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A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito

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20/10/2012 às 18:50
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4. Estado Democrático de Direito

Iniciaremos nossas linhas tendo por base o Estado cujo modelo foi adotado pela Constituição brasileira de 1988, tal qual inscrito na segunda parte do art. 1º: “A República Federativa do Brasil (...) constitui-se em Estado Democrático de Direito”.

Note-se que a expressão utilizada pelo nosso Constituinte adjetiva o Estado brasileiro com duas importantes qualidades: o fato de ser democrático, bem como de estar submetido ao direito. Mas o que isso significa? Um Estado democrático não é obrigatoriamente um Estado de direito? Um Estado de direito não pressupõe um Estado democrático? Com efeito, se as respostas a essas perguntas fossem afirmativas (sim, um Estado democrático é ao mesmo tempo um Estado de direito; e, sim, um Estado para ser de direito deve pressupor ser, de igual modo, democrático) nossa Constituição seria duplamente redundante já que ambas as expressões (Democrático e de Direito) trariam consigo além do seu significado próprio o significado inerente à outra expressão[25]. Nesse sentido, pode-se dizer que o constituinte de 1988 não se fez redundante nem, por conseguinte, utilizou palavras inúteis[26] quando afirmou o que resta inscrito em seu art. 1º[27].

Mas, retrocedendo ao primeiro questionamento, o que significa para o Estado ser Democrático de Direito[28]?

4.1 .Forma democrática de governo

Para se compreender a democracia representativa que hoje impera na maior parte dos países Ocidentais, mister observarmos, ainda que de modo breve, a “evolução taxonômica” do governo do povo no decorrer da história.

Na antiguidade clássica a democracia era tida, por Aristóteles, como a forma viciada do “governo da multidão”[29], ao passo que o seu similar virtuoso, que governa no interesse geral da multidão, era a república. Modernamente, outras tipologias das espécies de governo ainda consideradas clássicas são as de Maquiavel e de Montesquieu, que se encontram bem condensadas na seguinte passagem de Bobbio (2010, p. 104-105):

No Príncipe, Maquiavel as reduz a duas, monarquia e república, compreendendo no gênero das repúblicas tanto as aristocráticas quanto as democráticas, com base na consideração de que a diferença essencial passa entre o governo de um só, de uma pessoa física, e o governo de uma assembléia, de um corpo coletivo, sendo a diferença entre uma assembléia de otimates e uma assembléia popular menos relevante, porque ambas, à diferença da monarquia onde a vontade de um só é lei, devem adotar algumas regras, como a do princípio de maioria, para alcançar a formação da vontade coletiva. Montesquieu retorna a uma tricotomia, diversa porém da aristotélica: monarquia, república, despotismo. Diversa no sentido de que combina a distinção analítica de Maquiavel com a distinção axiológica tradicional, na medida em que define o despotismo como o governo de um só mas “sem lei nem freios”, em outras palavras como a forma degenerada da monarquia. Além do mais, Montesquieu acrescenta um novo critério de distinção, o critério com base nos “princípios”, isto é, com base nas diversas molas (ressorts) que induzem os sujeitos a obedecer: a honra nas monarquias, a virtú nas repúblicas, o medo no despotismo. Este critério faz pensar nas diversas formas de poder legítimo segundo Weber. Tal como Montesquieu (mas sem nenhuma influência direta), Weber individualiza os diversos tipos de poder distinguindo as diversas possíveis posturas dos governados diante dos governantes: a diferença entre um e outro está no fato de que Montesquieu se preocupa com o funcionamento da máquina do Estado, e Weber com a capacidade que têm os governantes e seus aparatos de obter obediência. A novidade da tipologia de Montesquieu com respeito às duas precedentes [refere-se à de Aristóteles e a de Maquiavel] depende da introdução da categoria do despotismo, tornada necessária pela exigência de dar maior espaço ao mundo oriental, para o qual a categoria do despotismo havia sido forjada pelos antigos.

Como se observa, as tipologias variam sem, contudo, observar qualquer critério minimamente científico, descrevendo exclusivamente ou a realidade histórica vivenciada pelos seus retratadores, ou a realidade que eles entendiam como desejável. Tanto que o termo “República” na visão de Aristóteles era a versão virtuosa do governo da multidão; ao passo que tanto em Maquiavel quanto em Montesquieu a “República” traduzia-se na forma de governo que congregava numa única espécie a aristocracia e da democracia (esta última já vista sob a ótica da virtude), excluindo-se a monarquia.

Já com Rousseau (2000, p. 48), o termo “República” denotava significação diversa das três tipologias anteriores: para ele “República” era todo o Estado regido por leis, independentemente da forma de sua administração, pois só o interesse público (res publica) governava. Em seu modo de ver, todo o governo legítimo seria republicano e por República ele poderia denominar uma aristocracia, uma democracia, ou até mesmo uma monarquia, desde que todos os governos fossem guiados pela vontade geral, que é a lei – a República seria, então, a denominação roussoneana para o Estado de direito.

