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O sistema do Common Law

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16/10/2012 às 16:22
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4. O Funcionamento do Sistema

Segundo Wolkmer30:

“Não só nos parâmetros do Common Law, mas ainda nos sistemas jurídicos de Direito codificado, o ponto central de gravitação de toda criação judicial incide na decisão de casos particulares, e não na formulação de regras gerais e abstratas, pois a criação judicial expressada por sentenças dos juízes nos tribunais representa a fonte autêntica do Direito objetivado.”

A doutrina positivista da École d’Exégèse fazia valer a máxima de Montesquieu “Le juge: bouche parlante de la loi” 31 e do brocardo pseudo-latino in claris non fit interpretatio; com o passar do tempo outras doutrinas se instauraram no sentido de uma maior dissociação entre texto e norma e consequentemente uma maior intercessão entre os poderes o que torna cada vez mais o juiz um ser ativo, político.32 Já é unanime a posição de que o juiz é ativo e cria direito.33O legislador faz leis, mas lei não é Direito; lei é norma geral, impessoal, enquanto o Direito é necessariamente pessoal, particular: feito pelo juiz, sob medida...34

Quanto a essa discussão, e no âmbito do Common Law, destacam-se as teorias declaratórias e constitutiva da jurisdição. A teoria declaratória afirma a posição de Montesquieu de que o juiz se restringe a aplicar o direito, não o cria. O Common Law é um direito não escrito, é um direito que está nos costumes, o papel do juiz é apenas revelar esses costumes, não criá-los.35 Bentham e Austin, da teoria constitutiva, defendem por outro lado que o juiz vive uma ilusão ao achar que apenas revela algo que simplesmente existe feito por ninguém, para eles o juiz é o real criador do Common Law. Segundo Wesley-Smith36:

The common law, said the positivists, existed (if it existed at all) because it was laid down by judges who possessed law-making authority. Law was the product of judicial will. It was not discovered but created”.

Alguns pontos são destacados nesse embate de teorias:

  • Para os declaratórios, o juiz nunca antepõe suas próprias opiniões, mesmo quando decide em caso de lacuna. Para os defensores de uma teoria constitutiva isso é um absurdo, os magistrados impõem muito de sua vontade nas decisões, é claro que se pressupõe neutralidade destes, mas tal é impossível em matéria decisória, afinal todo texto é impregnado de intenções. Isso é explícito no acórdão escrito pelo ministro Marco Aurélio de Mello37 :

“Ofício judicante – postura do magistrado. Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerando a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática pura, encontrando o indispensável para formalizá-la”

  • A possibilidade da criação de direito pelo judiciário contraria a doutrina da separação de poderes, defendem os declaratórios. O que para os que defendem o “judge made law” é verdade mas irrelevante, pois não se pode conceber uma separação de poderes perfeitamente rígida;

  • Para a teoria declaratória se o tribunal criasse direito a sentença teria caráter retroativo. Que é o que efetivamente ocorre no direito americano.

Quanto ao surgimento de uma lacuna, Ascenção diz que o juiz anglo-americano não é totalmente livre para dirimir tais casos baseado em sua concepção de justiça; toda criação dele é subordinada ao sistema no qual ele opera.38

O direito anglo-americano é um direito de juízes, é notável sua preponderância com relação aos doutrinários. O juiz é o ápice das carreiras jurídicas, René David explica que as universidades de direito na Inglaterra surgiram tardiamente, e os juristas eram práticos, daí a pouca importância da doutrina. O Common Law é um direito dos tribunais e seus oráculos são os juízes, o juiz anglo-americano funciona como um arbitro, observa as regras e diz qual o direito aplicável.39

Não se pode entender que a utilização do precedente torna a decisão em um processo silogístico, apenas associativo. Cabe então distinguir aquilo que é a ideia essencial, o princípio base de uma decisão (ratio decidendi), e o que é secundário (obter dicta).40 A aplicação do precedente exige essa apreciação melindrosa, segundo Edward Re41:

“É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz­-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra. Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz no sistema do common law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-­lo moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão do caso concreto que tem diante de si.”

O que vincula em um precedente é a sua ratio, seu principio, essa distinção é incerta, variando de juiz para juiz, mas o importante a destacar é que a justificação da aplicação de um precedente depende dela; não sendo assim um processo mecânico, mas um processo que exige grande perspicácia e habilidade argumentativa do juiz, similar a interpretação da lei no sistema romanístico. Algo que devemos atentar sobre a aplicação do precedente é com relação a sua correspondência fática, circunstancial, com o novo caso, em face de uma não correspondência um precedente pode sofrer o overrule, mesmo sendo vinculativo.

