partir do fato". Por quê? Porque o tempo vai apagando aos poucos a imagem do evento e do quadro da época. O fato e as circunstâncias que o cercaram esmaecem-se na memória dos que o presenciaram, as provas materiais e as testemunhais perdem o significado.
"Justifica-se a prescrição dos delitos tanto por motivos jurídico-materiais como processuais. É claro que o simples transcurso do tempo não tem o condão de considerar o fato como não acontecido" - discorre Reinhart Maurach, no Tratado de Derecho Penal (v. II, p. 624). E, na mesma página, acrescenta: "do ângulo processual também se justifica a prescrição: pelo transcurso do tempo se dificulta a averiguação do fato e da culpabilidade, aumentando o risco de erro nas decisões".
"Este é um princípio geral de direito que deve informar o instituto da prescrição em qualquer dos ramos em que se desdobra a ciência jurídica, quando está presente o ius puniendi. Como punir, com a menor margem possível de erro, a infração? A visão dos fatos não se deteriora na razão direta do tempo que se vai interpondo entre a consumação do delito e da época do julgamento? Fatos que se perdem na noite dos tempos podem ser julgados, no presente, com objetividade? E o direito de punir não perde a razão de ser?
"Veja-se, na prática, a que situações incongruentes pode levar a aplicação das regras estatutárias ao agente infrator, depois de decorrido muito tempo, após o evento." ("Prática do Processo Administrativo", cit., p. 101).
"Como a prescrição, na esfera administrativa, começa a correr a partir da ciência do fato, chegaríamos a este impasse: deve a autoridade punir, mas a punição perdeu a razão de ser, por inoperante.
"Em magistral voto, prolatado no STF, o Ministro MOREIRA ALVES ponderou que "se até as faltas mais graves – e, por isso mesmo, também definidas como crimes – são, de modo genérico, suscetíveis de prescrição, no plano administrativo, não há como pretender-se que a imprescritibilidade continue a ser o princípio geral, por corresponder ao escopo da sanção administrativa, ou seja, o interesse superior da boa ordem do serviço público" (cf. RDA 135/74)." ("Prática do Processo Administrativo", cit., p. 102).
E, por fim, o Professor CRETELLA JÚNIOR, nas conclusões sobre o assunto, ensina:
"13. Nos Estatutos omissos, quanto ao início da prescrição, deve ser adotada, por analogia, a regra do Código Penal, ou seja, a prescrição deve fluir a partir do momento da consumação do ilícito e nunca a die scientiae.
"14. De lege ferenda, os Estatutos, que adotam o critério para a contagem do prazo prescricional da época da ciência da falta pela autoridade, devem abandonar essa regra pelos absurdos a que conduz e pela infração ao princípio geral do direito, que agasalha a regra da prescritibilidade, traço inseparável do direito de punir." ("Prática do Processo Administrativo", cit., p. 106).
A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, dispõe, a propósito:
"Art. 142. A ação disciplinar prescreverá:
"I - em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
"II - em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;
"III - em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.
"§ 1º O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.
"§ 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.
"§ 3º A abertura de sindicância ou a instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, até a decisão final proferida por autoridade competente.
"§ 4º Interrompido o curso da prescrição, o prazo começará a correr a partir do dia em que cessar a interrupção."
Em conclusão, pode-se afirmar que o art. 142, § 1º, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, deve ser tido como não escrito, não só nos casos de infração criminal pura, como também nos casos de infração disciplinar e criminal.
Mais coerente com os princípios doutrinários referidos é a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, que, no particular, dispõe:
"Art. 244. Prescreverá:
"I - em um ano, a falta punível com advertência ou censura;
"II - em dois anos, a falta punível com suspensão;
"III - em quatro anos, a falta punível com demissão e cassação de aposentadoria ou de disponibilidade.
"Parágrafo único. A falta, prevista na lei penal como crime, prescreverá juntamente com este.
"Art. 245. A prescrição começa a correr:
"I - do dia em que a falta for cometida; ou
"II - do dia em que tenha cessado a continuação ou permanência, nas faltas continuadas ou permanentes.
"Parágrafo único. Interrompem a prescrição a instauração de processo administrativo e a citação para a ação de perda do cargo."
Sobre o tema, o Jurista Serrano Neves, quando Conselheiro da Ordem dos Advogados, cujo Estatuto era omisso a propósito da prescrição, ao apreciar o Projeto de Lei nº 163, de 1974, no Senado, que, suprindo lamentável lacuna em nosso direito positivo, veio a ser convertido, tempos depois, na atual Lei n° 6.838, de 29.10.80, já referida, expressou o seguinte entendimento:
"Nossa posição no tema, por força de realidades dele inafastáveis, está sincera e fundamentadamente exposta no estudo crítico que nos sugeriu, de imediato, o Projeto-LEONI MENDONÇA. Entendemos, com efeito, com MAJADA PLANELLES, que "no és posible olvidar que el derecho ha de seguir al hecho como la sombra al cuerpo, si no se quiere crear um divorcio entre la ley y la vida".
"O ius puniendi - convenhamos - nos regimes organizados sob claros e sólidos princípios liberais e libertários, não pode ser absoluto e perpétuo. Há de sujeitar-se, necessariamente, a certas restrições. Por mais respeitável que seja, em sede de direito penal disciplinar, o criterium tradicionalista, não nos parece muito respeitável a idéia de que o Estado, por si ou por seus órgãos de administração delegada, deve, humanamente, cercar seus administrados de umas tantas garantias, como, por exemplo, as conseqüentes ou decorrentes de sua própria inércia, ou omissão, ou esquecimento, ou indiferença quanto ao uso, por ele próprio, e segundo a lei, do direito de processar e de punir.
"Sob os regimes realmente liberais - fundados, pois, em postulados rigorosamente democráticos - não se tolera a idéia de processo perpétuo, seja este relativo ao direito comum, seja ao disciplinar." (Rev. da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado da Guanabara, Ano II, vol. 3, p. 206, sob o título "Decadência e Prescrição no Processo Disciplinar").
Coerente com a melhor doutrina – exceto quanto à parte final – foi o art. 1º da Lei nº 6.838, de 29.10.80, ao dispor que a prescrição conta-se do dia do fato e para os casos em que não houvesse sido ainda estipulado prazo de prescrição para infrações disciplinares, este contar-se-ia da data da vigência da mesma lei.
A ressalva que opusemos refere-se à contagem do prazo prescricional – nos casos em que não houvesse previsão anterior de prazo prescricional – apenas a partir da "data da vigência da mesma lei", pois, nesse caso, pensamos que somente estaria completa a norma e conforme a melhor doutrina, se fosse feito um acréscimo, por exemplo, nestes termos: "exceto se já houver transcorrido cinco anos da consumação da falta disciplinar".
É que, com a ausência do acréscimo de uma norma desse jaez, foi adotada, se bem que de forma implícita, a tese da imprescritibilidade para as sanções disciplinares praticadas anteriormente à lei que veio a dispor sobre o prazo prescricional das sanções disciplinares, colmatando, assim, a lacuna da legislação precedente. Mas este lapso do legislador, a nosso ver, mais cedo ou mais tarde, certamente virá a ser corrigido pela doutrina e pela jurisprudência, que fará retroagir a norma penal ou disciplinar mais benéfica – que fixou prazo prescricional – para aplicar-se aos fatos anteriores à nova lei.