O Código de Trânsito Brasileiro – promulgado em 23/09/1997 – adveio de uma constante necessidade e urgência da sociedade brasileira, a fim de regularizar, organizar e estruturar uma melhor condição trafegável, permitindo assim, teoricamente, a pretensa segurança na locomoção, tanto dos condutores, quanto dos pedestres nas vias terrestres.
Com base nessa premissa maior, coube ao legislador incluir um artigo específico no aludido Código de Trânsito Brasileiro, especialmente no parágrafo 2º, do artigo 1º, dispondo que “[...] O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”.
Pois bem, para que o objetivo fosse alcançado em sua plenitude – ou ao menos almejado como objetivo primordial, caberia num primeiro momento aos condutores e pedestres respeitarem os direitos e obrigações ali contidos; num segundo momento, de forma repressiva e ostensiva, caberia ao Poder Público, por seus agentes de trânsito, fiscalizar e fazer cumprir os ditames do Código de Trânsito Brasileiro, sob pena de sofrer as penalidades legais.
Dito isso, busca o presente artigo trazer a tona um dos pontos controvertidos no âmbito dos órgãos de trânsito, quanto a questão da obrigatoriedade do agente de trânsito em fazer a abordagem direta do condutor do veículo quando da lavratura do auto de infração motivado pela ausência de uso do cinto de segurança.
Para aqueles que se filiam sobre a desnecessidade de abordagem do condutor infrator quando da flagrância, estes justificam que haveria presunção “juris tantum” do agente e, consequentemente, caberia ao condutor derrubar a veracidade descrita no auto pela autoridade competente.
De outro norte, refutando os argumentos de presunção relativa, a corrente contrária, alicerçada na alegação de que o agente de trânsito tão somente poderia autuar quando fosse realizada previamente a abordagem do condutor infrator, pois, assim o fazendo, conseguiria constatar efetivamente a transgressão imputada e, em seguida, corrigiria a conduta irregular do infrator. Além disso, em caso de não abordagem, o auto de infração estaria baseado em mera presunção, o que não se coaduna com os princípios basilares da Administração Pública.
Para estes seguidores, dos quais me afilio, a ausência de abordagem do condutor geraria nulidade do ato administrativo lavrado, evidenciando e tornando inconteste o ato cometido pelo agente de trânsito como ilegal.
Tal entendimento de ilegalidade e irregularidade do procedimento adotado pelo agente de trânsito para a confecção do Auto de Infração de Trânsito, como se a desnecessidade de abordagem fosse regra e não exceção, vem justamente a contrariar o princípio da legalidade, motivação e, especialmente, fere gravemente os objetivos primordiais que fizeram ser promulgado o Código específico.
Frise-se, não se discute a possibilidade do agente de trânsito em lavrar o Auto de Infração por falta de uso de cinto sem a abordagem do condutor – fato este possível, mas excepcional. Todavia, o que vem corriqueiramente acontecendo, desvirtua totalmente as premissas e finalidades contidas no CTB.
Primeiro, os agentes de trânsito, quer seja por inexperiência quer seja por desconhecimento da legislação de trânsito, vêm constantemente invertendo o procedimento a ser adotado, da regra para com a exceção.
Isso porque, quando da suposta flagrância de direção sem o uso de cinto, os agentes de trânsito, em sua grande maioria, vêm lavrando Auto de Infração de Trânsito, sem ao menos abordar o condutor “infrator” ou esgotar todos os recursos a fim de deter sua continuidade infracional.
Lavra-se o Auto de Infração de Trânsito, sem abordagem do condutor infrator – como se fosse a regra –, com a simplória justificativa de que teria se evadido do local ou a abordagem tornara impossibilidade de realizar, passando ao condutor, quando for surpreendido posteriormente da notificação de infração, para fazer prova negativa – ônus repudiado pelo Direito Brasileiro.
