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Mensalão: sério risco de anulação?

22/10/2012 às 14:45
Leia nesta página:

O Pacto de São José da Costa Rica garante que toda pessoa tem o direito de recorrer da sentença a juiz ou Tribunal Superior, mas obviamente jaz no seu âmago a ideia de que isso vale quando não se trate de competência originária já de um Tribunal Superior.

Para além da discussão do mérito do caso mensalão – esta inescrupulosa experiência brasileira –, têm-se visto artigos dos mais diversos publicando a possibilidade de anulação do seu julgamento por falhas formais. Citam-se aqui, pela importância do autor, os fundamentos jurídicos trazidos por Luiz Flávio Gomes (cf.: Mensalão: julgamento do STF pode não valer; Mensalão: sério risco de anulação).

Segundo ele, haveria a tese de, pelo menos, dois vícios procedimentais, da qual poderiam se valer os réus: violação à imparcialidade e, principalmente, violação ao duplo grau de jurisdição.

A imparcialidade do juízo estaria maculada, diz o autor referido supra, já que Joaquim Barbosa, relator do processo, esteve presente na fase investigativa e, agora, psicologicamente comprometido com aquela etapa, está participando do julgamento. E aqui vai o primeiro contra-argumento a essa tese. Justamente por participar desde o início da análise do caso mensalão é que se pode dizer que o Ministro angariou fundamentos sólidos e desenvolveu a sua tese com maior conhecimento dos fatos – isso é o que leva a crer pelas decisões que vem proferindo, com profundo conhecimento fático para além do cálculo frio das letras nos autos.

Ainda, na jurisdição de piso é assim mesmo que o processo penal transcorre, com participação comedida do juiz antes mesmo da fase processual instrutória e de julgamento (nesse sentido, cf. princípio da identidade física do juiz, art. 75, parágrafo único, art. 79 e art. 83, todos do CPP; cf. também a Súmula 234 do STJ e Súmula 704 do STF, por serem pertinentes). Sequer, de tal modo, se violou o devido processo legal, otimizado por mandado constitucional do art. 5º, LIII.

Ademais, imparcialidade não se confunde com neutralidade, como assaz sabido em sede doutrinária. Nenhum juiz é neutro, embora deva ser imparcial. Falar em juiz imparcial significa, em poucas linhas, que ele não deve ter qualquer interesse em relação às partes em si do processo, observando-se sempre os princípios constitucionais no campo processual. Dogmaticamente, é, enfim, observar os limites do impedimento e suspeição elencados no direito interno do país, além de evitar os juízos ad hoc ou post factum.

Por outro lado, juiz neutro é aquele que se fecha a qualquer influência ideológica e subjetiva, peremptoriamente, mostrando-se indiferente, insensível. E isso não tem nada a ver com os preceitos de vedação à violação da imparcialidade.

E Joaquim Barbosa? Nada lhe resta de parcial, no termo jurídico-político, mas não se pode negar que ele abarcou, sim, a percepção do calor das angústias das partes, mormente a do povo brasileiro, titular do poder (pelo menos está assim na Constituição) e ao mesmo tempo receptor dos princípios democráticos e éticos postos na Constituição.

O outro vício procedimental, conforme apontado, estaria no fato de desrespeito à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) no tocante ao direito ao duplo grau de jurisdição. Isso porque na Convenção há dispositivos que tratam da seguinte forma o tema (grifou-se):

Artigo 8º - Garantias judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(...)

h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

Artigo 25 - Proteção judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados-partes comprometem-se:

a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Artigo 46 - Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário:

a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos;

b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva;

c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e

d) que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.

2. As disposições das alíneas "a" e "b" do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

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É em razão desses dispositivos que se alega a possibilidade de o caso mensalão ser levado à Comissão Interamericana, primeiramente, e mesmo após à Corte (cf. arts. 44 e 61 da Convenção).