Ainda em Rousseau (2000, p. 71-72), vemos que ao tratar da democracia no Capítulo IV do Contrato Social, embora a entenda como uma forma de governo perfeita, digna de um Estado de Deuses e não de homens, levanta diversas dificuldades no que toca à prática do seu exercício no Estado moderno (da época), tais como: a) impossibilidade do estabelecimento de comissões sem alterar a forma do governo; b) só seria possível em Estados territorialmente muito pequenos e com poucos cidadãos; e c) nesses Estados haveria de predominar a simplicidade nos costumes além de imperar uma isonomia de classes e fortunas. Por ser, no modo de ver de Rousseau, quase impossível a reunião de todas essas qualidades em um único Estado, a democracia seria a governo mais propício às guerras civis e agitações intestinas, já que não existiria outro que tendesse tão forte e incessantemente à mudança de forma, nem que requeresse mais vigilância e coragem na sua manutenção.

Tão dura oposição talvez ainda hoje subsistisse em sentido, acaso permanecêssemos presos ao conceito, como ocorreu em Rousseau, da democracia como “democracia direta”, tal qual funcionava o “governo das multidões” na antiguidade clássica. Ocorre que justamente pela impossibilidade prática[30] de utilização do processo ínsito à democracia direta, se tornou viável o recurso à chamada democracia indireta ou representativa[31] (na qual existirá, por conseqüência, um governo representativo[32]), que hoje impera nos Estados efetivamente democráticos.

Antes, contudo, de se passar à contemporaneidade, de bom tom se mostra verificar o pensamento dos founding fathers dos EUA acerca da democracia e da República, já que foi justamente nesse país onde se resolveu o problema da liberdade democrática, como lembrado por Alexis de Tocqueville.

Com efeito, é fato que os fundadores dos EUA não quiseram que se confundisse a República por eles pretendida com a democracia dos antigos. A respeito desta última, o juízo dos federalistas muito se aproxima ao dos mais ferrenhos antidemocratas, como se vê pelo trecho a seguir reproduzido:

Eis por que as democracias desse gênero têm sempre oferecido o espetáculo da dissensão e da desordem; porque esta forma de governo é incompatível com a segurança pessoal e com a conservação dos direitos de propriedade, e porque os Estados assim governados têm geralmente tido existência tão curta e morrido morte violenta. (grifos nossos) (HAMILTON, MADISON e JAY 2003, p. 64)

 Ocorre que a forma de governo que o “autor federalista” chamou de democracia “desse gênero”, seguindo a lição clássica, era a democracia direta. Noutro turno, por República os federalistas entendiam o “governo representativo” [33], exatamente a forma de governo que hoje a comunidade internacional chama de democracia, sem necessitar do complemento “representativa”. Vê-se, mais uma vez, uma quarta utilização diferente para o termo República, ao passo que a democracia é, como em Rousseau, vista tão somente como a democracia direta não mais possível de se ver adotada em Estados complexos como eram os Estados modernos (da época) e como se mostrava ser os EUA, especialmente por sua extensão territorial e população[34], já no momento do seu nascimento.

O fato é que, especialmente após a adoção do modelo “republicano” (democrático representativo) pelos EUA, consolidou-se de forma definitiva o sentido da expressão soberania popular, bem como, e em razão disto, afastou-se a legitimidade para o exercício do Poder político do Estado de uma justificação divina, perenizando-a na vontade expressa pelo povo por meio do sufrágio em seus representantes.

Na Europa o desenvolvimento das idéias democráticas, até o advento da primeira guerra mundial, coincide com o fortalecimento dos Estados representativos nos principais países daquele continente e com o seu desenvolvimento interno, tanto que a tipologia das tradicionais formas de governo foi aos poucos simplificada tendo-se por norte tão somente a contraposição entre as democracias e as autocracias. Deste modo, o Estado representativo europeu passa a conhecer um processo de democratização sustentado por dois pilares: a) a ampliação do direito de voto até se alcançar o sufrágio universal (masculino e feminino); e b) o desenvolvimento do “associacionismo político” até a formação dos partidos de massa e o reconhecimento de sua função pública. (BOBBIO, 2010, p. 152-153)

Nesse contexto histórico de mudanças (soberania popular, ampliação do direito de voto, formação de partidos de massa etc.), Dallari (1995, p. 128) nos informa, em síntese, que os princípios que passam a nortear os Estados democráticos de hoje[35] são basicamente três: a) supremacia da vontade popular, que se relaciona à participação popular no governo, tanto no que toca à representatividade, quanto ao direito de voto e aos sistemas eleitorais e partidários; b) preservação da liberdade, a significar o poder dos cidadãos de dispor de suas pessoas e de seus bens, sem a interferência do Estado, desde que suas condutas não violem direitos alheios; e c) igualdade de direitos, que é a proibição de discriminações econômicas ou sociais no pleno exercício e gozo dos direitos pelos cidadãos.