Segundo, se o agente de trânsito de fato estivesse próximo o suficiente para perceber a infração prevista no artigo 167 do CTB, deveria aquele determinar ao condutor que pare o seu veículo a fim de apurar o efetivo cometimento e/ou esgotasse todas as tentativas a fim de abordar o condutor infrator. Não o fazendo, dever-se-ia constar no Auto de Infração, sob pena de nulidade absoluta do ato lavrado.
É sabido e consabido que os agentes de trânsito (em sua maioria) nem mais atuam em flagrante os condutores, simplesmente com o subterfúgio de impossibilidade de fazê-lo, desviam a finalidade que o legislador preconizou no Código de Trânsito Brasileiro. Pelo contrário, autuam o condutor e detalham que aquele se evadiu, sem contudo esgotar todos os recursos disponíveis para abordagem por se tornar mais cômodo.
Nesse aspecto é que gera a nulidade da autuação e, consequentemente, a ilegalidade da multa imposta, por ter seus atos eivados de ilegalidade.
Terceiro, sabe-se que o procedimento adotado atualmente pelos agentes de trânsito vem em total arrepio da lei, pois ao utilizar erroneamente da presunção da veracidade – fé pública, em diversas vezes, com blocos de multas em mãos, autuam os condutores ao bel prazer, fazendo com que o condutor fique com o ônus de derrubar a “suposta” presunção de veracidade. Tal encargo de repassar ao condutor o ônus probatório, nada mais é do que obrigá-lo a apresentar provas negativas (diabólicas), estas vedadas no ordenamento jurídico vigente.
Além da necessária abordagem para apuram eventual infração – que é regra no Código de Trânsito Brasileiro, a ausência de descrição no próprio Auto de Infração de que tentou a abordagem ou buscou exaurir os meios necessários para fazê-la, independente de êxito ou não, fazem com que o ato administrativo torna-se inválido, eis que nulo de pleno direito. Falta-lhe motivação e justa causa.
Até porque, se o agente de trânsito tivesse determinado ao condutor que parasse o veículo – fosse por gestos ou por silvos de apito –, dever-se-ia ter registrado tal fato no Auto de Infração de Trânsito. E, ainda, se tivesse ocorrido desobediência a essa ordem, haveria de autuar o condutor, ainda, no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro.
Ora, se o agente de trânsito que venha autuar em flagrante estiver próximo o suficiente para perceber que o condutor estaria sem o cinto de segurança, aquele tem o dever de determinar que o infrator parasse o veículo a fim de apurar o efetivo cometimento da infração.
E caso este não atendesse ao determinado, caberia o agente de trânsito constar no Auto de Infração de Trânsito, também, o cometimento da infração de desobediência inserido no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro.
Convém salientar, que não se está atacando o serviço exemplar e competente dos agentes de trânsito, que muitas vezes são exercidos pelos Policiais Militares, mas sim, busca-se demonstrar que o procedimento adotado quando da autuação torna-se ilegal e irregular, quando não advém de um procedimento válido e motivado, ocasionando um ato administrativo natimorto.
Ademais, não se discute a boa-fé ou má-fé do agente de trânsito, todavia, é demais cômodo ao agente justificar a falta de abordagem do condutor com a simples descrição de “evadiu-se” ou “impossibilitado de abordagem”.
Logo, não obstante os atos da Administração Pública gozem de presunção de legitimidade e veracidade, tal presunção não se aplica, salvo melhor juízo, nos casos de infração de trânsito.
Nesse sentido, Eduardo Antônio Maggio [1] ensina que “As formas e meios de constatação da infração, a qual uma vez constatada será autuada pelo agente fiscalizador da autoridade de transito que deverá fazê-la através de comprovação legal e correta, sem deixar dúvida quanto à sua lavratura, pois a não ser dessa forma, será objeto de contestação através de recursos administrativos e até mesmo, se for o caso, o de se socorrer ao Poder Judiciário. Entretanto esse embasamento legal para a autuação não quer dizer que feita essa, já estará absolutamente comprovada, correta e consumada para fins de aplicação da penalidade de multa pelo respectivo órgão de trânsito nos termos da lei. Neste aspecto, deve-se ressaltar, conforme já mencionamos também no tema 3, que a comprovação pelo agente da autoridade pode ter erros, falhas e até mesmo injustiças, pois o ser humano é passível desses comportamentos”.