O precedente pode ser rejeitado também se aplicado “per incurian”, ou seja, que foi mal aplicado sem observância do procedimento, e foi identificado por uma corte subsequente. A lei é, superior ao precedente, dotada de força revogatória em relação às fontes jurisdicionais. É comum a posição de que a lei cobre as lacunas do Common Law. As leis não expõem normas de grande latitude, são apenas artifícios em busca de uma completude de um sistema, que encontra no case law suas bases.42

Vê-se que mesmo se tratando da aplicação de leis, é comum o uso do case law, pois uma lei interpretada e aplicada por uma corte, se torna precedente desta, e outros casos o aplicarão, não a lei em si, mas o precedente advindo desta. Então, é comum um juiz anglo-americano usar simultaneamente o case law e o statute law.

O que se pode dizer também é que as leis quebram a rigidez do stare decisis, pois um caso no qual incide uma lei dá tanta liberdade ao juiz quanto ambíguos e vagos forem seus termos.


Considerações

O conhecimento de outros sistemas de direito é fundamental para a formação de um jurista. Pode-se concluir, ao fim deste trabalho, que é impossível se referir a Common Law como uma categoria estática ou um grupo unificado, como já ressaltado anteriormente cada país criou seu Common Law, e dentre tais países observa-se grande divergência com relação à importância das fontes, ao caráter vinculativo dos precedentes, sem falar dos procedimentos.

É importante nesta parte frisar que perante o dinamismo do direito, tais sistemas (Civil Law e Common Law) sofrem paulatinamente uma aproximação em certos estados, como uma forma de aprimoramento, adequando-se a necessidades da sociedade, é nesse contexto que destaca-se no Civil Law brasileiro por exemplo a Súmula Vinculante como uma forma de solução ao problema da celeridade do judiciário brasileiro.

As súmulas vinculantes são um meio de sintetizar e estender uma decisão do STF referente a matérias constitucionais a outros casos similares. Dessa forma órgãos inferiores do judiciário são obrigados a acatar essa decisão sob pena de invalidez de seus atos. É similar ao sistema de “stare decisis”, onde uma decisão anterior gera um padrão para ser seguido em casos semelhantes. 43 Segundo Lenio Luiz Streck 44:

“as súmulas são, desse modo, uma metacondição de programação e reprogramação de sentido do sistema jurídico. Contudo, são, também, condição de fechamento do sistema. Trata-se de um paradoxo, na perspectiva luhmaniana, que é resolvido pela unidade que lhe dá a posição ímpar dos tribunais superiores ao editar Súmulas para poder auto-reproduzir o sistema.”

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E essa convergência é também notável no direito Anglo-americano com o crescimento vertiginoso do statute law, comenta René David45:

“Para resolver os problemas do welfare-state, talvez os direitos românicos do continente europeu, familiarizados com a elaboração legislativa e doutrinal do direito, estejam mais preparados do que o direito inglês. Esboça-se, assim, um movimento de aproximação entre o direito inglês e o direito do continente europeu; este movimento é estimulados pelas necessidades do comércio internacional e favorecido por uma mais nítida consciência das afinidades que existem entre os países europeus ligados a certos valores da civilização ocidental: a entrada do Reino Unido na Comunidade Econômica Européia poderá dar um novo impulso a esta aproximação”.

Ora, por essa razão não se pode falar em um sistema de direito perfeito, mas todo sistema de direito, como vimos com o exemplo do Common Law, é uma criação histórica, um reflexo da própria sociedade e de suas aspirações; assim aconteceu por exemplo com o Civil Law exacerbado da revolução francesa, que buscava uma reação ao antigo regime apoiado numa divisão rígida de poderes, num juiz “bouche parlante de la loi” e num legislativo forte.

Podemos então afirmar a importância do conhecimento das formas de transformação da sociedade e como reflexo o próprio direito, até como meio de modificá-lo conscientemente. “o conhecimento dos direitos estrangeiros é elemento essencial da cultura jurídica e, numa dimensão maior, do conhecimento do mundo” 46


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Sobre o autor
Vitor Galvão Fraga

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRAGA, Vitor Galvão. O sistema do Common Law. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3394, 16 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22816. Acesso em: 19 abr. 2024.

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