Pois bem. Antes de tudo, porém, é importante alocar o espaço da citada Convenção no ordenamento jurídico interno. Não é tarefa das mais isentas de críticas, como as feitas por Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli e o próprio Luiz Flávio Gomes, mas o que hoje prevalece no STF é que tem status de norma supralegal, defendida, por exemplo, pelo Min. Gilmar Mendes, no RE. 466.343-SP.

Sendo assim, não passando pelo rito de constitucionalização do art. 5º, §3º, da CF/88, a Convenção Interamericana, aprovada pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, tem eficácia paralisante (rectius: revogação / suspensão) em relação às normas infraconstitucionais brasileiras, sujeitando a lei inferior (e somente ela), portanto, a um controle de convencionalidade, nada envolvendo a própria Carta Maior deste país.

Ou seja, na posição hoje prevalente, a Convenção situa-se, numa imagem piramidal, abaixo da Constituição, pelo que os preceitos desta devem ser primordialmente observados. E esse respeito aos preceitos constitucionais é de tão relevância que a própria Convenção Interamericana o garante, consoante seu art. 2º, in verbis (grifou-se):

Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Depreende-se disso, então, que a Constituição brasileira é fonte primeira de onde devem se buscar os fundamentos para a correta apreensão do princípio do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal e dados acerca da competência originária para julgamento.

Nesse ponto, destaca-se o art. 102 da CF e alguns de seus incisos, os quais remetem à fixação da competência originária do STF para julgamento por prerrogativa de foro:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

(...)

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999)

d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal;

Então, o que o STF fez foi nada mais nada menos que cumprir o próprio preceito constitucional, até porque as autoridades ali indicadas, se não fosse assim, estariam sujeitas a um julgamento por um juízo, diriam alguns, sujeito às mais diversas influências e pressões escabrosas. Isto é, assegurou-se, em detrimento da possibilidade recursal a outra instância, uma maior segurança no tocante ao julgamento pela Corte Maior do país.

Aliás, não se veda totalmente o acesso a recursos, posto que, mesmo no caso da competência originária, sobram alguns acessos recursais caso se vislumbre necessidade de pontuações no feito. E nisso cumpre, de um modo ou de outro, o art. 8º, 2, “h”, da Convenção Interamericana.

De mais a mais, tal dispositivo deve ser lido dentro de uma lógica do razoável, extraindo-se o sentido último subjacente à regra ali posta. Ora, fala o artigo que toda pessoa tem o direito de recorrer da sentença a juiz ou Tribunal Superior, mas obviamente que – ultrapassando-se a discussão rasteira de que cabe, sim, recurso/petição no próprio STF – jaz no seu âmago a ideia de que isso vale quando não se trate de competência originária já de um Tribunal Superior, ou melhor, Supremo de um país.

O dispositivo veio para proteger, mas maior proteção trouxe a CF/88, ao garantir que autoridades do país fossem julgadas por um Tribunal menos sujeito às pigarras político-ideológicas. Cumpre-se, novamente, o próprio art. 2º da multicitada Convenção, que assim possibilita que a Constituição interna esteja no mesmo lado (ou em maior escada, pela tese da supralegalidade) com a Convenção naquilo que se reporta ao influxo de compatibilização das normas infraconstitucionais.

Grand finale. Consta do art. 67 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos o seguinte (grifou-se):

Artigo 67 - A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença.

Desse modo, pergunta-se: será que a própria Convenção, num surto existencial, violou o princípio do duplo grau de jurisdição?

Pois é, às vezes é nisso que dão as magnânimas proezas jurídicas.

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Sobre o autor
Ricardo Diego Nunes Pereira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito do Estado (Constitucional, Administrativo e Tributário). Foi secretário-geral da Comissão de Combate ao Aviltamento de Honorários Advocatícios da OAB/SE. Autor de artigos e livros de interesse jurídico. Autor do livro “Direito Judicial Criativo: ativismo constitucional e justiça instituinte”, com menção no Library of Congress, nos EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. Mensalão: sério risco de anulação?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3400, 22 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22865. Acesso em: 24 nov. 2024.

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