Não bastasse isso, a lei exige que o ato administrativo obedeça a forma legal.
Existindo vício de forma consistente na falta de observância de procedimentos legais ou irregularidades nas formalidades indispensáveis à existência do ato, torna-se inviável o prosseguimento de aplicação da penalidade.
Com base no princípio da autotutela, a Administração Pública tem o poder-dever de controlar seus próprios atos, revendo-os e anulando-os quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade e revogando-os em caso de interesse público.
Assim sendo, a autotutela abrange o poder de anular, convalidar e, ainda, o poder de revogar atos administrativos. A autotutela está expressa na Súmula n. 473 do STF [2].
No caso de infração de trânsito, o artigo 65 do Código de Trânsito Brasileiro vem a confirmar a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, senão vejamos: “Art. 65. É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN”.
A obrigatoriedade do uso tem como objetivo primordial a proteção da integridade física dos ocupantes do veículo e dos demais condutores e pedestres circulantes nas vias públicas, cabendo ao Poder Público exercitar a vigilância e tutela deste bem jurídico.
Dessa incumbência, surge o artigo 167, do Código de Trânsito Brasileiro, que preconiza a necessidade da abordagem do veículo para averiguar eventual infração, na qual poderá acarretar a aplicação de multa e retenção, até que o cinto de segurança seja colocado pelo condutor infrator: “Art. 167. Deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança, conforme o previsto no art. 65: Infração – grave, Penalidade – multa; Medida Administrativa – retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”.
Como se pode observar pelo dispositivo acima mencionado, o uso do cinto de segurança veicular é uma conduta a ser observada pelo condutor, cuja violação caracteriza infração à legislação de trânsito. Sendo conduta diversa do condutor, incide a correspondente sanção legalmente prevista, bem como a medida administrativa, consistente na “retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”.
Se o infrator, por vontade própria, resolve não usar o cinto, cabe ao agente de trânsito abordar o condutor e ordenar para que aquele utilizar o cinto e, tão só assim, liberar o veículo para prosseguir o seu destino.
De nada adianta o agente constatar que o ocupante de um veículo não usasse o cinto de segurança e, mesmo assim, permitir que continuasse infringindo a lei, expondo a perigo a sua pessoa e os demais cidadãos.
É notória a intenção do legislador, ao promulgar o Código de Trânsito Brasileiro, em priorizar a integridade física dos usuários do veículo, também priorizando a correção da conduta, tanto que não se contentou apenas com a cominação da multa.
Foi além, estabeleceu, ainda, a retenção do veículo até a colocação do cinto pelo suposto infrator, medida que sobrepõe à mera reprimenda de caráter pecuniário.
Neste liame, dispõe o artigo 269, do Código de trânsito Brasileiro. Vejamos: Art. 269. A autoridade de trânsito ou seus agentes, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas: I – retenção do veículo; [...] §1º A ordem, o consentimento, a fiscalização, as medidas administrativas e coercitivas adotadas pelas autoridades e seus agentes terão por objetivo prioritário a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa. §2º As medidas administrativas previstas neste artigo não elidem a aplicação das penalidades impostas por infrações estabelecidas neste Código, possuindo caráter complementar a estas.
Resta patente, que a aplicação das medidas administrativas não se submete à vontade ou disponibilidade do agente da autoridade de trânsito.
Há flagrante caráter impositivo da norma, sendo obrigação do agente aplicá-las, sob pena de nulidade do ato administrativo.
Trata-se, evidentemente de um ato administrativo vinculado, que segundo a melhor doutrina, de Hely Lopes Meirelles [3]: “[...] são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase por completo, a liberdade do administrador, uma vez que a sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa".