Noutro turno, imperativo registrar, que a “entrega” do Poder por parte do povo aos seus representantes, como fórmula principal para a constituição contemporânea de um governo democrático, não se dá de forma exaustiva; parcela dessa autoridade soberana não será repassada aos governantes, os quais restarão a ela submetidos, já que tal autoridade da mesma forma que os designa pode, se necessário, destituí-los do exercício do Poder (BURDEAU, 2005, p. 45). Nesse mesmo sentido Maluf (1995, p. 243), sustentando que o ideal democrático exige que a representação seja tanto limitada quanto revogável, pontua “que a nação transfira aos seus representantes o exercício do poder de soberania, mas a conserve em essência, de maneira que possa recuperá-la a qualquer momento em que estiverem em jogo os interesses vitais, a paz e o bem-estar do povo”.

 Neste caso, contudo, salvo na hipótese de revolução popular, como tem ocorrido recentemente no mundo árabe (embora nesses países não se viva uma democracia nos termos aqui postos), com o movimento denominado “Primavera árabe”, há todo um procedimento a ser observado (ampla defesa e o contraditório) para a destituição dos governantes do poder, no caso de cometimento de crimes de responsabilidade (já que no Presidencialismo não há o chamado “voto de desconfiança”, próprio do parlamentarismo). E normalmente tal procedimento não é conduzido diretamente pelo povo, mas por seus representantes eleitos, ainda no pleno exercício da democracia representativa.

Não resta dúvida, porém, que a pressão popular e a atuação dos demais atores sociais são fatores relevantes para a tomada de decisões dessa natureza no âmbito do Estado – seja ele visto sob a ótica do Executivo ou do Legislativo ou até mesmo do Judiciário –, tal qual ocorreu no episódio mais marcante de nossa recente jornada democrática com o movimento dos “caras-pintadas” que protestou fortemente exigindo o impeachment do Presidente Fernando Affonso Collor de Mello[36].

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4.2.Estado de Direito

Abordemos, nesse segundo momento, o Estado de Direito: o Estado de Direito surge para impor limites ao Poder exercido pelo governante, especialmente o monarca absolutista, eis que não se usava observar as leis por ele mesmo criadas[37]. Assim, o Estado de Direito pode ser caracterizado como aquele no qual o Estado se encontra submetido ao direito por ele criado[38] e conseqüentemente à lei[39], ambos entendidos como reflexo e expressão da vontade geral.

Nesse sentido, García-Pelayo[40] informa que a lei a que se referiu acima não é “qualquer lei”, mas aquela cujo conteúdo normativo se subsuma à idéia de legitimidade, justiça, dos fins e valores aos quais deve servir o Direito, ou seja: valores que expressem normas ou princípios que a lei não possa violar, sob pena de não ser “lei conforme o Direito” e descaracterizar, por conseguinte, o Estado sob essa adjetivação.

Relativamente aos aspectos fundamentais de um Estado de Direito, temos na doutrina de Ernst Wolfgang Böckenförde, trazida por Mendes, Coelho e Branco (2008, p.42), esclarecedora lição, qual seja: a) estar apartado de “qualquer idéia ou objetivo transpessoal do Estado”, ou de qualquer outra conceituação Divina no que concerne à sua origem. O Estado de Direito está a serviço do interesse comum de todos os indivíduos que compõem uma comunidade; b) ter como objetivo do Estado a garantia da liberdade, segurança e propriedade das pessoas, propiciando, assim, o “autodesenvolvimento dos indivíduos”; e c) “a organização do Estado e a regulação das suas atividades obedecem a princípios racionais, do que decorre em primeiro lugar o reconhecimento dos direitos básicos da cidadania”, tais como a liberdade, igualdade, predominância da lei, existência de representação popular etc..

Ademais, Bobbio[41] acrescenta que o Estado de direito é o Estado dos cidadãos, onde o indivíduo tem não só direitos privados, como ocorria no Estado absolutista, mas direitos públicos, ou seja, direitos em face do próprio Estado.

Por outro lado, interessante destacar o entendimento de Paulo Bonavides (1995, p. 190) para quem o Estado de Direito não é nem forma de Estado nem forma de governo, mas sim um “statu quo” institucional que reflete a confiança depositada nos governantes pelos cidadãos, como garantidores dos direitos e liberdades fundamentais do homem e da sociedade.

Por derradeiro, e sem destoar das doutrinas anteriormente declinadas, colacionamos o posicionamento de Burdeau (2005, p. 43-44), que ao reafirmar a submissão do Poder do Estado ao Direito, já que este último legitima juridicamente aquele Poder, sustenta que essa submissão não significa a paralisação do governante, nem a inviabilização de sua independência e iniciativa na execução do seu mister, mas que, ao contrário, resulta do fato de os governantes não poderem ser contrários à idéia de direito válida no grupo social que representam. Esse seria o significado do Estado de Direito.

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Sobre o autor
Filipo Bruno Silva Amorim

Procurador Federal, atualmente exercendo o cargo de Vice-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3398, 20 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22839. Acesso em: 28 mar. 2024.

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