Em assim sendo, se a norma estabelece que o veículo deve permanecer retido até que o suposto infrator coloque o cinto de segurança, não pode o agente de trânsito simplesmente ignorar o texto legal, pois o legislador não conferiu-lhe a oportunidade de escolha.
Se a abordagem policial não fosse a real intenção do legislador, teria redigido o texto de acordo com o Art. 270, § 5º, do Código de Trânsito Brasileiro. Vejamos: Art. 270. [...] , § 5º. A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo transportando passageiros ou veículo transportando produto perigoso ou perecível, desde que ofereça condições de segurança para circulação em via pública.
Pelas razões acima apontadas, não resta dúvida que o agente de trânsito não pode autuar um possível infrator, pelo não uso do cinto de segurança, sem a devida abordagem do veículo, salvo em casos excepcionais.
Entendimento contrário consistiria em extirpar os princípios constitucionais do contraditório e à ampla defesa ao autuado, a quem estaria sendo imputada uma falta sem que este tivesse o direito de defender-se.
Igualmente, estar-se-ia imputando ao condutor o ônus da prova negativo (provas diabólicas), obrigação esta impossível de ser provada pela parte, o que é inadmissível em nosso direito. Não é o condutor que tem que provar que não praticou o ato, mas, a administração provar que o praticou.
E esta prova da administração ficaria provada em caso do agente de trânsito fizesse a abordagem nos ditames da lei, ou relatasse no auto de infração a sua impossibilidade, autuando o infrator, da mesma forma, na infração de desobediência acaso este não tivesse respeitado a determinação de parar o veículo para abordagem, o que não vem sendo realizado.
No mesmo norte, relevante destacar que a prioridade do Código de Trânsito Brasileiro está voltada essencialmente para a educação no trânsito, que figura como seu princípio fundamento.
Ademais, em casos da infração de trânsito pela ausência de uso de cinto de segurança, o artigo 167 do CTB, dispõe claramente que “[...] a retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”, é procedimento legal necessário da norma, chegando-se a conclusão da indispensabilidade da abordagem do condutor no caso de não utilização do cinto de segurança.
Já é pacífico o entendimento do CETRAN-SC, quando de seu parecer 032/2005: “[...] no sentido de que o agente da autoridade de trânsito tem o dever de envidar os esforços necessários para, sempre que possível, promover a autuação em flagrante do infrator, sob pena de desvirtuar sua atuação, que deve ser sempre ostensiva, não podendo desviar-se da sua real finalidade que outra não é senão garantir a segurança pública e a fluidez do trânsito viário. Assim, não sendo levada a efeito a autuação em flagrante e não sendo mencionado o fato na própria peça acusatória, a teor do que dispõe o §3º do art. 280 do CTB, a insubsistência do registro é latente.
Nota-se, que a expressão “sempre que possível” no parecer acima, não é faculta ao Agente de Trânsito agir como se regra fosse a não abordagem, mas apenas e tão somente em casos extremos e excepcionais.
Destarte, conclui-se que não cabe aos agentes de trânsito, ditarem novas regras de trânsito ou inobservar qualquer preceito da legislação, pois tal fato, por si só, gera ilegalidade do ato administrativo e, consequentemente, caberá a Administração Pública anulá-lo, sob pena de privilegiar o propósito arrecadatório em detrimento do escopo educativo, bem como ceifar os princípios constitucionais que alicerçam os atos administrativos, em especial, a legalidade e a motivação.
Referências
[1] MAGGIO, Edurado Antonio. Manual de Infrações e Multas de Trânsito e seus Recursos, 2. ed. São Paulo: Ed. Jurista, 2002. p 119 e 120.
[2] Súmula STF 473: “A administração pública pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
[3] LOPES MEIRELLES, Hely, Direito Administrativo Brasileiro, 26 ed. São Paulo: Editora Malheiros, p. 170.
[4] CETRAN/SC, Parecer nº 32/2005, Relator Conselheiro Rubens Museka Junior, data 18/11/2005, disponível no endereço http://www.cetran.sc.gov.br/pareceres/parecer032.htm